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RS: fechamento de escola gera protestos de moradores de rua

Instituição de Porto Alegre formou 39 adultos no ensino fundamental desde 2009

15 nov 2014 - 10h50
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<p>Manifestação dos alunos da EPA realizada na Feira do Livro em Porto Alegre, no dia 6 de novembro, contra a transferência das atividades da escola para outro local</p>
Manifestação dos alunos da EPA realizada na Feira do Livro em Porto Alegre, no dia 6 de novembro, contra a transferência das atividades da escola para outro local
Foto: Renato Farias dos Santos / Divulgação

“Ao invés de construir escolas, estão tirando as que existem”. O morador de rua e aluno da Escola Municipal Porto Alegre (EPA) Maurício Anacleto de Almeida se refere à transferência da EPA, escola criada há 19 anos com o objetivo de atender pessoas em situação de rua. O novo endereço da instituição, que hoje funciona no Centro Histórico, deve ser o Centro Municipal de Educação dos Trabalhadores Paulo Freire (CMET), no bairro Santana, provavelmente a partir de dezembro. A Secretaria Municipal de Educação (SMED) pretende destinar o espaço da EPA para uma nova escola infantil, mas a decisão é contestada por alunos, professores e um grupo de vereadores.

Segundo o presidente do Conselho da Escola, o professor Renato Farias dos Santos, neste ano, 116 alunos foram matriculados na instituição, mas apenas cerca de 30 frequentam a escola regularmente. A instituição é uma das únicas escolas públicas com atendimento prioritário a sem-tetos no Brasil. A maioria dos alunos tem entre 18 e 26 anos e mora na rua ou vive em situação vulnerável.

Desde 2009, quando a EPA passou a oferecer o ensino fundamental completo, 39 alunos se formaram, de uma média de 93 matriculados por ano nos últimos seis anos, incluindo as rematrículas. Deste total, não há uma estimativa de quantos estariam aptos para se formar. O número de formados parece pouco, mas Santos lembra que é preciso considerar o contexto itinerante e social dos alunos. “Se você considerar que são pessoas que estavam totalmente afastadas da educação, a grande maioria deles em situação de rua, sem expectativas e afastados desde a infância da escola, o número é significativo. Em percentual é pequeno, mas levando em conta a situação de muitos, que começam a ser alfabetizados com 20 ou 30 anos, é um número alto”.

Muitos alunos já saíram da rua. É o caso de Adriano Pereira de Souza, de 32 anos, hoje casado, empregado, morando em sua própria casa e ainda cursando o EJA. “Esse lugar é um alívio (a EPA), pois aqui não uso drogas. Adoro as oficinas e assim como eu, existem outras pessoas que gostam de estudar aqui. Na rua, já comi até comida do lixo. Na EPA, aprendi muitas coisas, até montei uma horta. Fiz minha carteira de trabalho, de identidade. Minha vida mudou. Tem alunos que ainda não têm casa, mas a escola é a casa deles”, afirmou.

Entre os serviços oferecidos pela escola está a Educação de Jovens e Adultos (EJA) do ensino fundamental, oficinas de cerâmica, reciclagem de papel e informática. O diferencial da EPA é o Serviço de Acolhimento, Integração e Acompanhamento (SAIA), que faz parte do projeto pedagógico. Os alunos recebem ajuda para solicitar documentos, como a identidade, exigida no momento da matrícula. Além disso, existe uma orientação e uma metodologia de redução de danos para acalmar os que chegam mais alterados, normalmente em função de álcool ou drogas. Os alunos também podem tomar banho e dormir durante a manhã na escola, além de receberem duas refeições diárias: café da manhã e almoço.

<p>Engajados para evitar a mudança, os alunos têm organizado atos públicos</p>
Engajados para evitar a mudança, os alunos têm organizado atos públicos
Foto: Renato Farias dos Santos / Divulgação

Para Santos, a decisão de transferência da escola deveria considerar a territorialidade e o contexto em que vivem esses alunos. “Eles têm uma forte ligação com a região central. Moram na rua mas não é por isso que conseguem circular em qualquer parte da cidade. Lá  no CMET (o novo endereço da EPA), estão acostumados com trabalhadores, é outra realidade. O que acontece quando algum de nossos alunos chegar alterado para a aula?”, questiona.

"A EPA abriu portas para mim"

O aluno Maurício também manifesta preocupação com a realidade da nova escola e com os alunos que um dia foram viciados em drogas. “Ao lado do CMET, existe uma 'boca'. Muitos alunos podem ter recaídas. Sem contar que, se começar a sumir coisas na nova escola, a culpa vai recair sobre nós, como sempre acontece. A secretária Cleci não vê a educação que recebemos na EPA e nem o amor e carinho que temos por este lugar”, argumenta. A SMED se comprometeu em manter os serviços oferecidos hoje, mas Santos e os alunos temem que a promessa não seja cumprida.

Engajados para evitar a mudança, os alunos têm organizado atos públicos. O último ocorreu em 6 de novembro, na Feira do Livro da capital gaúcha, que acontece até o dia 16. Entre os manifestantes, estava o ativista do Movimento Nacional da População de Rua Richard Gomes de Campos. “Queremos mostrar que esse discurso de que as pessoas não querem sair da rua não é bem assim. Vemos alunos se mobilizando para manter a escola, e o poder público, que deveria garantir o direito à educação, está tentando violá-lo”.

Maurício, que ainda mora na rua, reafirma a vontade dos alunos de manter a escola e garantir que possam frequentar um espaço que chamam de casa. “A EPA abriu portas para mim que a prefeitura quer fechar. Mas não vamos deixar. Vamos utilizar a educação que recebemos aqui para exigir nosso direito conversando, sem violência. Na EPA, aprendemos a falar e aprendemos que temos direitos. Não vamos deixar essa porta fechar”, afirma.

Secretaria quer espaço para escola infantil

A justificativa da SMED para a transferência é o cumprimento da universalização do ensino infantil e a obrigação do município em atender os alunos de zero a cinco anos de idade. “Precisamos transformar a EPA em escola infantil para atender a demanda de vagas do centro. O Ministério Público nos cobra essas vagas. É preciso abrir, no local, uma escola para até 120 crianças. Temos necessidade de ofertar essas vagas infantis para que eles não fiquem na rua depois”, informa a chefe de gabinete da SMED, Eliane Meleti.

Ela também afirma que os alunos continuarão recebendo os mesmos serviços no CMET e que os professores também poderão ser transferidos para a nova escola. “Os serviços atuais serão mantidos no centro (CMET), inclusive as oficinas e o serviço de acolhimento. Além de outros, como o Pronatec e oficinas de canto, música e corte e costura”. Segundo Eliane, os alunos da EPA não receberão passagem de ônibus da prefeitura para estudar na nova escola, que fica a 3,5 km da atual.

Para a vereadora Sofia Cavedon, vice-presidente da Comissão de Educação da Câmara Municipal, a SMED demonstrou um desconhecimento do contexto em que vivem os estudantes. “A territorialidade é decisiva na questão. É muito grave desistir desses alunos que já perderam a infância e estão em situações de vulnerabilidade”, diz. Sofia afirma ainda que a decisão da SMED foi autoritária, pois outros órgãos educacionais não foram consultados. “Foi chamada uma reunião no Conselho Escolar para comunicar a decisão. A secretária (de Educação do município, Cleci Maria Jurach) informou que é uma decisão de gestão e isso desrespeita o sistema municipal de ensino, que prevê a gestão democrática, com eleições, votação em conselho escolar e propostas apresentadas em conferência para discussão”, diz. "Transferir a escola seria enfraquecer o pouco que existe de trabalho articulado para enfrentar a situação, dando as costas para um problema gravíssimo de Porto Alegre. A educação, vinculada a projetos de vida, moradia e renda é o processo emancipatório que tira essas pessoas da rua”, opina Sofia.

Como resultado de uma audiência pública, que aconteceu no Plenário da Câmara Municipal, em 30 de outubro, foi criado um grupo de trabalho para analisar a possibilidade de manter as atividades da EPA onde estão. Dentre as possibilidades, foram propostos novos terrenos para a escola infantil e parcerias com os poderes estatal e federal. “As escolas estaduais do centro têm vagas e salas ociosas que poderiam ser cedidas ao município. Mais de 300 municípios gaúchos já têm essa colaboração”, afirma a vereadora Sofia.

Segundo o defensor público da União, Geórgio Endrigo Carneiro da Rosa, a demanda da prefeitura, que alega precisar cobrir um déficit de aproximadamente 600 vagas na educação infantil, não seria atendida com a utilização do espaço da EPA, que comportaria cerca de 80 crianças. “A Defensoria Pública é contra a retirada dos direitos de um para conceder a outros. Existem recursos federais, estaduais e municipais para se atender o direito à educação”, opina.

A prefeitura ainda não se posicionou em relação às soluções propostas na reunião. Mas houve uma conquista do grupo que defende o atual endereço da escola: as reuniões de transição da EPA para a CMET que iniciariam o processo de transferência foram suspensas após a reunião do grupo.

A nova escola

Escolhida para ser a nova escola a acolher os estudantes em situação de rua, o CMET existe há 25 anos, oferece o EJA e também trabalha com um público semelhante, segundo a vice-diretora, Lúcia Barth Ckless. A escola atende moradores de rua e abrigados, estudantes em regime semiaberto e deficientes físicos. De acordo com Lúcia, o centro apoia a vontade dos alunos da EPA de permanecerem onde estão, contudo, se a transferência for efetivada, ela informa que a transição será feita com os profissionais da escola. “Estaremos abertos. Teremos de reorganizar nosso espaço e algumas propostas de trabalho com os alunos, como fizemos com os cegos e desabrigados, por exemplo”. A vice-diretora não soube informar quantos alunos em situação de rua são atendidos pelo centro.

Cartola - Agência de Conteúdo - Especial para o Terra Cartola - Agência de Conteúdo - Especial para o Terra
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