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Personagem de quadrinhos, Mafalda ensina sobre cultura da Argentina

22 jan 2012 - 08h04
(atualizado em 1/2/2012 às 18h25)
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Histórias em quadrinhos não são efêmeras nem servem apenas para diversão. A personagem argentina Mafalda, por exemplo, que deixou de ser publicada há quase 40 anos, permanece encantando leitores. Seu criador, Joaquín Salvador Lavado, o Quino, que em 2012 completará 80 anos, é reconhecido internacionalmente pela pequena menina questionadora. Além de ajudar no espanhol, caso o estudante opte pela edição original de Mafalda, a leitura das tiras também serve para entender a realidade sociocultural e a formação econômica da Argentina.

A personagem Mafalda questiona o mundo ao seu redor e leva o leitor a refletir sobre a realidade
A personagem Mafalda questiona o mundo ao seu redor e leva o leitor a refletir sobre a realidade
Foto: Editora WMF Martins Fontes / Divulgação

A ideia para a personagem nasceu de um trabalho para uma agência de publicidade, que precisava de um ilustrador para o lançamento de uma linha de produtos eletrodomésticos chamados Mansfield - daí o nome Mafalda, que lembrava a marca, por começar com a letra "M". O anúncio acabou não sendo publicado, mas a ideia sobreviveu. Em setembro de 1964, a personagem foi finalmente apresentada ao público, na revista semanal Primera Plana. Daí, Mafalda se mudou para o jornal diário El Mundo, um ano depois. Sua última morada foi na revista semanal Siete Días Ilustrados, onde ficou de 1967 até o final de sua "vida", em junho de 1973. Suas mais de 1,9 mil tiras já foram publicadas em mais de 20 idiomas, incluindo russo, polonês, norueguês e, claro, português.

Com seu humor ingênuo e muita perspicácia, a pequena menina, que na primeira tira tinha 6 anos, questiona o mundo ao seu redor e leva o leitor a refletir sobre a realidade. "Mafalda é, sobretudo, uma personagem crítica, que não aceita o mundo que 'recebeu', que o questiona constantemente a partir de seus referenciais, num movimento híbrido", explica o mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor de História Carlos Eduardo Rebuá Oliveira. Para Rebuá, a personagem intercala ações de uma criança típica, que tem medo, depende dos pais e é ingênua, e atitudes de uma criança excepcional, que constrói belas metáforas, saindo da dimensão do concreto, que caracteriza a criança em seus anos iniciais. "Lúcida e crítica, Mafalda consegue discutir a Guerra do Vietnã, por exemplo, e muitas vezes colocar os adultos em situações embaraçosas", constata.

Os demais personagens

Seu irmão, Guille, e seus pais, ao lado dos amigos Suzanita, Manolito, Filipe, Miguelito e Libertad completam a trama da principal obra de Quino. Cada um deles tem sua importância dentro da história, bem como sua associação com a realidade fora dela. Com exceção dos pais de Mafalda, que representam, segundo o professor, a classe média latino-americana, sempre endividados, os demais personagens secundários também mesclam a ingenuidade infantil e a percepção adulta. Os estereótipos ficam claros se analisarmos a paixão de Filipe, o mais velho da turma, com 8 anos, por Zorro, o Cavaleiro Solitário. A conexão é claramente uma alusão à influência americana na política argentina.

Questionamento da realidade

A partir desses confrontos com os adultos e até com as outras crianças, Mafalda apresenta importantes lições. Segundo o professor, que também é autor da dissertação de mestrado Mafalda na aula de História: a crítica aos elementos característicos da sociedade burguesa e a construção coletiva de sentidos contra-hegemônicos, é possível observar elementos basilares do tipo de sociedade da qual fazemos parte. O individualismo, por exemplo, pode ser visto com clareza nos personagens Manolito e Susanita - respectivamente, filho de um imigrante espanhol dono de um armazém na rua de Mafalda e a melhor amiga da figura principal, cujo objetivo é crescer e arranjar um bom marido. Quino também critica duramente a falta de liberdade no país, ao nomear uma pequena menina, amiga de Mafalda, que mede a metade que ela, com o sugestivo nome de Libertad.

O contexto histórico

Mafalda é a personagem de histórias em quadrinhos mais popular da Argentina e uma das mais conhecidas no mundo, mas teve uma curta trajetória (1964 a 1973). Por isso mesmo, um alerta: ao contrário do que muitos pensam, as tiras não foram publicadas durante a ditadura do trio Jorge Videla, Emilio Massera e Orlando Agosti, conhecida como Proceso de Reorganización Nacional (1976-1983) - um dos seis golpes civil-militares pelos quais aquele país passou no século 20.

"Mafalda 'nasceu' em uma década bastante conturbada, os anos 1960, e viu começar a década seguinte, também turbulenta. Surgiu durante o governo de Arturo Umberto Illia (1963-1966), derrubado em junho de 1966 por outro golpe, menos conhecido aqui no Brasil e cujo saldo de mortos e desaparecidos foi menor que no período do Proceso", lembra Rebuá. Tratava-se da chamada Revolução Argentina, que colocou no poder os generais Juan Onganía, Roberto Levingston e Alejandro Lanusse.

A aproximação com o Brasil

Para o professor, é possível estabelecer vínculos entre o período histórico argentino retratado em Mafalda e a realidade brasileira no mesmo momento. No primeiro ano de publicação da tira, no Brasil é deflagrado o Golpe Militar, que instala uma ditadura que duraria 21 anos. "No entanto, é importante ressaltar que a Argentina presenciou muito mais momentos de exceção, de repressão, do que o Brasil. Somente o período do Processo matou quase 30 vezes mais que a ditadura brasileira, sendo que a ditadura deles durou sete anos, um terço

do tempo da nossa", analisa o professor.

Fatos vivenciados pela turma

Apesar de seu curto período de existência, vários fatos importantes da história mundial foram vivenciados - e devidamente registrados - pela turminha. "Durante o tempo de vida de Mafalda, aconteceram a caça aos comunistas pós-Revolução Cubana; as ditaduras civil-militares na América do Sul, como o caso brasileiro (1964-1985); o assassinato de líderes como Malcom X, em 1965, Che Guevara, dois anos depois, na Bolívia, com participação da CIA, e Martin Luther King, em 1968", enumera o professor.

Como fatos positivos para a esquerda, Rebuá destaca as movimentações de Maio de 1968; a Primavera de Praga, que tentou construir uma democracia socialista na Tchecoslováquia de Dubcek; a derrota estadunidense no Vietnã, à custa de milhares de vidas dos dois lados e a eleição de Salvador Allende no Chile, em 1970, o primeiro marxista eleito democraticamente nas urnas.

Outros acontecimentos importantes do período, conta Rebuá, "são a polêmica chegada do homem à Lua, em 1969, no bojo da corrida espacial com a União Soviética; o fim dos Beatles, fato que sem dúvida afetou profundamente a beatlemaníaca Mafalda, e o tricampeonato da seleção brasileira de futebol no México - o que também não deve ter agradado aos conterrâneos da baixinha argentina, ambos em 1970", finaliza.

Cartola - Agência de Conteúdo - Especial para o Terra Cartola - Agência de Conteúdo - Especial para o Terra
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