Cabeça de porco, estudantes pelados, tinta nos olhos e banho de restos de peixe são algumas da cenas que ganharam visibilidade nas últimas semanas durante trotes universitários. Tradicional em muitas instituições de ensino, a atividade vem gerando polêmica, e parece ser cada vez mais tênue a linha entre a brincadeira saudável e a violência. "Os ritos de passagem são importantes, e a entrada na faculdade deve ser marcada. A questão fundamental, a meu ver, é que este rito não precisa se fundamentar no trote", avalia Antônio A.S Zuin, professor do departamento de educação da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar).
De acordo com o docente, autor do livro O Trote na Universidade: Passagens de um Rito de Iniciação (Editora Cortez), a essência do trote, do ponto de vista psicossocial, é sadomasoquista, uma vez que o calouro internaliza a dor para repassá-la a outros quando se tornar veterano. "Uma coisa está tão associada à outra que parece não haver alternativa. É preciso pensar em opções que não sejam fundamentadas na humilhação", afirma, destacando que os novos rituais podem envolver brincadeiras, recepção calorosa, mas sem associar diversão a sofrimento.
Zuin acredita que os trotes venham causando maior polêmica nos últimos anos por estarem mais violentos, mas também por terem mais visibilidade nas redes sociais. Para ele, aliás, ambos estão relacionados: as atividades são mais agressivas justamente para chamarem mais atenção. "O trote hoje pode ser identificado como violência espetacular", define.
Carlos Augusto Remor, psicanalista e professor do departamento de psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no entanto, vê a situação de modo diferente e crê que o trote não deve ser visto como um ritual. "Isso é uma ilusão, uma invenção narcísica em que um indivíduo se acha melhor que o outro, e por isso o limite entre brincadeira e violência se torna muito fluido", alega. Para o psicanalista, o trote é desnecessário como rito, e o vestibular e a formatura já seriam suficientes como rituais de passagem.
Remor não é o único a criticar a tradição universitária. A professora de psicologia social da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) Rita Khater também acredita ser um exagero considerar o trote um rito essencial. Para ela, essa importância é estabelecida culturalmente, mas acaba banalizada por meio de fatos violentos. "A violência não está no trote, nem no aluno, mas na sociedade, e pode ser vista em diversos eventos sociais. O importante é que ela não seja naturalizada como comemoração", ressalta.
Rita aponta que o momento de integração entre os universitários deveria se dar na direção de construir a cidadania e conscientizar, e isso deve ser feito com o auxílio das instituições de ensino. "Cabe à universidade o papel de educar, desde a entrada do aluno", enfatiza. Para a docente, o trote solidário já é um avanço no processo e pode ter um papel socializador compatível a uma brincadeira.
Na PUC-Campinas, o trote com conotação violenta é coibido desde 2009, quando se criou o Comitê Permanente de Acolhida aos Calouros. "A universidade entende que existe um rito de passagem importante, mas devido à agressividade houve uma deterioração dessa ideia", afirma José Donizeti de Souza, presidente do grupo. Para o professor, a violência ocorre quando o outro não é consultado sobre tipo de ação que vai se realizar e toda vez que há poder exacerbado de alguns indivíduos - no caso, dos veteranos.
O comitê organiza atividades voltadas para os calouros, como a Semana do Ingressante, realizada antes do início das aulas, em que a estrutura da universidade é apresentada para os novos estudantes. A instituição monitora as ações realizadas por cada unidade e incentiva ações solidárias e de integração entre veteranos e calouros - como plantio de mudas e ações em ONGs e entidades -, oferecendo apoio logístico.
Vestindo apenas cueca e com uma máscara sobre a cabeça, cobrindo seu rosto, jovem participa de trote em São Paulo. Na manhã da última quarta-feira (20), ele teve de atravessar a Avenida Paulista agindo de maneira irreverente. Confira, nas imagens a seguir, alguns trotes polêmicos feitos para receber calouros em universidades brasileiras neste ano
Foto: J. Duran Machfee / Futura Press
Ele esperou o semáforo fechar e, no meio da faixa de pedestres, corria de um lado para o outro abordando pessoas
Foto: J. Duran Machfee / Futura Press
Em trajes sumários e escondido sob a máscara, o estudante chamou a atenção de pedestres e motoristas na Avenida Paulista
Foto: J. Duran Machfee / Futura Press
A brincadeira faz parte de uma gincana de calouros que estaria sendo realizada por estudantes da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo
Foto: J. Duran Machfee / Futura Press
Entre as peripécias, o jovem - que seria calouro do curso de Administração da FGV-SP - dava cambalhotas no chão
Foto: J. Duran Machfee / Futura Press
A brincadeira inusitada ocorreu em meio à movimentada Avenida Paulista no final da manhã de quarta-feira (20)
Foto: J. Duran Machfee / Futura Press
As pessoas reagiram com surpresa à brincadeira em São Paulo. O trote - para o qual o aluno teria se voluntariado - é defendido como parte de uma tradicional gincana de calouros
Foto: J. Duran Machfee / Futura Press
A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) divulgou nota de repúdio ao suposto trote realizado por estudantes da Faculdade de Direito no dia 15 de março, durante a recepção aos calouros no prédio que fica localizado na região central de Belo Horizonte. Na primeira imagem, uma jovem está pintada de preto com um cartaz de papelão escrito "Caloura Chica da Silva". A moça está acorrentada pelas mãos e um rapaz de pele clara sorri enquanto segura a corrente
Jovem aparece acorrentada, com o corpo pintado e carregando uma placa na qual se lê Caloura Chica da Silva
Foto: Facebook / Reprodução
Na segunda foto, um estudante está pintado de tinta vermelha e amarrado a uma pilastra enrolado por uma faixa de plástico utilizada em isolamento de acessos. Ao lado e também sorrindo, três estudantes fazem um gesto nazista, com a mão direita estendida para frente. Um deles chegou a colocar um bigode postiço semelhante ao que usava o ditador alemão Adolf Hitler.
Foto: Facebook / Reprodução
Estudantes do curso de direito da UFMG bateram boca após assembleia realizada no dia 19 de março para discutir a repercussão do trote feito por veteranos
Foto: Ney Rubens / Especial para Terra
O estudante Caio Perrone (esq.) negou que o trote tivesse conotação racista. Segundo ele, as brincadeiras são normais
Foto: Ney Rubens / Especial para Terra
Segundo o presidente do Centro Acadêmico, Felipe Gallo, atitudes de combate a esse tipo de trote serão tomadas
Foto: Ney Rubens / Especial para Terra
A unidade de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP) confirmou que os estudantes que ficaram nus durante um trote no final de fevereiro podem ser expulsos da instituição. Na foto, um estudante simula sexo com boneca inflável
Foto: Frente Feminista / Divulgação
Além de tirar a roupa e mostrar os órgãos sexuais, os alunos teriam feito gestos obscenos contra um grupo de feministas que protestava contra o "Miss Bixete", uma espécie de concurso de beleza a que as novatas são submetidas. Na foto, jovem protesta contra o desfile
Foto: Frente Feminista / Divulgação
Em nota, o Coletivo de Mulheres disse que o Miss Bixete é um concurso pensado para reproduzir "o padrão das mulheres como mero objeto ao fetiche masculino". O desfile aconteceu no dia 26 de fevereiro
Foto: Frente Feminista / Divulgação
O grupo decidiu protestar, de forma pacífica, a um ato questionável feito dentro do espaço público da universidade. "Desde o princípio, no entanto, sofremos todos os tipos de agressão verbal e simbólica"
Foto: Frente Feminista / Divulgação
A USP abriu uma investigação para apurar o que aconteceu e os alunos envolvidos podem ser punidos com advertência ou até com expulsão
Foto: Frente Feminista / Divulgação
No entanto, nem todos os trotes são polêmicos nas universidades do Brasil. Em 18 de fevereiro, estudantes aprovados na seleção da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) foram recebidos com os tradicionais banhos de lama e tinta
Foto: Bruno Santos / Terra
No primeiro dia de matrícula, alunos aprovados para estudar na Universidade de São Paulo (USP) foram recebidos com muita tinta e banho de lama
Foto: Bruno Santos / Terra
Estudantes participam de trote no dia da matrícula na USP, em São Paulo
Foto: Bruno Santos / Terra
Além do banho de lama, os alunos também participavam de brincadeiras como futebol de sabão e "guerra" de cotonetes
Foto: Bruno Santos / Terra
O corte de cabelo era feito, segundo os veteranos, somente nos calouros que aceitavam passar a tesoura
Foto: Bruno Santos / Terra
Ninguém era pressionado a fazer o que não queria, de acordo com os estudantes
Foto: Bruno Santos / Terra
'O trote está tranquilo, não tem maldade', garantiu Bruno Bogato, 17 anos, que vai cursar mecânica naval
Foto: Bruno Santos / Terra
Fernando Caputo (esq.), 20 anos, Willian Murasawa (centro), 28 anos, e Lucas Pereira, 19 anos disseram que ninguém 'pegou pesado' no trote
Foto: Bruno Santos / Terra
O banho de lama já é tradicional no trote da Escola Politécnica da USP (Poli-USP), na capital paulista
Foto: Bruno Santos / Terra
Estudantes participam de trote no dia da matrícula na USP, em São Paulo
Foto: Bruno Santos / Terra
Estudantes participam de trote no dia da matrícula na USP, em São Paulo
Foto: Bruno Santos / Terra
Estudantes participam de trote no dia da matrícula na USP, em São Paulo
Foto: Bruno Santos / Terra
Estudantes participam de trote no dia da matrícula na USP, em São Paulo