PUBLICIDADE

Napoleão também dominou o Egito

Compartilhar

Napoleão Bonaparte, então general do exército republicano francês, foi o primeiro estadista europeu a reascender a importância estratégica do Egito. Então provincia do Império Otomano, o país do Nilo geopoliticamente exercia o papel de ligação entre os interesses britânicos no Mediterrâneo com as colônias britânicas da Índia e da Índia e da Ásia. Melhor golpe ele não poderia desferir senão que, numa operação militar rápida, cortar aquele elo que juntava as duas partes distantes do Império Britânico.

Tropas de Napoleão batalham no Egito
Tropas de Napoleão batalham no Egito
Foto: Getty Images

Os preparativos

"Acreditam que o Império do Oriente e talvez a sujeição de toda a Ásia não valem uma bombacha e um turbante?"

Napoleão Bonaparte - 1798

Madame Monge exasperou-se. Não podia imaginar o seu Gaspard, um acomodado professor, metido nos desertos do Egito, assolado pelo frio noturno e pela incandescência diurna. Mas o jovem general Bonaparte insistia: Gaspard devia acompanhá-lo. Era um matemático celebríssimo e Napoleão, que fora seu aluno em Paris quando moço, não podia dispensá-lo da aventura. Convencida, a esposa concordou em que ele partisse. Assim como aquele mestre, outros 160 sábios foram arrebatados pelo entusiasmo do jovem comandante, entre eles o químico Berthollet, o geólogo Dolomieu, o físico Fourier, Mechain, um técnico em lunetas, e o grande naturalista Geoffrey de Saint-Hilaire. Até um aeróstata, Nicolas Conté, e um poeta, Parceval de Grandmaison, se embalaram com a idéia de ir ver de perto as pirâmides.

Napoleão conseguiu contagiar para sua aventura no Nilo até a gente da École Polytechnique ¿ a hoje celebrada Poly. O que ele tinha em mente era seguir os passos de Alexandre, o Grande, que ao lançar-se na conquista da Ásia Menor levara consigo uma eminente equipe de sábios gregos para estudarem tudo o que fosse possível das terras ocupadas.

O governo do Diretório, por sua vez, levantou as mãos aos céus por se ver livre daquele general de 29 anos. Um rapaz perigoso com a ambição de um César. No dia 1º de junho de 1798, o jovem titã desembarcou da sua nau capitania, o "L'orient", nas proximidades de Alexandria no Egito, num local não muito longe das legiões de Pompeu e de Otávio. Levava consigo 300 navios e 35 mil soldados e, naturalmente, o seu departamento de sábios, que não demorou muito em ser apelidado pelos oficiais ciumentos de "a amante favorita do general". Dai entender-se sua preocupação para com eles e razão da sua cômica ordem, dada um pouco antes de deparar-se com a cavalaria inimiga na planície de Guizé: "les bêtes et les savants au demí", os burros e os sábios no meio!

A estratégia global de Napoleão era atrair a Grã-Bretanha para fora do Mar do Norte, bloqueando-lhe o contato com o seu império indiano. Azucriná-la bem longe de casa. Evidentemente que ele imaginava-se outro Alexandre, o Grande, tão moço e tão audacioso como o conquistador da Antigüidade. Como ele fizera em 334 a.C., carregando consigo um conjunto de especialistas e filósofos gregos para irem estudar o Oriente, Napoleão resolveu imitá-lo. Queria, como agente do Iluminismo europeu, somar à conquista militar os ganhos científicos. Abrir o Egito aos olhos da Razão. Ver o que a Esfinge e as Pirâmides de Guizé escondiam aos olhos de todos. Esmiuçá-las com as lentes cartesianas, afastando as milenares teias e poeiras que envolviam o passado delas, recompondo-o pelo crivo crítico do arsenal técnico das luzes.

No Renascimento, gente como o filósofo Marsílio Ficino sentiu-se atraído pelos mistérios do Egito, pela escrita hermética que se acreditava provir de lá, os seus indecifráveis hieróglifos. Nada disso desejava Napoleão. Nem mistérios, nem catar almas danadas vagando pelas tumbas ilustres, muito menos ir atrás de segredos insolúveis. Ao contrário, queria fugir da superstição. Tudo o que encontrariam nas suas andanças científicas seria arrolado, estudado e classificado, segundo os últimos recursos da técnica de investigação. O que não se sabia, o que não fosse entendido até aquele momento, seguramente seria revelado no futuro.

A inspiração direta para a expedição ao Oriente Médio, ao Egito, viera-lhe de uma obra que o impressionara muito quando ainda era tenente e leitor voraz: tratava-se da "Voyage en Égypte et en Syrie", do conde de Volney, editada em 1787. Na época Napoleão era um oficial pobre, mas visionário. Não seguiu Volney, no entanto, na sua indisposição antimuçulmana. Bem ao contrário, logo ao chegar, na Proclamação aos Muçulmanos, ele afirmou aos habitantes do Cairo: "nous sommes les vrais musulmans", somos os verdadeiros muçulmanos!

Entendia que seria uma rematada loucura dos franceses, como invasores e ocupantes, indisporem-se com a imensa população local por motivos de fé. Havia que respeitá-los. Dai ele ter surpreendido os seus próximos vestindo-se como um xeque, de turbante e tudo, enfiado em longas conferências com os lideres religiosos islâmicos, orientando os imãs, os muftis e os ulemás, para que interpretassem o Corão a seu favor. Proclamou-se cheik el beled, o grande xeque do Egito, e émir hagi, o protetor dos peregrinos, cuidando para que todos os seus decretos fossem traduzidos para a língua árabe.

Depois de dar sovas na cavalaria mameluca, espantando-a a canhonadas na célebre Batalha das Pirâmides, ele mesmo resolveu participar de algumas expedições. Em dezembro de 1798, na companhia dos sábios, rumou para o Sinai atrás de vestígios do antigo canal dos faraós (*).

Em um ano a equipe francesa tinha levantado enorme material. A tal ponto que Napoleão decidiu-se por fundar lá mesmo, em agosto de 1799, o Institut d¿Egypte. Dividido em 4 seções, sua função seria a publicação dos achados e tudo o mais que lhe dissessem respeito. Escolheu como sede o palácio mais belo do Cairo, o Hassan Cachef, que se tornou o berço da moderna egiptologia. O próprio Napoleão inscreveu-se como membro do departamento de matemática.

Desvendando os mistérios do Egito Antigo

Uma das maiores contribuições da expedição à ciência ¿ descoberta que abriu as portas da Egiptologia - só iria revelar-se alguns anos depois da expedição fracassada, quando o próprio império napoleônico já desaparecera. Em 1799, um soldado francês perto da aldeia de Rosetta, no Egito, encontrara uma estranha pedra, toda ela preenchida por letras e sinais. Descobriu-se que era um decreto do faraó Ptolomeu V Epifanes e que estava calcado em três escritas: o hieróglifo, o demótico e o grego, mas ninguém naquele momento apresentou-se com condições de decifrá-lo. Os ingleses se apoderam da pedra quando os franceses capitularam em 1801, carregando-a para o Museu Britânico.

Coube, mais tarde, a Jean-François Champollion, um gênio da filologia de apenas 32 anos, que dominava 6 antigos idiomas orientais, fora o grego e o latim, traduzi-la. Em 1822 o trabalho aprontou-se. Em 1824, ele concluiu seu "Précís Du système hiéroglyphique des anciens égyptiens" que foi a chave da revelação de todas as inscrições encontradas nos templos, pirâmides e demais tumbas reais.

Desde então um novo continente do conhecimento abriu-se e gradativamente uma das mais antigas civilizações da terra, a Egípcia, pôde ser desvendada e exposta à curiosidade do homem moderno, tornado-se a descoberta do significado dos hieróglifos um dos mais extraordinários legados do Iluminismo à idade contemporânea.

(*) Curiosamente o relatório do engenheiro-chefe J. -M Père, feito naquela ocasião, caiu mais tarde nas mãos dos ingleses quando eles ocuparam o Egito. Décadas depois, o diplomata Ferdinand de Lesseps, o futuro construtor do Canal de Suez, inspirou-se nele quando exercia as funções de cônsul francês em Alexandria em 1832, ficando possuído pela idéia de reconstruir a milenar artéria artificial desaparecida há milênios.

Fonte: Terra
Compartilhar
Publicidade