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O "Anjo Azul" de Heinrich Mann

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Voltaire Schilling
 

Ao contrário do seu famoso irmão mais novo Thomas Mann, Heinrich Mann, nascido em 1871 em Lübeck, celebrizou-se por ser um crítico bem mais contundente da sociedade alemã do IIº Reich (1871-1918). Ainda que não alcançasse o refinamento estilístico e literário, nem a fama de Thomas, ele denunciou com muita perspicácia a existência de certos aspectos quase que patológicos da cultura e do comportamento das autoridades da Wilhelmischen Epoche, da época Guilhermina (1888-1918), prenunciando assim com grande antecipação o desenlace trágico que a Alemanha iria ter no século 20.

Uma novela devastadora

Melhor exemplo deste seu intento foi sua novela intitulada Professor Unrath, aparecida em 1905, que serviu como roteiro para o famoso filme Der Blaue Engel (O Anjo Azul), dirigido por Josef von Sternberg em 1930 e que lançou Marlene Dietrich (1901-1992) como a mais celebrada diva do cinema alemão.

O mestre-escola do ginásio local, professor Immanuel Rath, era um tirano (a história se passa numa cidade portuária, provavelmente em Lübeck, no norte da Alemanha, onde nasceram os irmãos Mann). Não somente ele se esmerava em ser um disciplinador rígido, como gradativamente se tornara um fiscal da vida privada de alguns dos seus alunos. Rath (apelidado de Unrath, livremente traduzido por desordem, sujeira, bagunça), era um professor às antigas que considerava seus alunos como inimigos, pelos quais não nutria nenhum afeto. Ao contrário, se deliciava quando lhe chegavam noticias de ex-alunos seus que fracassavam nas suas profissões ou empreendimentos. O homem, enfim, era um sádico. Evidentemente que, com tal temperamento, ele não era nada bem quisto, sendo alvo de inúmeras chacotas da estudantada.

Heinrich Mann o concebeu como um retrato acabado do filisteu alemão, autoritário e pedante. Viúvo, morando sozinho, acentuou-se-lhe a misantropia, passando a odiar cada vez mais o mundo e o que o cercava.

A vida deste professor, um cinquentão rabugento e moralista, sofre um abalo e uma transformação surpreendente quando, investigando as travessuras amorosas do aluno Lohmann, filho do cônsul local, termina por adentrar certa noite no teatro-taverna Der Blaue Engel (O Anjo Azul), situado na zona boêmia da cidade. Lá, ele se depara com a fascinante corista e cantora de cabaré Rosa Fröhlich, que fazia seguidas e estonteantes aparições no palco como dançarina e interprete de cançonetas e peças ligeiras.

O professor Rath, aos poucos, deixa-se levar cada vez mais seduzido pela Vênus noturna, num mergulho luxurioso que o levará à ruína. Não sai mais dos arredores dela. Dominado pela paixão, exige que ela rompa qualquer tipo de ligação com seus admiradores, particularmente com os alunos adolescentes dele. Passa a se auto-designar como ¿Protetor da artista Fröhlich¿ e envolve-se em diversas confusões para afirmar sua autoridade e mando sobre o destino da sensual mundana.

Logo a dupla existência dele ¿ educador severo durante o dia e libertino à noite ¿ chega aos ouvidos da direção do Ginásio e da cidade inteira, que não deixa de manifestar pasmo com o comportamento do velho mestre. Frente aos alunos, perde completamente a autoridade moral. Não encontram outra saída senão demiti-lo.

Quando um pastor luterano o procura para salvá-lo do crescente desatino, Rat o põe para fora por não admitir as insinuações do religioso sobre o caráter da sua ¿protegida¿. Rosa Fröhlich assumira para ele a imagem de uma deidade, uma musa dos tempos gregos.

Mudança de vida

Durante os dois anos seguintes, depois de ter levado Rosa a um circuito de restaurantes e lojas, o professor Rath, para espanto ainda maior de todos, terminou casando com ela. Aos poucos, as reservas financeiras dele se esvaíram. O casal então adotou uma estratégia estranhíssima para continuar mantendo um bom padrão de vida. Os Rath transformaram sua residência num cassino improvisado, sendo que Rosa formou um enorme círculo de admiradores (muitos ex-alunos do mestre ranzinza) que não escondiam suas intenções lúbricas. Histórias de desregramento dos costumes começaram a correr pela cidade.

O falatório espalhou-se carregado de exageros, como se o lar deles se transformasse numa espécie de lupanar, em antro de liberdades inconfessáveis, no qual sexo e jogo davam as mãos à devassidão. A isto se somaram piqueniques à beira mar, nos quais Rosa, ciente da atração que provocava, reinava sobre os que a cercavam como se fora uma irresistível sereia.

O patético fim de Rath

Seu marido sofria com as liberdades dela, mas nada podia fazer senão que padecer amparando-se em murmúrios queixosos.

As dívidas vão se acumulando, aumentam os conflitos com os credores até que a visita de Lohmann, o ex-aluno que ele tanto perseguira e que ainda se achava sob o encantamento de Rosa, agora homem feito e bem-sucedido, acelera o desastre do casal. Uma cena inusitada então corre. O visitante deixando sua carteira recheada de dinheiro sobre a mesa da sala de estar é surpreendido pela repentina aparição do ex-professor que, num gesto rápido passa a mão nela e dispara porta a fora. A novela se encerra com a deprimente notícia da prisão da dupla Rath acusada de furto.

A corrosiva abordagem da decomposição moral de um mestre-escola do velho estilo não foi uma escolha arbitrária de Heinrich Mann. Os professores em toda a Alemanha eram vistos como os mais sólidos bastiões da respeitabilidade e da moralidade, eram os mandarins do IIº Reich.

Eram os agentes de ligação do poder autocrático do Kaiser, do imperador, com a massa estudantil, a quem cabia doutrinar para fazer deles, no futuro, súditos obedientes do soberano. Mann também recorreu a ele para denunciar a Doppelmoral des Bürgentum, a dupla moral da classe média, cuja lubricidade se escondia por detrás de um falso discurso, expondo o estrago que a atitude paterno-repressora dos mestres, dos pais e governantes alemães em geral provocava naqueles tempos.

Seja como for, a maneira de ser e de agir de Rath encaixava-se perfeitamente no que Theodor Adorno, muitos anos mais tarde, num estudo considerado clássico, denominou de "personalidade autoritária". (*)(*) Segundo a teoria de Adorno, os elementos que compõem tal tipo de personalidade são:

- Obediência cega às crenças convencionais sobre o certo e o errado.

- Respeito e submissão à autoridade reconhecida.

- Crença na agressão contra aqueles que não concordam com o pensamento convencional, ou que são diferentes.

- A visão negativa das pessoas em geral - ou seja, a crença de que as pessoas todas mentem, enganam ou roubam se houver a oportunidade.

- A necessidade de uma liderança forte, que exibe a energia inflexível.

- A crença em respostas simples e polêmicas - ou seja, a mídia nos controla todos, ou a fonte de todos os nossos problemas é a perda da moral nos dias de hoje.

- Resistência à criatividade, idéias perigosas. A visão de mundo a preto e branco.

- A tendência a projetar os próprios sentimentos de raiva, inadequação e medo em um grupo que serve como bode expiatório.

- A preocupação com a violência e sexo.

Saiba mais:

The Authoritarian Personality by Theodor Adorno, Daniel J. Levinson, Else Frenkel-Brunswick

Obras de H. Mann: Im Schlaraffenland (1900); Professor Unrat (1905); Die kleine Stadt (1909); Der Untertan (1914/1918); Die Armen (1917).

Fonte: Especial para Terra
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