PUBLICIDADE

Os Estados Unidos da América e a paranoia americana

28 ago 2013 - 06h01
(atualizado em 29/9/2013 às 21h06)
Compartilhar
Exibir comentários
Dois símbolos americanos: a águia e a bandeira do país
Dois símbolos americanos: a águia e a bandeira do país
Foto: Wikimedia

O que faz com que os Estados Unidos da América, a maior potência do mundo atual e de todos os outros tempos, tenham tanto receio, não apenas das possíveis ameaças vindas do exterior como dos seus próprios cidadãos? Como explicar a manutenção da supercentral de espionagem telefônica e eletrônica, como a NSA (National Security Agency), instalada perto de Washington, atuando como um deus pagão oriental, vigiando e escrutando com seus milhões de olhos e ouvidos o que passa pelo planeta?

Um estilo nacional

Richard Hofstadter, um brilhante acadêmico americano, professor da Universidade de Columbia, NY, publicou um ano após o assassinato do Presidente John Kennedy um artigo-ensaio na Harper's Magazine que o tornou nacionalmente famoso. Intitulou-o The Paranoid Style in American Politics (O estilo paranoico da política americana, 1964). É um resumo erudito e bem detalhado da retórica paranoica que se faz presente nos discursos e pronunciamentos de inúmeros homens públicos norte-americanos. Entre os selecionados estão presidentes, governadores, senadores, deputados, pastores, teólogos, líderes de todas as procedências, professores, acadêmicos, juristas e tantos outros mais.

O ponto em comum dos que compõem a elite política e intelectual norte-americana, particularmente os conservadores e direitistas, é a convicta crença na existência de uma sinistra e incansável conspiração externa antiamericana. Uma "gigantesca e sutil maquinaria de influência" que tem como meta a "destruição do modo de vida americano" (The Paranoid, p.29).

Conspiração esta que tem com toda a certeza suas ramificações camufladas nas instituições públicas ou privadas como na sociedade em geral, especialmente nos sindicatos, mídia, cultura e educação. Para enfrentar esta dupla frente de solertes "inimigos da América" é que foram criados os dois pilares da Segurança Nacional: primeiro a CIA (Agência Central de Inteligência), voltada para espionagem e contraespionagem, criada no começo da Guerra Fria, mas sem autorização para agir em solo americano. E depois a NSA (National Security Agency), que tem a função de patrulhar o mundo das comunicações em geral (telegramas, telefonemas e, mais recentemente, os e-mails dos que recorrem à Internet).

O ex-presidente George W. Bush, o mais recente exponencial do "estilo paranoico", o explicitou claramente num discurso pronunciado no Congresso, em 2002, quando apontou o Iraque, a Coreia do Norte e o Irã, potências perigosíssimas como se sabe, como um Axis Evil ("Eixo do Mal"). Uma atualização da expressão usada 20 anos antes, em 1982, pelo falecido presidente Ronald Reagan quando afirmou que a URSS era um Evil Empire ("O Império do Mal").

Observe-se que ambos, Reagan e Bush, políticos republicanos e ultraconservadores, recorreram às expressões comuns aos sermões satanizantes dos pastores e dos padres em todos os tempos. Somente substituem o desacreditado "demônio" pelo "mal". Nada a estranhar. O cristianismo sempre alertou ao longo da sua história para a existência dos poderes infernais (hereges, apostatas, islâmicos, agentes do demônio etc.), cabalando contra a paz e o sossego dos que seguem Jesus.

Evidentemente que o comportamento paranoico não é exclusivo dos Estados Unidos. Ele se faz presente na maioria das potências e dos grandes impérios do passado. Os romanos, por exemplo, se mantinham sempre alertas contra as possíveis razias dos bárbaros nas suas fronteiras. E a paranoia americana é pouco expressiva se comparada com a da URSS na Era Stalinista (1924-1953) ou com a da Alemanha Nazista (1933-1945), sempre acusando o "judaísmo internacional" de querer destruí-la.

A origem moderna da paranoia política

É tida por todos como a pedra filosofal das teorias da conspiração que circulam entre nós a obra do abade Augustin Barruel, um jesuíta fundamentalista que se exilou na Inglaterra durante a Revolução Francesa, em 1792. Deixou um livro que causou impacto entre o pensamento contrarrevolucionário e os que eram inimigos acérrimos dos acontecimentos revolucionários que se processavam em Paris e nas demais cidades da França.

Seu título era Mémoires pour servir à l'Histoire du Jacobinisme (Memória para servir à História do Jacobinismo, 1797), no qual defendeu a certeza de que a derrocada dos Bourbons e tudo que a seguiu resultou de um complô de sociedades secretas (formadas pelos filósofos franceses, os illuminati da Bavária e os da Maçonaria). Elas foram o principal esteio ideológico dos jacobinos, a quem fizeram de seu instrumento para destruir a monarquia, o poder da igreja e da ordem social: "aquelas foram as seitas quem moveram uma guerra clandestina da ilusão e do erro".

O assalto à Bastilha, a marcha das mulheres à Versalhes, a tomada do palácio das Tulherias, que pôs fim à autoridade de Luís XVI, para Barruel, foram engendrados pela Grande Conspiração que tornou o povo francês num bando de marionetes.

As conspirações, segundo o jesuíta, eram de três tipos:

1ª) a da impiedade voltada para desmerecer Deus e o cristianismo;

2ª) a da rebelião, que instigava o povo a revoltar-se contra monarcas e príncipes;

3ª) a da anarquia que propunha a completa abolição da hierarquia social visando à destruição da sociedade como um todo.

Os seus vilões preferidos eram Voltaire, Montesquieu e Jean Jacques Rousseau. Na época, a teoria da conspiração de Barruel foi um sucesso, sendo o seu livro traduzido para diversas línguas europeias, servindo como arma na luta ideológica dos contrarrevolucionários contra a República da França.

A paranoia anticomunista

Hofstadter lembra que nos Estados Unidos o furor paranoico tomou corpo a partir dos anos 1930, particularmente contra a política do New Deal (Novo Trato) levada a efeito pelo presidente Franklin Delano Roosevelt (1933-1945). Os conservadores e os direitistas do Partido Republicano a entenderam como um escancarar de portas ao intervencionismo econômico, o que certamente conduziria o país ao socialismo senão que ao comunismo. O mesmo argumento foi usado mais tarde pelo neoliberal Friedrich Hayek no seu livro The Road to Serfdom (A caminho da servidão, de 1944), um libelo contra a política de Bem-Estar social a ser adotada pelo Partido Trabalhista na Grã-Bretanha.

O momento máximo desta mania de perseguição na história americana contemporânea deu-se durante o funcionamento do House Un-American Activities Committee - HUAC ("Comitê de Atividades antiamericanas"), que tomou corpo nos anos iniciais da Guerra Fria (1946-1989). Tendo como inquisidor-chefe e figura central o senador Joe McCarthy. O doloroso episódio de histeria persecutória que maculou a democracia – popularmente chamada pela mídia americana como "caça às bruxas" – recorreu a inúmeros tipos de vilania para excluir das atividades profissionais os apontados como comunistas ou simpatizantes de Moscou. Um mar de denúncias e delações lotou os birôs do Comitê.

O alvo principal da chamada Red Scare (Perigo Vermelho) liderada por Joe McCarthy eram os altos funcionários públicos (mais de 200 foram denunciados, ainda que estivesse em prática o Programa de Fidelidade do Funcionário Federal, desde 1947, destinado a investigar qualquer um que assumisse um novo emprego no serviço público), seguidos dos artistas e diretores de Hollywood.

A rede dos grandes estúdios da Califórnia foi apontada como uma espécie de usina de mensagens subliminares de simpatia para com o ideário "vermelho" - na verdade, se desconhece que algum estúdio tenha feito algum dia um filme comunista.

Astros, estrelas, cantores, dramaturgos, regentes, escritores e roteiristas que lá trabalhavam foram colocados sob suspeição e proibidos de exercer seu oficio. Entre eles Dashiell Hammett, Waldo Salt, Lillian Hellman, Lena Horne, Paul Robeson, Arthur Miller, Aaron Copland, Leonard Bernstein, Hanns Eisler, Charlie Chaplin, Clifford Odets, Elia Kazan, Stella Adler W. Wyler, J. Houston, A. Litvak, H. Bogart, K. Hepburn, J. Losey, Mort Sahl, Edward R. Murrow, e tantos outros mais. Quem tinha seu nome colocado na "Lista Negra" jamais conseguiria exercer seu trabalho novamente.

Ocorreu que o clima internacional era favorável àquele desatino. Em 29 de agosto de 1949, a URSS havia conseguido romper com o monopólio nuclear dos Estados Unidos ao explodir sua primeira bomba atômica. Naquele mesmo ano, em 1º de outubro, os guerrilheiros de Mao Tse Tung entraram em Pequim, expulsando o marechal Chang Kai-shek, aliado dos americanos. E, como que aproveitando o embalo do sucesso da revolução comunista na China, em 25 de junho de 1950, o líder norte-coreano Kim II-sung mobilizou as forças militares da Coreia do Norte para ocupar a parte sul da península controlada pelos norte-americanos.

Atrás dos maus americanos

Para a mentalidade paranoica, nada do que ocorrera para os lados da Ásia poderia ter tido sucesso sem haver algum tipo de colaboração interna dos "quinta-colunas", de falsos americanos colocados em posições-chave. Os "vermelhos", aproveitando-se do curto período em que a URSS fora aliada dos EUA na Segunda Guerra Mundial, entre 1941 e 1945, tinham conseguido se infiltrar nas mais diversas instituições do país, agindo como cupins, corroendo as energias nacionais.

Manipulavam a imprensa, o rádio, a televisão, os sindicatos, as escolas, as cortes, parte substancial dos Legislativos dos Estados e, pasmem, até o púlpito. Urgia assim um expurgo liderado pelo Comitê que afastasse para sempre a influência perversa e antipatriota que exerciam sobre a opinião pública, "amolecendo-a" frente ao enorme desafio comunista.

A situação somente começou a aliviar com a morte do grande satã Joseph Stalin, em 8 de março de 1953, e as negociações que suspenderam a Guerra da Coreia por meio do armistício em 27 de julho daquele ano. Em 1954 o terrorismo irresponsável de Joe McCarthy ficou exposto quando ele tentou denunciar infiltração comunista no Exército Americano. Morreu alcoólatra três anos depois.

Mesmo assim, com todo o estrago que a caça às bruxas fez na vida política, cultural e intelectual dos Estados Unidos, Robert H. Welsch Jr, herdeiro ideológico de McCarthy e fundador da reacionária John Birch Society, em 1958, foi enfático em dizer que "agora a influência comunista esta por bem pouco no mais completo controle do nosso Governo Federal". E isto em pleno governo de um herói de guerra, General Eisenhower.

Num levantamento realizado, constatou-se que o comitê inquiriu 2.735 cidadãos e cidadãs, 400 deles foram para a prisão. Além disto, 9,5 mil indivíduos perderam seus empregos públicos, 16 mil renunciaram e uns 600 professores foram afastados do magistério. Qualquer um que mostrasse simpatia pelos pobres ou pelos operários era colocado sob suspeição, viam-no como "potencial comunista". Até a história de Robin Hood, o aventureiro da floresta de Sherwood, foi proibida às crianças americanas porque o personagem, como se sabe, roubava dos ricos e dava aos pobres. Era um protocomunista!

Sede da NSA em Fort Meade, Maryland
Sede da NSA em Fort Meade, Maryland
Foto: Getty Images

A Central da Espionagem Universal

Para diversos jornalistas que cobriam e que cobrem o setor de espionagem e inteligência norte-americano, nunca restou dúvida alguma da posição hegemônica exercida pela NSA, criada por decreto presidencial em 1952. Dispõe de um orçamento aproximado a US$ 10 bilhões e tem de 20 mil a 30 mil funcionários. Foi a CIA, porém, que atraiu mais a atenção da mídia - inúmeros filmes a transformaram na mais conhecida agência de espionagem e contraespionagem do planeta; com o tempo, ficou muito mais famosa do que a GESTAPO dos nazistas, o MI-5/SIS dos britânicos ou a KGB dos soviéticos.

Quem realmente é o sabe-tudo do que se passa no mundo é a NSA. E o motivo disto é muito simples. Ela é responsável pelo controle das comunicações e do sistema de satélites-espiões que rondam o mundo sem cessar. Aparelhos fantásticos que são não só capazes de fotografar uma placa de automóvel em qualquer cidade conhecida como auscultar os meios de comunicação de qualquer país que interesse. A justificativa das operações é "a segurança de vidas e propriedades americanas".

Aldous Huxley, o famoso autor de Admirável Mundo Novo já observara que o avanço célere da tecnologia provocaria de modo irreversível uma concentração espantosa de informações cada vez mais aperfeiçoada e centralizada. Os países patrulhados, principalmente os europeus, suspeitam que nos dias que correm, com o término da Guerra Fria, a NSA tenha se voltado para colher dados sobre as atividades econômicas, farejando oportunidades e prevendo operações nas mais diversas áreas que poderão ser úteis às empresas americanas.

A "Guerra ao Terrorismo", desencadeada pelo presidente George W. Bush, em 2001, teria servido como cortina de fumaça para o que realmente importa ao Império, bons negócios! Um dano que poderá ser irreparável devido à obediência à atitude paranoica dos sucessivos governos norte-americanos – afinal, são 60 anos de espionagem – é o que atingirá a credibilidade das empresas que atuam na Internet, como a Google, YouTube, Microsoft e a Facebook.

Elas e outras tantas ligadas à telefonia se mostraram ativas colaboradoras ao permitir o acesso as suas fontes por parte da NSA. Milhões de usuários espalhados pelo mundo certamente não irão mais ter a tranquilidade em confiar seus dados pessoais ou em enviar mensagens recorrendo a elas sabendo que a águia imperial está lá nas alturas extremas atenta ao que se passa.

Em 1949, o escritor inglês George Orwell, um ex-esquerdista, denunciara o regime stalinista por meio de uma ficção política denominada 1984. Descreveu, com notável precisão, um organismo social inteiramente controlado pelos meios de comunicação e técnicas behavioristas e pavlovianas de comportamento. Recorria basicamente à televisão, onde aparecia ininterruptamente a imagem do Big Brother, o Grande Irmão, que espreitava os cidadãos em qualquer instante do cotidiano deles. O livro de Orwell foi largamente utilizado no Ocidente durante a Guerra Fria como uma prova funesta do totalitarismo soviético e da cruel opressão com que tratava o homem comum.

Leia mais: O Big Brother de George Orwell: o martírio de um homem comum

Certamente bem poucos poderiam prever, naqueles tempos iniciantes da Guerra Fria, que o posto de Big Brother viria algum dia a ser ocupado pela Presidência dos Estados Unidos da América. Justo a chefia da nação que mais se orgulha da preservação dos direitos individuais e tanto exaltou a pouca intervenção do Estado na vida dos seus concidadãos. Como supor que nos dias correntes a versão americana do Big Brother estaria a policiar não somente seus próprios cidadãos, mas parte considerável da humanidade como um todo?

Fonte: Especial para Terra
Compartilhar
Publicidade
Publicidade