Um ano após a tragédia da Boate Kiss, quando 242 jovens morreram na madrugada de 27 de janeiro, a cidade de Santa Maria parece ter retomado sua vida normal. Mas, ao mesmo tempo, esse cotidiano é visto como uma “normalidade transvestida”. Nos olhos cheios de lágrimas e nos gestos daqueles que perderam entes próximos ou sobrevieram ao que aconteceu, a dor ainda pulsa forte e deve continuar viva por muitos anos. A cidade gaúcha está dividida entre os que querem esquecer para superar e os que lutam por justiça, honrando a memória das vítimas, e para evitar que a tragédia se repita.

“A sociedade ficou dividida em pensamentos diversos, até mesmo dentro da comunidade acadêmica. Têm aqueles que acham que Santa Maria precisa respirar que precisa ir para frente: ‘vamos deixar isso aqui para as autoridades e vamos para frente, não podemos ficar o tempo todo falando nisso’... e têm aqueles que estão lutando para que a justiça seja feita, e para que aqueles que realmente tiveram culpa sejam efetivamente punidos. Porque até agora, apenas os pais foram punidos com a perda dos filhos...”, afirma o professor do departamento de Biologia da Universidade Federal de Santa Maria, Sylvio Bidel, que perdeu 31 alunos na tragédia, 10 deles da mesma turma do segundo semestre de Agronomia.

Será difícil para Sylvio esquecer o que aconteceu naquele domingo. Ele mora em frente ao ginásio para onde foram levados corpos, mesmo local onde foram veladas vítimas, muitas suas alunas.

“Eu moro na frente do centro de esportes municipal, então eu acompanhei tudo, a chegada dos corpos, eu desci, fui para lá, ajudei a identificar corpos, meu envolvimento foi muito forte.”
Sylvio Bidel, professor da UFSM

Entre os que defendem a luta por justiça, a principal revolta é com a morosidade do processo e com a rejeição do tribunal de aceitar os indiciamentos de funcionários públicos. A prefeitura, extraoficialmente, se empenha em deixar claro que legalmente não pode ser responsabilizada. Mas nas ruas a cobrança feita ao prefeito Cezar Schirmer pode ser encarada como moral.

“Eu não sei se é muita gente. Quando são os pais (que o criticam) eu compreendo por uma questão de compaixão e aceitação. Agora quando é alguém por desinformação ou má fé, eu me sinto muito desagradável. Quando vejo uma acusação injusta eu me sinto muito contrariado”, diz o prefeito, que entre sua fala diz que a cidade precisa olhar para frente. “A cidade precisa voltar a sorrir, olhar para frente, olhar para o futuro e, é claro, não esquecer o que aconteceu. Mas tem 300 mil habitantes que tem que olhar para frente, apontar um novo rumo, é nisso que estamos trabalhando”.

Entre os sobreviventes, a busca é por alguma foram de prosseguir com a vida, dando significado ao que aconteceu, como forma de lidar com a dor, ainda cotidiana. “Eu não sei se eu consegui superar, porque é uma coisa que eu penso todos os dias, não tem como apagar. Mas é uma coisa sobre a qual eu já consigo conversar, já consigo contar. Às vezes me faz bem falar, alivia um pouco”, diz a ex-funcionária da Kiss, Gabriele Stringari, que sobreviveu à tragédia e, hoje, continua cursando Terapia Ocupacional junto com o tratamento de saúde para superar as sequelas.

Mas dentro de casa, principalmente para os pais dos sobreviventes, falar sobre o incêndio da Kiss não é uma coisa muito confortável.

“Meu pai não consegue tocar no assunto que chora. Minha mãe, na verdade, eu não sei como eles superaram, foi muito triste. Só de eu estar vivo...”, conta Delvani Rosso, sobrevivente do incêndio, que desmaiou dentro da boate, mas foi resgatado pelo irmão.

Quando familiares das vítimas falam do que sentem, lembram das promessas que fizeram ao lado do caixão, e logo surge o sentimento de revolta que se transforma em clamor por justiça e significação para as mortes.

“Eu prometi para minha prima que eu não ia deixar isso ficar assim, que ela não tinha vivido nem morrido em vão, que eu ia cuidar da mãe dela, que isso não ia cair no esquecimento”, lembra Marília Torres, prima de Flávia, que morreu com outras quatro amigas naquela noite.

Nessa busca por justiça, com exceção da Polícia Civil, o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e demais entes públicos são os alvos das principais críticas, principalmente depois de funcionários públicos indiciados pela Polícia Civil não terem sido incluídos no processo que ainda tramita.

“Em Santa Maria, o que acontece até hoje é essa venda do poder Executivo, Legislativo, todos eles... não sei o que acontece porque vendem uma imagem que não existe, que não está acontecendo. Ninguém supera a morte de 242 jovens... e se cala, isso para mim é um absurdo”, afirma Marília, que participa de movimentos que pressionam o poder público na busca por justiça. “Estamos afirmando que nosso País é o país da impunidade, onde quem tem dinheiro manda, onde o jeitinho conserta tudo, mesmo matando. O que mais me impressiona é a gente ter sentido na pele o que é ser brasileiro, o que é viver em um sistema corrupto, por mais que saia para as ruas e grite, tu não consegue alcançar...”, reclama.

A morte do estudante de Direito Sergio Augusto da Silva, 20 anos, ainda é difícil para seu pai, Sérgio. Os quatro meses posteriores à tragédia foram um inferno em sua vida. Suportar a perda só foi possível com ajuda de medicamentos, psicologia e religião. Mas isso não diminuiu sua luta por um Estado que proteja os cidadãos, assim como Sérgio fez com seu filho em vida.

“Nós, como cidadãos, que pagamos por toda essa estrutura de governo, para proteger, somos tão carentes disso. É como se nós tivéssemos aquele pai para nos proteger, e na hora ele não te protege. Sentimento de abandono, como se fosse o filho abandonado, como se não tivesse para quem gritar, como se fosse abandonado”, desabafa Sérgio, militar da reserva, que deixou o Rio de Janeiro em direção a Santa Maria, onde casou e teve dois filhos.

Sérgio e os outros familiares ligados a associações de vítimas lutam para manter viva a memória do que aconteceu, para dar um significado à tragédia, principalmente, para que não volte a acontecer. “No início, Santa Maria estava afetada e de repente os meios de comunicação, em Santa Maria, tentaram apagar esse acontecimento, como se tivessem morrido um ou dois. Alguns tentaram apagar, ‘esquece, já morreu mesmo’, e não tem você, como pai esquecer, nunca. Tenho que aproveitar esse sofrimento e transformá-lo em força”, diz, o pai, que dessa forma, tenta honrar a morte do filho. “Pensei que ele ia me enterrar....”