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Suíço compra área e leva escola pública 'de presente'; local corre risco

Escola com risco de desabamento não pode ser reformada porque terreno foi vendido para investidor, que quer construir apartamentos no local

3 set 2013 - 11h05
(atualizado em 4/12/2013 às 16h58)
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Com cerca de 700 alunos, a Escola de Ensino Fundamental Alvarenga Peixoto, único colégio público da Ilha Grande dos Marinheiros, uma das regiões mais pobres de Porto Alegre, vive mais um drama de sua trajetória. Em agosto do ano passado, quando o Terra esteve na instituição para tentar compreender os motivos que faziam dela a pior no Índice de Desempenho da Educação Básica (Ideb) entre todas as entidades de ensino da capital gaúcha, foi constatado que turmas diferentes eram amontoadas em uma mesma sala de aula, um dos prédios de madeira ameaçava cair e a rede elétrica precisava ser refeita. Passado um ano, além desses problemas - que seguem -, ainda há outro risco iminente: o despejo, que deve ocorrer se o Estado não conseguir negociar a área da escola, vendida a um investidor estrangeiro interessado em construir um megaempreendimento imobiliário no local.

Na última semana, o Terra voltou ao local para verificar se a promessa de reforma da Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul, feita ano passado, havia sido cumprida. O governo diz que até tentou iniciar as obras, mas esbarrou em uma questão legal: o terreno não pertencia ao Estado, e sim ao engenheiro suíço Giovanni Desantis, que comprou a área do grupo Ipiranga em outubro de 2012 por R$ 900 mil.

Escola recebeu notificação em dezembro para desocupar a área
Escola recebeu notificação em dezembro para desocupar a área
Foto: Reprodução

Em dezembro do ano passado, a direção da escola recebeu uma notificação extrajudicial do novo proprietário para deixar o local num prazo de 60 dias (veja na imagem). Desde então, o Ministério Público passou a investigar o caso e em janeiro fez a primeira reunião com representantes da comunidade da Ilha dos Marinheiros. Além da área da escola, uma creche mantida pela Rede Marista, um posto de saúde da prefeitura de Porto Alegre e cerca de 20 moradias, segundo estimativa da associação de moradores, estão localizadas dentro do limite de 51 hectares do terreno e também foram notificados para sair do local.

"Foi uma surpresa tudo isso, tínhamos certeza de que a reforma seria feita. Mas aí a secretaria (da Educação) disse que não podia fazer nada porque o terreno não era do Estado", disse a diretora, Kátia Schirmer. Ela afirmou que desde que começou a dar aulas na Alvarenga Peixoto, há 10 anos, a escola espera por uma reforma. "Fazemos um remendo aqui, outro lá, mas não adianta, precisa demolir tudo e construir um prédio novo", afirmou, ao mostrar que a estrutura de madeira está torta, comprometendo a segurança dos alunos. Ela também comentou que a rede elétrica foi condenada pela Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE).

O diretor administrativo da Secretaria da Educação do Estado, Claudio Sommacal, admitiu que a pasta não tinha conhecimento dos problemas envolvendo a propriedade da terra quando confirmou a realização das obras, no ano passado. "O secretário (José Clovis de Azevedo) anunciou a reforma porque foi feito um levantamento pela CRE (Coordenadoria Regional de Educação), que desconhecia a regularidade da área. Ela olhou a precariedade dos prédios, mas não se ateve a verificar a situação da área", confirmou Sommacal. Segundo ele, o governo fez uma reunião com os representantes do investidor no Brasil há duas semanas para discutir a doação do terreno para o Estado, mas não se chegou a um acordo.

Escritura mostra que terreno pertence a suíço
Escritura mostra que terreno pertence a suíço
Foto: Reprodução

Uma norma do Tribunal de Contas impede que seja feita qualquer tipo de melhoria em prédios públicos cuja dominialidade da área não seja do Estado. A escola Alvarenga Peixoto foi instalada na área da refinaria Ipiranga em 1985, por meio de um comodato, porém nunca houve preocupação em transferir definitivamente o terreno para o Estado, que agora tem um novo dono interessado no espaço. "Temos outras escolas nessa situação, porque o requisito da dominialidade passou a ser exigido pelos tribunais apenas há uns 10 anos", disse o diretor da secretaria.

Uma nova reunião será feita em meados de setembro, desta vez com a presença do investidor estrangeiro. O governo vai tentar fazer um acordo para a doação da área e, caso não haja consenso, vai entrar com uma ação de reintegração de posse justificando o interesse público. O diretor da Secretaria acredita numa solução sem que seja preciso ingressar na Justiça. "É normal onde se tenha empreendimento habitacional, como é o caso do entorno da escola Alvarenga, que me dizem que vão construir em torno de 600 a 800 habitações, para esse empreendedor ser habilitado e credenciado a fazer esse projeto lá, ele vai precisar de uma contrapartida social, que provavelmente será doar o terreno e possivelmente participar do processo de construção de uma nova escola", disse Sommacal.

A advogada que representou o investidor na reunião com ao governo não foi localizada para falar sobre a possibilidade de acordo. Segundo o arquiteto responsável pelo projeto de construção das moradias no terreno, César Balestro, Giovanni Desantis está na Suíça (ele se divide entre os negócios em Porto Alegre e a Europa) e deve chegar à capital gaúcha na segunda quinzena deste mês. Balestro garante que o investidor não quer retirar a escola do local, mas pretende negociar com o Estado já que têm interesse em aprovar um projeto para a construção de moradias por meio do programa Minha Casa Minha Vida.

O arquiteto disse que a notificação extrajudicial encaminhada à escola para deixar o local é apenas uma "praxe" jurídica para comunicar que o proprietário quer regularizar a situação da área. "Não é uma ameaça, apenas uma formalidade jurídica. A escola não tem como desaparecer dali, isso o Giovanni sabe. Ele só quer ter o direito de negociar", afirmou, ao ressaltar que qualquer empreendimento desse porte precisa abrigar uma escola.

De acordo com Balestro, das 51 hectares adquiridas na ilha, circundada pelo lago Guaíba, pelo menos 90% corresponde a áreas de preservação permanente (APP) e não pode sofrer qualquer intervenção. Os outros 10% são classificados como áreas de proteção ambiental (APA), que permitem empreendimentos desde que geridos de forma sustentável, respeitando os recursos naturais. Segundo o arquiteto, o projeto está sendo reformulado para atender todas as espeficidades da legislação ambiental.

Ele evitou entrar em detalhes sobre o projeto para o local, mas disse que os planos não contemplam a construção de moradias de luxo, como chegou a ser divulgado a moradores da Ilha dos Marinheiros. "Sobre o condomínio classe A, ele (Giovanni) realmente teve a intenção de negociar uma parte (da área de preservação), mas na época não conhecia bem a legislação daqui. Na Suíça é diferente, lá ele teria conseguido". O arquiteto disse que a ideia agora é fazer 744 apartamentos em blocos de três andares dentro do Minha Casa, Minha Vida, com uma primeira etapa para famílias com renda de até três salários mínimos e uma segunda fase para famílias que ganham até dez salários mensais.

O arquiteto ainda garantiu que as intenções do investidor para a Ilha dos Marinheiros são "as melhores", e adiantou que ele pretende construir uma espécie de tecnoparque no local, para incubar empresas, promovendo o desenvolvimento da região. "Ele tem projetos muito interessantes, só que está havendo uma resistência enorme, absurda. Não imaginava que seria tão burocrática a coisa", completou.

Comunidade teme perder escola

Nas rodas de conversa no entorno da escola Alvarenga Peixoto o que mais se comenta é sobre o "suíço" que comprou parte da Ilha dos Marinheiros. Eles não conhecem o investidor, não sabem ao certo quais são seus planos, mas o medo de perder a única instituição de ensino da Ilha dos Marinheiros toma conta da maioria. Neimar de Souza Oliveira, proprietário de um pequeno comércio, fala com orgulho da escola pela qual ele e os filhos passaram e que agora recebe a neta de 7 anos. "Essa escola faz parte da nossa vida. Tirar ela daqui vai ser um dissabor, sem contar que não quero transferir a minha neta para outro colégio, mais longe", disse.

<p>A professora Mara Oliveira conta que, em um ano, nada foi feito para melhorar as condições da escola</p>
A professora Mara Oliveira conta que, em um ano, nada foi feito para melhorar as condições da escola
Foto: Angela Chagas / Terra

A mãe de Neimar, Marina Souza Oliveira, afirmou que foi uma das primeiras a colonizar a ilha, há mais de 40 anos. Todos foram chegando, capinando a terra e construindo suas moradias, contou ela, ao ressaltar que os moradores não têm título de propriedade das terras. "Ninguém tem escritura, mas isso não quer dizer que a terra não seja nossa", afirmou.

Presidente da associação de moradores da ilha, Nazareth da Silveira Nunes está na região há 43 anos e formou os três filhos na escola. Além de temer pela perda do colégio, que nos dias de enchente do lago Guaíba (como no caso da semana passada) ainda serve de abrigo para os moradores, ela contou que pode ser despejada porque sua casa está na área adquirida pelo investidor. "Já entrei com uma ação de usucapião (direito de posse de uma área por causa do tempo de permanência no local) e ninguém me tira daqui. Somos 5 mil moradores lutando pelas casas e pela escola", disse.

Sueli Oliveira de Almeida era uma das moradoras da ilha que na última semana estava abrigada na escola por causa da enchente no Guaíba. A casa que serve de abrigo para os três filhos ficou com quase um metro de água e ela passou a dividir uma das salas de aula com outras quatro famílias. "Essa escola é tudo para a gente. Não tenho como levar meus filhos para estudar em um colégio mais longe se a escola fechar".

O diretor da Secretaria da Educação garantiu que os moradores podem ficar tranquilos que uma solução será encontrada, mas disse que a pasta já está trabalhando para encontrar vagas para parte dos alunos em outras escolas da região já que a estrutura é precária e compromete a segurança dos estudantes. Ele frisou que, enquanto não se chegar a um acordo, nenhuma reforma poderá ser feita na Alvarenga Peixoto. "Nada pode ser feito, nem em caráter emergencial, nem licitado. O Tribunal de Contas barra qualquer coisa", disse.

Enquanto isso, na sala do quinto ano comandada pela professora Mara Oliveira, os estudantes seguem enfileirados em classes apertadas porque a sala foi divida ao meio de forma improvisada - com pedaços de madeira e por um armário. "A única coisa que mudou no último ano foi a disposição das classes. O resto continua tudo igual", lamentou.

Creche e posto de saúde também passam por indefinição

Localizados no mesmo terreno que a escola pública, a creche que abriga 150 crianças da comunidade e o posto de saúde da prefeitura também receberam a notificação para deixar o local. A administração municipal informou, por meio da Procuradoria Geral, que tem conhecimento da situação, mas que nenhuma medida judicial foi tomada ainda para garantir a permanência da unidade no local. Já a Rede Marista, que controla a creche, participa ativamente das reuniões da comunidade sobre o assunto e espera que a área seja considerada de interesse social pelo Estado.

"Não entramos com ação judicial porque estamos na mesma gleba que o colégio. E acreditamos que esta área é um espaço público, pelo fato de estar a tanto tempo servindo para a educação de crianças e jovens", disse o irmão Miguel Antônio Orlandi, que trabalha na comunidade. Ele ainda falou sobre a situação dos moradores, que poderiam ser despejados, mesmo estando no local há mais de 40 anos. "Acreditamos que esse projeto possa servir a interesses corporativos, de quem quer fazer uma limpeza na entrada da ilha (região mais pobre) para servir de porta de entrada às moradias de luxo que estão mais ao sul", emendou irmão Miguel.

Assim como o religioso, a líder comunitária Beatriz Gonçalves Pereira, que trabalha na ONG Camp (Centro de Assessoria Multiprofissional) se empenha para garantir a permanência dos aparelhos públicos e dos moradores na área vendida. "Estamos tentando convencer a população atingida a entrar com ação de usocapião da área. São pessoas que moram ali há 20, 30, 40 anos e têm direito de posse, assim como a escola", afirmou.

O promotor do Ministério Público Estadual que acompanha o caso não quis falar sobre a investigação, apenas afirmou, por meio da assessoria do órgão, que espera um parecer da Procuradoria Geral do Estado (PGE) sobre a situação da área, já que existe uma suspeita de que o investidor estrangeiro tenha comprado uma área que pertencia ao próprio Estado. A PGE disse que está analisando o caso e que vai aguardar que o proprietário ingresse na Justiça para se manifestar. Até que tudo se resolva, a escola Alvarenga Peixoto continua tentando cumprir sua função como espaço de educação, mesmo sem estrutura digna para a missão.

Fonte: Terra
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