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Simone de Beauvoir: defensora da emancipação feminina do século 20

8 mar 2014 - 07h00
(atualizado às 08h32)
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Escritora Simone de Beauvoir, em foto de 22 de abril de 1983, em Paris
Escritora Simone de Beauvoir, em foto de 22 de abril de 1983, em Paris
Foto: AFP

Tanto pelo lado do pai, Georges Bertrand de Beauvoir, nascido no coração do faubourg Saint-Germain, o bairro do alto patriciado parisiense, como pelo lado da sua mãe, Françoise Brasseur filha de um banqueiro de Verdum, a jovem Simone de Beauvoir não teria nada a reclamar da vida. Pertencia por assim dizer ao que os franceses chamam crème de la crème.

Desde que nascera em 9 de janeiro de 1908, fora cercada pelos carinhos da família bem como por uma atenta ama que lhe satisfazia os caprichos. Com exceção de alguns acessos de fúria comuns a uma menina mimada que divertiam sempre o seu pai – considerava-a jocosamente como ‘ insociável’-, nada indicava que no íntimo da encantadora filhinha, mais do que bem-nascida, se gestava a mais profunda defensora da emancipação feminina do século 20, quiçá de todos os tempos. 

Ainda entrando na adolescência percebeu que sua inteligência pairava sobre a das suas colegas de escola e outros parentes próximos, o que a levou a uma crescente solidão da qual poucos a tiravam, como sua amiga dileta Elizabeth Le Coin (Zaza) e, mais tarde, aquele que lhe serviu inicialmente como tutor intelectual, o seu primo Jacques Champigneulle (que a apresentou aos poemas de  Mallarmè e outros modernistas menos enigmáticos assim como os pintores da moda).  O pai, ainda que advogado e funcionário graduado sem maiores ambições, era um leitor compulsivo e amante do teatro e das representações domésticas quando revela seu discreto lado histriônico, certamente a influenciou na sua inclinação pelo abstrato e no gosto pelos livros.

Bem ao contrário da maioria das meninas e moças da sua classe social e do seu tempo que seguiam obedientes os ditames e os interditos de uma educação católica e aos mitos de um ‘cristianismo místico’ que tinha por fim formar boas e ‘respeitáveis esposas’, ‘mulheres direitas’, dóceis e crentes. E se isto não fosse alcançado, lhes restava a solteirice ou o convento.

O futuro que a aguardava não as fazia escapar de um matrimônio arranjado (sim, mesmo na Paris do século 20, as famílias católicas tramavam casamentos de conveniência), administração do lar, filhos, festas e férias com a família, etc., causou-lhe crescente aversão.  Indignou-se que os interditos feitos às mulheres em geral não era estendidos aos homens, como se eles pertencessem a outro planeta.

Os primórdios desta sua trajetória rumo à emancipação completa (negou-se a casar, ser dona de casa e a ter filhos) acha-se  magistralmente relatado no livro Mèmoires d'une jeune fille rangèe, ‘Memórias de uma moça bem comportada’, de 1958, escrito na plena maturidade da autora.

Este magnífico livro, que contou com afiada lembrança da autora, é literatura de alta elaboração. Serviu não apenas como testemunho da façanha pessoal dela em enfrentar os condicionamentos sócio-religiosos de uma época ‘ e o destino abjeto que a aguardava’. Funcionou, por igual, como uma espécie de roteiro no qual milhares de outras tantas mulheres, suas leitoras, dispersadas pelo mundo Ocidental, se inspiraram. Insatisfeitas com o dia-a-dia que as decepcionava, recorreram à trajetória oferecida por Simone. O ‘eterno feminino’, tão alardeado pelos românticos e outros místicos, tinha um propósito conformista. Uma capsula ideológica que obrigava as mulheres seguirem comportadas conforme o que o mundo masculino determinara. Era preciso romper com aquilo.

 Por certo inconscientemente ela seguia só propósitos dos famosos versos de Lou-Andreas Salomé (1850-1937), umas raras mulheres admitidas como igual num meio majoritariamente masculino como aquele liderado por Sigmund Freud em Viena. Os versos de Lou praticamente são uma convocação à ação das mulheres:

Ouse, ouse... ouse tudo!!

Não tenha necessidade de nada!

Não tente adequar sua vida a modelos,

nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.

Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.

Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la!

Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.

Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso:

algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!

- Lou Salomé - Reflexões sobre o problema do amor.

A partir de Simone, milhares passaram a ambicionar uma vida diferente do que lhes programava a família e a sociedade. Queriam independência, ser autônomas, ter sua profissão, seu sustento próprio, buscavam a felicidade e não a comodidade do lar sem sal em que a maioria delas vivia. Insistiam, como Simone o fez, no prazer de querer viver, ‘ de estar no mundo’, de escolher e traçar elas próprias os caminhos a seguir em sua existência, ainda que assumindo os riscos  decorrentes disto.

 Os primeiros passos:

“Inaugurei minha nova existência subindo as escadas da Biblioteca Sainte-Geneviève...”

O convento de Saint-Geneviève, na Place du Panthéon,  desativado pela Revolução de 1789, ficou sem destino por um bom tempo até que a prefeitura de Paris encarregou o arquitetor Henri Labrouste de transformar o belo prédio numa biblioteca. Obra realizada entre 1838-1858. Nenhuma solução poderia ser melhor. Foi neste local magnifico com um impressionante acervo, não muito distante de onde Simone residia, que se transformou no templo da cultura da jovem estudante.

Subir aquelas escadas, disse a escritora, foi o passo mais decisivo em sua vida. Lá, na sala de leitura, devorando a ‘Comédia Humana’ de Balzac, e uma quantidade incontável de tantos outros clássicos, começou a ser forjada uma das mais brilhantes cabeças do século 20. O contato dela com os grandes textos fez com que ela se sentisse suficientemente apta a frequentar as rodas intelectuais masculinas. Aquele seria o mundo dela.

Seus pais não faziam gosto dela seguir carreira no meio intelectual, mas não lhe criaram obstáculos maiores quando ela se decidiu seguir o Caminho das Letras. Formou-se em Filosofia e a seguir preparou-se para o aggregation, o rigoroso concurso público feito para o ingresso na Normale Supe, a École Normale Superieur, a mais prestigiada entidade francesa para as áreas humanas e científicas (Louis Pasteur e o filósofo Henri Bergson foram um dos tantos gênios que por ela passaram) que formava a elite intelectual do país. 

Três outros também candidatos, Paul Nizan, Jean-Paul Sartre e René Maheu (este, ainda que casado, fora um espécie de namorado de Simone) compunham um grupo apartado do restante. (*)

Inteligentíssimos, sentiam-se a elite, aristocratas do pensamento. Os crescentes contatos que a jovem recém-formada fez com que reconhecessem nela uma parceira digna de privar com eles. Sartre sugeriu aos outros dois que Simone, então com 21 anos, fizesse uma apresentação privada de Leibniz para ajudá-los nas provas. Simone confessou que Sartre foi o primeiro homem que ela conhecera a intimidara intelectualmente.

 Àquelas alturas ela já se indignava que o aborto fosse considerado crime, rejeitava as hierarquias, os valores correntes e as cerimônias que distinguiam a elite, assim como a frivolidade dos amores burgueses. Sentiu então uma forte compulsão para colocar em palavras este sentimento cada vez mais ativo de rebeldia. Nascia a escritora.

Aprovados, Simone e Sartre, aquelas duas almas gêmeas fizeram um pacto (sentados num banco do Jardim Luxemburgo) de não se casar, de não ter filhos e de se dedicarem inteiramente à filosofia. Seu compromisso era um Pacto pela Liberdade, uma relação aberta que rejeitava qualquer amarra que os afastasse da atividade de pensar e naturalmente da escrita. Na época foi um escândalo. Admitiam que um marido ou uma esposa tivessem amantes, mas jamais que um homem pudesse viver maritalmente com uma mulher das classes médias de estar com ela sem registro passado por um juiz de paz ou a benção de um sacerdote.

Como palavra de ordem deixada às demais mulheres, Simone escreveu no seu famoso ensaio ‘O Segundo Sexo’: “Nós não nos deixaremos intimidar pelos ataques violentos dirigidos à mulher nem deixar-se levar pelos elogios interesseiros que são destinados à ‘ verdadeira mulher’.... (“Deuxième sexe" : l'Introduction, La femme indépendante )

(*) Paul Nizan aderiu ao Partido Comunista, com quem rompeu  em 1939 e morreu um ano depois como soldado francês em Calais quando se deu a invasão alemã de 1940. Maheu tornou-se um alto burocrata que chegou a dirigir a UNESCO e Jean Paul Sartre, tornou-se Sartre.

Fonte: Terra
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