Assistir novelas, um dos grandes hábitos do brasileiro, sobreviveu à ditadura - mas não sem algumas cicatrizes. Confira obras que foram vetadas ou modificadas por conta de exigências do DCDP. Que novela brasileira já foi completamente censurada? Cartola - Agência de Conteúdo O ano é 1975. Pouco depois do jantar, a família se reúne na sala. Com a TV ligada, assiste ao final do telejornal e espera pelo início da nova novela das 20h. É então que o apresentador Cid Moreira lê um editorial que marca um dos momentos mais emblemáticos da repressão à produção cultural brasileira: assinado pelo presidente da Rede Globo, Roberto Marinho, o texto anuncia o veto à novela "Roque Santeiro", que estrearia em seguida. Censurada, ela só vai ao ar 10 anos mais tarde, com elenco reformulado - José Wilker e Regina Duarte assumem os lugares de Francisco Cuoco e Betty Faria como Roque e viúva Porcina. Essa decisão do governo militar foi apenas uma de uma série capaz de tirar o sono de atores, diretores e roteiristas. "Quando falamos em produção cultural, é preciso entender que as ações sobre televisão, rádio, cinema, jornal e literatura eram diferentes. A produção televisiva era submetida ao Departamento de Censura e Diversões Públicas (DCDP). Em alguns momentos, a repressão é maior do que em outros", diz a professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP) Sandra Reimão. Assistir novelas, um dos grandes hábitos do brasileiro, sobreviveu à ditadura - mas não sem algumas cicatrizes. Para não esquecer o passado e, assim, não repetir os erros no futuro, no dia 3 de agosto é comemorado o fim da censura no Brasil, de acordo com a Constituição Brasileira de 1988. Confira a seguir algumas obras que foram vetadas ou modificadas por conta de exigências do DCDP. Especial para o Terra Irmãos Coragem (junho de 1970 a junho de 1971) Escrita por Janete Clair, fazia uma analogia entre a política brasileira da época e a postura arbitrária do coronel de Coroado, onde se passava a trama. O coordenador do Núcleo de Análise da Teledramaturgia (NAT) da Universidade do Vale Do Rio dos Sinos (Unisinos), no sul do País, Andres Kalikoske, lembra a candidatura do personagem Jerônimo Coragem à prefeitura da cidade. 'Como a novela atingia tanto a audiência feminina quanto a masculina, tornou-se um trunfo para os políticos esquerdistas, que engambelaram os populares para que anulassem seus votos. Foi assim que, durante as eleições de 1970, em que se elegeriam senadores e vereadores, grande parcela da população brasileira anulou seu voto votando em 'Jerônimo Coragem', diz. Segundo a TV Globo, a censura fez com que a autora criasse várias tramas, que a ajudaram a modificar o roteiro de acordo com a pressão exercida pelo governo. Foto: "Reprodução / TV Globo O Homem Que Deve Morrer (junho de 1971 a abril de 1972) Também escrita por Janete Clair, tratava da história de um homem com trajetória semelhante à de Jesus Cristo. Com o argumento vetado pela censura e os scripts dos dez primeiros proibidos, a autora foi obrigada a se basear no livro 'Eram os Deuses Astronautas?', de Erich Von Däniken. De acordo com a TV Globo, essa foi a estratégia para que Janete pudesse abordar os poderes mediúnicos de Ciro - relacionando-os aos extraterrestres, tema abordado pelo escritor suíço. Para o professor da Unisinos, as telenovelas foram os produtos mais atingidos pela ditadura, já que se tratavam de narrativas do cotidiano. 'Por um lado, significou a intimidação de excelentes autores nacionais, que se retiraram da indústria e apostaram no teatro para contar suas histórias. Mas, por outro, os que ficaram buscaram saídas interessantes para driblar os militares, especialmente por meio da linguagem ambígua, que eventualmente não era percebida, ou de narrativas críticas sofisticadas, que, quando percebidas pelos militares, já estavam na boca do povo e era tarde demais', diz. Foto: Reprodução / TV Globo Selva de Pedra (abril de 1972 a janeiro de 1973) Mais uma novela das 20h escrita por Janete Clair, tratava de reencarnação, intolerância e preconceito - temas polêmicos para a realidade da época. A produção também sofreu modificações do DCDP: de acordo com a TV Globo, a sinopse apontava o casamento entre Cristiano (Francisco Cuoco) e Fernanda (Dina Sfat) depois que Simone (Regina Duarte) fosse considerada morta em um acidente de carro. O departamento, no entanto, vetou a união sob o argumento de que a personagem estava viva e que o casamento consistiria em bigamia. Como resultado, a autora teve de reestruturar a novela, reescrevendo 22 capítulos - sete em um único fim de semana. Fernanda acabou abandonada no altar. 'Para as emissoras de TV significou um prejuízo absurdo, pois era necessário gravar novamente cenas e até capítulos já finalizados', destaca Kalikoske. Foto: Reprodução / TV Globo O Bem-Amado (janeiro de 1973 a outubro de 1973) A trama de Dias Gomes sofreu restrições no vocabulário dos personagens. 'A censura proibiu que alguns personagens fossem chamados de ‘coronel’, como o folclórico prefeito Odorico Paraguaçu, ou Capitão, apelido de Zeca Diabo. A justificativa era de que o tom era pejorativo e atingia os militares', diz o coordenador do Núcleo de Análise da Teledramaturgia (NAT) da Unisinos, Andres Kalikoske. 'O tema de abertura também teve que ser substituído: saiu uma música do Toquinho com o Vinícius de Moraes e entrou uma genérica, gravada pelo coral da Som Livre', aponta. De acordo com a TV Globo, a música original era 'Paiol de Pólvora', proibida pela censura devido ao verso “estamos sentados em um paiol de pólvora”. Foto: Reprodução / TV Globo Fogo sobre Terra (maio de 1974 a janeiro de 1975) Com autoria de Janete Clair e direção de Walter Avancini, 'Fogo sobre Terra' iria ao ar um ano antes, sob o título 'Cidade Vazia'. Liberada posteriormente, acabou sofrendo intervenções em algumas de suas cenas. Segundo a TV Globo, a primeira delas se deu quando Pedro Azulão (Juca de Oliveira) convoca os cidadãos para pegarem armas para evitar a demolição da cidade de Divinéia. Para o DCDP, aquele era um estímulo à guerrilha. A sequência teve de ser alterada, e o personagem acabou preso acusado de invasão de domicílio, sequestro e tentativa de homicídio. Foto: Reprodução / TV Globo Pecado Capital (maio de 1974 a junho de 1976) "Dinheiro na mão é vendaval". A trama, exibida às 20h, girava em torno de um triângulo amoroso formado por um taxista, um rico viúvo e uma jovem operária que sonhava mudar de vida. A história de Carlão (Francisco Cuoco), escrita por Janete Clair, é uma obra da ditadura. Isso porque o sucesso nasceu da necessidade de encontrar uma substituta para "Roque Santeiro", tarefa para a qual escreveu uma sinopse em tempo recorde. À época, a Globo transmitia um compacto de "Selva de Pedra", que deu lugar a uma das produções de maior audiência na história da emissora. "O interessante é que, diferentemente do que ocorreu em alguns países da América Latina, durante o regime militar a TV brasileira não se rendeu ao melodrama e seguiu apostando em narrativas verossímeis. Hoje temos know-how em um modelo próprio de produzir teledramaturgia, que tenta ser copiado sem sucesso por diversos países", avalia o coordenador do Núcleo de Análise da Teledramaturgia (NAT) da Unisinos, Andres Kalikoske. Foto: Reprodução / TV Globo Escalada (janeiro de 1975 a agosto de 1975) Em uma história de quedas e superações, a novela de Lauro César Muniz retratava períodos importantes da história do Brasil, como a construção de Brasília. A censura federal, no entanto, impediu a menção ao nome do ex-presidente Juscelino Kubitschek, um dos responsáveis pela criação e execução do projeto. Segundo a TV Globo, há episódios em que outras indicações do DCDP foram ignoradas - como na cena em que o personagem Horácio, interpretado por Otávio Augusto, lia a carta-testamento de Getúlio Vargas. O diretor Daniel Filho não levou o veto adiante e a cena, considerada fundamental para a trama, foi ao ar - sem qualquer manifestação do governo a respeito. Foto: Reprodução / TV Globo Despedida de Casado (anos 70) A novela de Walter George Durst deveria substituir 'Saramandaia', mas foi proibida pela censura antes mesmo de ir ao ar. Segundo artigo da mestre em Ciências da Comunicação, pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) Daniele Gross, à época, o projeto de lei que instituiria o divórcio no Brasil estava no auge do seu debate. Ainda que a lei fosse promulgada seis meses depois da estreia da obra, a censura não permitiu que fossem retratadas as crises conjugais de Stela (Regina Duarte) e Rafael (Antônio Fagundes) após dez anos de casados. Os 30 primeiros capítulos foram aprovados, mas depois de gravados e editados, não agradaram aos censores. De acordo com Daniele, a solução encontrada pelo autor foi escrever outra história e aproveitar o elenco de 'Despedida de Casado' em 'Nina'. Foto: Reprodução / TV Globo Roque Santeiro (primeira versão: 1975 / segunda versão: junho de 1985 a maio de 1986) A primeira versão foi completamente censurada. 'Dez capítulos estavam editados e cerca de 30 finalizados quando a Censura do Regime Militar impediu que a história de Dias Gomes fosse exibida. Justificaram que mensagens subliminares contidas na narrativa poderiam ofender a moral, os bons costumes e a Igreja', diz o coordenador do Núcleo de Análise da Teledramaturgia (NAT) da Unisinos, Andres Kalikoske. Segundo a professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP) Sandra Reimão, Dias Gomes adaptou o enredo da peça 'O Berço do Herói', censurada anteriormente. Em uma conversa por telefone com Nelson Weckeck Sodré, o autor conta que a obra é uma adaptação - mas o telefone estava grampeado. 'A Globo enfrentou um enorme prejuízo, uma vez que a novela do horário nobre é o produto de maior rentabilidade da emissora. Betty Faria perdeu o que talvez fosse o maior papel de sua carreira, mas Regina Duarte o defendeu muito bem, em 1985, com uma impagável interpretação da viúva Porcina', afirma. A segunda versão, produzida em 1985, era praticamente igual à primeira. Segundo a TV Globo, não houve introdução de personagens, nem intervenções substanciais na história central. Foto: Reprodução / TV Globo Vale Tudo (maio de 1988 a janeiro de 1989) Em Vale Tudo, Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères denunciam a inversão de valores do Brasil no final dos anos 1980. 'Um dos momentos mais felizes teledramaturgia nacional. O homossexualismo feminino foi abordado e sofreu alguma censura, como em uma cena onde o casal feminino da trama contava para a personagem de Renata Sorrah sobre os preconceitos que enfrentavam. Assim como o beijo gay da novela 'América', recentemente vetado pela Globo, a cena de 'Vale Tudo' foi gravada e nunca exibida', diz Kalikoske. A história da vilã Odete Roitman marcava o final da censura e o início de uma fase de evidente contestação política. No último capítulo, o mau-caráter Marco Aurélio (Reginaldo Faria), braço-direito da vilã, foge do país e dá uma 'banana' para o Brasil. Foto: Reprodução / TV Globo mais especiais de educação