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América, o abolicionista John Brown

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Voltaire Schilling

Quase todo o evento histórico de grandes dimensões é, por assim dizer, precedido por um outro, de proporções bem menores, que premonitoriamente o anuncia. Com a guerra civil norte-americana, travada entre 1861-65, não foi diferente, antecedida em poucos meses por uma curiosa, dramática e sangrenta, incursão militar, provocada por ativistas abolicionistas.

O assalto ao arsenal federal de Harpers Ferry, na Virgínia, liderado por John Brown, galvanizou por umas semanas a atenção da opinião pública americana, ao tempo em que sinalizou o conflito que iria ocorrer dezesseis meses depois nos Estados Unidos da América por inteiro.

A impaciência com a escravidão

Desde que Thomas Jefferson, na hora da redação da Declaração de Independência de 1776, fora pressionado pelos convencionais, seus colegas, a suprimir qualquer menção no texto sobre a abolição futura da escravidão no regime recém fundado, que os Estados Unidos vivia como se fosse uma casa dividida - como bem lembrou depois Abraão Lincoln, em memorável discurso. Metade dela era livre, metade era escrava.

Os inúmeros movimentos e associações pró-abolicionistas, que desde aquela época se constituíram na América, mostraram-se, entretanto, impotentes em dar uma solução á tragédia social e moral que representava a "peculiar instituição". Quase um século se passara desde que os colonos ingleses haviam fundado a república, anunciando ao mundo terem-na instituído em nome da liberdade, proclamando em alto e bom som pertencerem à nação mais livre do mundo. Contraditoriamente, porém, a metade dos estados que a compunham, todos eles do Sul dos Estados Unidos, continuavam firmemente escravistas.

Não só isso, desde os anos de 1830, os lideres sulistas acirravam a disputa com os que defendiam a proposta do movimento pelo "solo livre", ao redor das futuras terras do Oeste, que estavam sendo abertas à colonização. Longe da escravidão estar agonizante, ela diariamente dava provas de querer disputar o espaço com o trabalho livre. Foi isso que levou o abolicionista John Brown à exasperação e a recorrer à violência como solução.

John Brown

John Brown, um dos maiores nomes da luta antiescravista nos Estados Unidos, perdera as esperanças de alcançar o seu intento por meio da pressão pacífica e do jogo eleitoral. Filho de um calvinista que abominava a nefanda instituição servil, nascido no Connecticut em 1800, desde cedo entregara-se à causa da emancipação dos negros. Depois de ter sido dono de um curtume na Pensilvânia, mudou-se para Ohio para ser fazendeiro em Franklin Mills. Terminou fracassando.

Em 1837, profundamente chocado pelo assassinato do jornalista Elias Lovejoy, morto por uma multidão pró-escravista, jurou frente ao túmulo do linchado que, dali em diante, ele se dedicaria a lutar pela abolição. Em 1857, na histórica cidade de Concord, no Massachusetts - berço da luta da independência -, John Brown , já um ativista conhecido, imponente como um profeta bíblico, apresentou-se frente aos dois maiores totens intelectuais dos ianques: o filósofo Ralph Waldo Emerson e o pacifista David Thoreau. Lamentou na peroração que fez a eles a necessidade de ter que empregar a violência, entendendo-a , contudo, como uma vontade de Deus.

Conforme o seu engajamento na causa libertária aumentava, mais sua aparência assemelhava-se a um dos personagens do Antigo Testamento. Com o rosto marcado pela indignação moral, seu olhar se irritava com a indiferença que os outros homens demonstravam para com a grandeza do movimento que ele participava.

Brown entra em ação

Por volta de 1855, Brown havia tomado a peito realizar incursões armadas para libertar escravos. Acompanhado de seus filhos, e de um reduzido número de seguidores, passou a percorrer as fazendas do Missouri e do Kansas estimulando os negros a fugirem, dando-lhes proteção até que alcançassem a fronteira segura do Canadá. Além disso, no Kansas mesmo, ele, com seus cinco filhos, entrou em guerra aberta contra os defensores da escravidão que, por métodos intimidantes e terroristas, queriam forçar a população do território a votar à favor da adoção do trabalho servil. A gente dele não hesitou em revidar. Com isso, Brown chamou a atenção nacional.

Em 1857, ele foi apresentado em Boston a uma comissão secreta de abolicionistas, a "Comissão dos Seis", encarregada de fornecer recursos para as debandadas de cativos orquestradas por ele. Especialmente daquelas propriedades onde os pobres negros eram brutalmente tratados e cujos donos eram os mais empedernidos escravagistas. Homem profundamente religioso, Brown era um crente de que o regime servil era um atentado contra os filhos de Deus, tratando o problema como um sagrado combate do bem contra o mal.

Ocupando o arsenal de Harpers Ferry

Em 1859 ele arquitetou algo bem mais espetacular. Nada menos do que invadir e ocupar o arsenal federal em Harpers Ferry, situado no Vale do Shenandoah, na Virginia, a fim de usar as armas numa grande rebelião antiescravista. Façanha que ele realizou em total surpresa em 16 de outubro de 1859. Durante alguns dias, Brown e os 21 homens que o acompanharam, ocuparam a estratégica instalação na Casas das Máquinas até que uma força do exército, e alguns voluntário formados às pressas, os rendessem.

Capturado e conduzido preso para Charlestown, um tribunal da Virginia quase que de imediato o sentenciou à morte, acusando-o de assassinato, traição, e de incitar os negros à sedição. No dia 2 de dezembro de 1859, John Brown foi enforcado. Dezesseis meses depois, em 12 de abril de 1861, o Sul erguia-se em aramas contra a União atacando o Forte Sumter, na Carolina do Sul. A insurgência dos estados escravistas confederados provocaria a maior guerra civil da história das Américas.

A guerra em miniatura

Significativo neste grave incidente foi o fato de quem comandou a operação que levou a captura de John Brown e dos seus companheiros era o então coronel Robert Lee, que bem pouco tempo depois assumiria o posto de generalíssimo da confederação sulista.

O homem que quase conseguiu vencer a guerra civil em 1863. Outro nome relevante que participou da rendição dos ativistas antiescravistas em 1859, foi o do capitão J.E.B. Stuart, que apresentou-se como voluntário para auxiliar o coronel Lee. Em seguida, ele atuaria servindo na Guerra de Secessão, sob o comando do mesmo Lee, como um dos principais comandantes da cavalaria sulista, alcançando fama em vários episódios.

O resultado final invertido

O resultado final, entretanto, da grande refrega entre os americanos, encerrada em 1865, foi outro. Se nos sucessos trágicos de Harpers Ferry, o abolicionista John Brown, um homem do Norte, foi sitiado, preso e executado, após entregar-se para os dois militares sulistas, a guerra do Norte contra o Sul teve um fim inverso. Em 9 de abril de 1865, quando a catástrofe finalmente acabou, quem rendeu-se para o Norte em Appomattox, na mesma Virginia, foi exatamente o general Robert Lee, enquanto o seu arrojado cavalariano, J.E.B. Stuart, falecera uns meses antes em decorrência dos ferimentos recebidos na batalha de Yellow Tavern, em 12 de maio de 1864 .

A guerra santa contra a escravidão de John Brown, por sua vez, consagrou-se com a aprovação da 13ª e 14 ª emendas à constituição americana , de 1863 e 1865, que liquidaram para sempre com o regime servil nos Estados Unidos.

Ironias da história

Logo nos primeiros meses da Guerra Civil, ainda em 1861, a mesma guarnição que prendera John Brown e matara quatro dos invasores ( inclusive alguns filhos de Brown), recebeu ordens do governo da união para incendiar o arsenal. O governo federal tinha receio de que os sulistas, espalhados por toda a Virginia, se aproveitassem das instalações lá existentes para fabricar armas.

O que de imediato foi feito. O desfecho irônico dessa história é que depois da vitória do Norte, batizaram o local como Forte John Brown, numa homenagem póstuma ao grande ativista da abolição. Ele que em 1859 foi executado como traidor, menos de quatro anos depois consagrou-se como mártir da causa da liberdade.

Fonte: Especial para Terra
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