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João Goulart em meio à tormenta

20 mar 2014 - 20h37
(atualizado em 27/3/2014 às 14h14)
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<p>Senhoras católicas tomaram as ruas contra Jango</p>
Senhoras católicas tomaram as ruas contra Jango
Foto: CPDoc JB / Jornal do Brasil

Passada a crise política-institucional de agosto de 1961, João Goulart foi ungido à Presidência da República pelo Congresso Brasileiro em cerimônia realizada no dia 7 de setembro de 1961, em Brasília. Tudo parecia voltar à calma, depois das fortes emoções daquele ano quando, por muito pouco, o País não se autodestruiu numa guerra civil.

O regime parlamentarista, resultado de um improvisado Ato Adicional, não tardou em demonstrar sua inoperância, contribuindo para o aumento do caos administrativo e para a instabilidade política, em meio a uma inflação em disparada. E não podia ser de outro modo, pois, após mais de 70 anos de prática presidencialista, ninguém sabia como agir dentro de outro sistema.

O parlamentarismo fora adotado como um expediente para evitar a guerra civil e fazer com que as Forças Armadas, majoritariamente antijanguistas, não se sentissem humilhadas. Para evitar a repetição de algum levante fardado, João Goulart adotou uma política de transferência e remoções, afastando de comandos importantes os militares que tinham se comprometido com as imposições da junta golpista. No lugar deles, promoveu oficias "janguistas" ou pelo menos simpáticos ao seu projeto político e ao nacionalismo por ele defendido.

O encarregado de forjar uma armadura que protegesse o presidente de novos dissabores vindos das casernas foi o general Argemiro de Assis Brasil, guindado à chefia da Casa Militar. Como se veria nos acontecimentos posteriores, o "esquema militar" favorável a João Goulart acabou desabando, quando as guarnições de Minas Gerais se levantaram e facilmente colocaram o presidente na estrada do exílio.

Provavelmente uma das razões do fracasso do novo governo em seduzir os fardados vinha do fato de que parte significativa da oficialidade - devido à doutrinação anticomunista e antigetulista - não havia se conformado com os acontecimentos de 1961. Estes oficiais simularam uma retirada ordeira e trataram de aguardar a ocasião mais propícia para aplicar no presidente um golpe definitivo. A trajetória do então coronel Golbery do Couto e Silva, demonstrou claramente tal tática. Ele chegou a declarar que "o Exército fora derrotado" no episódio da Legalidade.  

Pesou, no desastre de 1964, o forte equívoco da política janguista e brizolista de estimular a divisão interna nos quartéis, apelando para os escalões subalternos na hierarquia militar (subtenentes, sargentos, cabos e praças), como uma espécie de contraforça à oficialidade, na vã tentativa de evitar outro alçamento antidemocrático. Para muitos isso lembrava a tática dos bolcheviques em 1917 que estimularam os soldados russos a não mais obedecerem aos oficiais, e até mesmo a voltar suas armas contra os superiores.

Essa política desestabilizadora fora eficaz no impedimento do golpe por ter neutralizado tanto o Terceiro Exército quanto a FAB no Rio Grande do Sul, em 1961. Mas tinha sido utilizada em uma situação passageira e não podia ser estendida ao restante do País, como projeto permanente de defesa do governo constituído. A indisciplina nos quartéis, fomentada ou pelo menos consentida pelas autoridades civis da República, ameaçava a quebra da estrutura hierárquica e pôs em xeque a própria razão de ser das Forças Armadas. Isso levou parte considerável da oficialidade apolítica, ou não comprometida ideologicamente com os conservadores, a aderir à sublevação de 31 de março de 1964.

O presidente e o seu cunhado (este cada vez mais propenso a uma retórica radicalizada) pareciam atuar para subverter a existência da corporação militar como um todo. Na hora aprazada ela reagiu de forma quase homogênea, pois poucos foram os militares que se mantiveram em obediência à constituição, rejeitando participar do golpe. 

As Reformas de Base

João Goulart inegavelmente era o herdeiro de Getulio Vargas. Portanto, os que o cercavam tinham o compromisso de dar seguimento à política getulista de ênfase no nacionalismo econômico e no projeto de extensão da cidadania à larga parte da população marginalizada das coisas públicas, como a adoção do voto dos analfabetos e o aumento real do salário mínimo. Além disso, havia o comprometimento com ampliação participativa dos sindicatos nas decisões governamentais. Tratava-se de por em prática a famosa frase do discurso de Getulio Vargas aos sindicalistas no Dia do Trabalho, em maio de 1954: Hoje vocês estão com o governo, amanhã vocês serão o governo.

Um dos graves embates que o novo governo enfrentou procedia do fato de que o povo sufragara Jânio Quadros, um candidato com bandeiras direitistas. E agora, ao contrário do presidente que renunciara, João Goulart propugnava por medidas esquerdizantes. Além disso, se vira cercado - desde as eleições estaduais de outubro de 1962 - por uma verdadeira corrente de inimigos (Carlos Lacerda no Rio de Janeiro, Magalhães Pinto em Minas Gerais, Ademar de Barros em São Paulo, Juracy Magalhães na Bahia, Ney Braga no Paraná e Ildo Meneghetti no Rio Grande do Sul), quase todos empenhados em derrubá-lo, esperando apenas que a ocasião propícia surgisse.

Entre os novos governadores que lhe davam apoio incondicional figuravam apenas Mauro Borges, de Goiás, e Miguel Arraes, de Pernambuco. Na Câmara Federal, o cenário não era diferente. Os partidários de Goulart não perfaziam mais do que 25% dos deputados (116 trabalhistas e mais seis socialistas). Nas urnas de 1962, o povo brasileiro repetira 1960 elegendo majoritariamente políticos antigetulistas e antibrizolistas.

Isso gerou uma situação esquizofrênica. Nas urnas de 1960, a maioria pendera para um candidato direitista, Jânio Quadros apoiado pela UDN. Sete meses depois quem assumia de fato a presidência (ainda que podado em várias de suas prerrogativas) era um homem de esquerda, Goulart, amparado pelos trabalhistas e pelos comunistas.

Em fins de 1962, a situação se repetiu. As urnas manifestaram-se pelos antijanguistas, quando o programa oficial do governo dava continuidade ao projeto getulista. João Goulart foi levado a um sério impasse: ou aproveitava aquela oportunidade ímpar para realizar o programa histórico do trabalhismo por meio das Reformas de Base ou simplesmente nada fazia.

As Reformas de Base tinham como metas imediatas a aprovação da Lei de Remessa de Lucros (que determinava a cota de dinheiro que as empresas poderiam enviar a seus países de origem) e o fim da Instrução 113 (lei de Janio Quadros que favorecia o desenvolvimento de empresas estrangeiras no País e prejudicava a indústria de bens de capital brasileira). Outras metas fundamentais eram a reforma agrária, a reforma habitacional, a reforma bancária, a implantação do monopólio (produção e distribuição) da energia por meio da Eletrobrás etc. O objetivo maior dessas mudanças era a proteção ao trabalhador brasileiro. Para isso, o governo concedeu um aumento de 100% no salário mínimo, estendeu os direitos trabalhistas e instituiu o 13º salário.

Deste modo, o presidente Goulart buscava recuperar as bandeiras do governo de Getúlio Vargas.  Também incentivou a desapropriação de terras ociosas valorizadas, o que gerou repercussão nos Estados Unidos. A resposta foi imediata: o Congresso norte-americano aprovou uma cláusula que previa represálias a quem nacionalizasse bens de empresas e firmas norte-americanas sem uma compensação justa. Em seguida, o governo dos Estados Unidos bloqueou o crédito externo ao Brasil e questionou a forma de administração brasileira.

 Poucas das Reformas de Base saíram do papel ou dos discursos, cada vez mais exaltados das lideranças esquerdistas que davam sustentação ao governo. O Congresso, predominantemente conservador, manifestava de maneira direta ou velada sua oposição aos propósitos reformistas. Uma cisão mais profunda que a de 1961 se cristalizava no País e os moderados de ambas as facções iam perdendo terreno no debate político nacional. Uma onda de radicalismo começava a avançar sobre a realidade brasileira.

Decisivo para o fracasso das Reformas de Base foi o pouco entusiasmo que despertaram nas classes médias urbanas. Estes estratos intermediários pouco teriam a ganhar com as mudanças propostas e além disso que estavam mais preocupados com a inflação gaopante e com a crescente desordem social.  Uma sequência  ininterrupta de greves grassava pelo País. Se nos cinco anos do governo de Jucelino ocorreram 177, nos dois anos e meio do período Goulart,  elas saltaram para 435. E o que parecia pior, muitas desses greves eram de apoio ao governo

Havia ainda outro fator importante: a preferência das classes médias em termos de organização social e estilo de vida não era pelo modelo cubano e sim pelo norte-americano. A matéria do sonho dos brasileiros, independente da classe social a que pertencesse, passava pelo american way of life. O antiamericanismo não contava com simpatias na sociedade em geral, até porque o País nunca fora invadido ou kcupado pela potência do norte, como tinha acontecido com o México e outras nações do Caribe e da América Central. Ao contrário, a tradição brasileira, desde a proclamação da republica em 1889, e reafirmada pelo Barão de Rio Branco, era ser aliada mais confiável dos Estados Unidos em todo o continente.

Isso significava que a contínua invocação à Cuba como exemplo a ser seguido - mote contínuo da retórica esquerdista - não seduzia as classes médias, cujos olhos sempre estavam pousados  (com maior admiração do que inveja)  em Nova Iorque do que em Havana ou Moscou. O verdadeiro sonho dela era reproduzir aqui o estilo de vida norte-americana, como Juscelino percebera,  jamais um coletivismo ao estilo soviético. Por conseguinte, esta camada intermediária, que se ampliava geometricamente nas cidades brasileiras, passou a observar com desconfiança o governo que ela mesmo apoiara durante os acontecimentos de 1961.  

O plebiscito de 1963

As forças nacionalistas, trabalhistas e comunistas* que haviam conseguido impedir o golpe militar,  não se conformaram com as limitações impostas pela emenda parlamentarista, estabelecida pelo Ato Adicional nº 4. Pres­sionaram Goulart no sentido de antecipar um plebiscito (marcado para ser realizado somente em 1965) que restabelecesse a plenitude do pre­sidencialismo. Estas forças acredita­vam que ele poderia vir a ser o grande reformador social que o País ansia­va. O estadista capaz de realizar uma política de estatização dos setores estratégicos da economia, de dar amplo espaço aos sindicatos, representados pela Central Geral dos Trabalhadores (CGT), e de executar as tão ansiadas reformas sociais e econômicas que , segundos eles, mudariam a cara do País.

Por fim, realizou-se o plebiscito. Em 6 de  janeiro de 1963 o povo  manifestou-se por  um sonoro "sim" ao presidencialismo. Sagrado pelas urnas (10 milhões de votos contra apenas dois de seus adversários), João Goulart recuperou a plenitude do seu mandato emasculado pelo acordo de setembro de 1961. Como observou-se meses depois, o repúdio ao parlamentarismo não significou um apoio irrestrito ao projeto do governo, mas sim ao caos político-administrativo que aquele experimento vinha provocando na sociedade há mais de um ano. Os aliados e seguidores de Jango entenderam erradamente que a grande maioria da população estava ao lado do projeto reformista.

(*) Em relação a Goulart, o Partido Comunista Brasileiro mudara de linha. Durante o segundo governo Vargas, os seguidores de Prestes fizeram campanha acirrada contra o presidente. O impacto de seu suicidio os pegou de surpresa, particularmente com a onda de consternação que inundou o Brasil em agosto de 1954. O PC decidiu redimir-se com Goulart, apoiando-o na maior parte do tempo, o que levou os comunistas a declarar que já estavam no poder.

A crise econômica

Entre 1963 aos primórdios de 64, consolidou-se a certeza, sobretudo entre os setores médios e mais altos do setor produtivo de que o País, sob a regência de Goulart, vivia numa espécie de “ponto morto” econômico. Ainda mais se a situação do presente fosse comparada à atividade frenética dos tempos de Juscelino. Como então um crítico definiu a situação: "era um capitalismo sem investimento e um socialismo sem se assumir". A inflação em 1963 começara a se tornar incontrolável, atingindo mais de 80%, e superando os 90% nas vésperas do levante de março de 1964.  A previsão para até o final daquele ano era de 144%. Foi o ápice de um processo de disparada inflacionária que vinha desde o governo JK e que parecia fugir do controle desde a renúncia de Jânio Quadros (1961 - 49,9%; 1962 - 50,4 %. 1963 - 82,1 e em 1964 - 93,3%)

Obviamente que os investimentos se esfumaçaram. Ninguém arriscaria seus capitais numa situação daquelas. Era raro encontrar quem acreditasse que Goulart conseguiria superar ou contornar a dimensão inflacionária. Ainda assim ele ainda tentou. A situação era tão grave que nem mesmo aquele que era considerado umas das cabeças pensantes da economia brasileira, Celso Furtado, Ministro do Planejamento, conseguiu injetar alguma esperança de melhoria com o seu Plano Trienal.

Elaborado em tempo muito curto, apenas três meses, o Plano Trienal tinha como objetivo fazer com que o PIB voltasse a crescer (a ideia era 7% ao ano) e também - pela primeira vez no País - iniciar um plano de distribuição de renda que favorecesse os mais pobres. O Plano - baseado na teoria estruturalista, então em voga - partia do princípio da continuidade da política gradual de substituições das importações, taxando os produtos estrangeiros e interpretando a culpa da disparada dos preços como resultante dos desequilíbrios existentes na economia brasileira.

Para alcançar a performance sonhada de 7% de crescimento ao ano foram alocados 3,5 trilhões de cruzeiros para investimentos, supondo que isto ocasionaria num aumento da renda per capita de US$ 323 em 1962, para US$ 363 até 1965. Era esperado também um crescimento surrealista de 70% na atividade industrial. Para tanto foram estabelecidas metas setoriais, destacando-se as que sublinhavam o peso da indústria automobilística e o incremento da capacidade geradora de energia.

Em síntese, a realização dos propósitos do Plano dependia da:

a) elevação da carga fiscal;

b) redução das despesas públicas programadas;

c) captação de recursos do setor privado no mercado de capitais; e

d) mobilização de enormes recursos monetários.

Como acentuou um analista, os objetivos eram extremamente contraditórios, evidenciando um planejamento irreal. O Plano Trienal aumentava impostos e tarifas, desprezando o efeito desses aumentos sobre os investimentos privados; reduzia os gastos públicos e autorizava o reajuste dos salários; anunciava a captação de dinheiro do mercado de capitais, mas não criava nenhuma regra regulatória para tanto; tentava conseguir recursos externos, enquanto crescia a hostilidade do próprio governo ao capital estrangeiro.                 

Celso Furtado sentiu a falta de outros elementos que pudessem dar solidez aos objetivos pretendidos. O Brasil daquele tempo carecia de um Banco Central e demais instituições normativas da vida econômica para assegurar a estabilização geral, numa sociedade sem crescimento, vitimada por inflação arrasadora e imersa em infindáveis tumultos.  Era como tentar um salvar um navio que soçobrava vergado pelas ondas. Contudo, a maior razão do fracasso do Plano Trienal deveu-se a falta de credibilidade do governo Goulart especialmente junto ao setor produtivo.

O gigantesco leque oposicionista

Vista em retrospecto, a política janguista foi uma declaração de guerra aos poderes tradicionais que de fato regiam o Brasil, aqueles a quem Ferdinand Lassalle denominou, num ensaio clássico, como "os verdadeiros poderes constituídos" (os grandes proprietários, o Exército e a Igreja). A eles se somou igualmente a “sombra branca” do poder norte-americano que nunca deixou de pairar sobre a nação brasileira naqueles momentos cada vez mais dramáticos, representada pelo simpático e afável embaixador Lincoln Gordon, incansável conspirador antijanguista. (*) Tratava-se de uma coalizão gigantesca que Goulart, de forma um tanto confusa, se dispôs a enfrentar.

Apesar das mudanças ideológicas que viriam mais tarde, os altos dignitários da Igreja Católica, com algumas exceções, não apenas estimularam abertamente a queda do governo por meio de homilias, sermões e panfletos, como mais tarde apoiariam o golpe de 1964. Coube ao clero fazer o chamamento dos devotos para que desfilassem em massa nas principais capitais dos estados denunciando Goulart como aquele que abriria o caminho para o "comunismo ateu".

Já o programa da reforma agrária, ainda que circunscrito às margens das rodovias federais e com promessa de indenização com títulos públicos, amedrontava os senhores de terra em geral, grandes e pequenos, enquanto o intento de estatização de empresas considerada estratégicas atacava de frente o empresariado liberal-conservador. A defesa destes setores foi feita pelo patriarca dos economistas brasileiros, Eugênio Gudin, que atuava como porta-voz do grande capital. Em um artigo que causou impacto na época, declarou abertamente que o presidente João Goulart estava “levando o Brasil à bolchevização”.

O projeto nacionalista irritava particularmente os Estados Unidos, ainda feridos com as desapropriações das companhias norte-americanas em Cuba, feitas por Fidel Castro, sem nenhum tipo de indenização A estratégia Goulart-Brizola de divisão das Forças Armadas pelo apoio aos subalternos frente aos seus superiores, aglutinou a maior parte da oficialidade das Três Armas contra eles.

Tanto aqueles oficiais que eram denominados como os da Legalidade (o que eram contra a insurgência); os da Sorbonne (cujo maior representante era o general Castelo Branco, da ala intelectualizada das Forças Armadas); e os extremistas da Linha Dura, anticomunistas exaltados, que assumiram a totalidade do poder depois de 68 e impuseram o AI-5, acabaram se unindo na preservação das prerrogativas da corporação. (*)

A classe média passou a abominar Goulart, pois ele não controlava a desordem nem tentava acalmar a tensão social, ambas resultantes da agitação intermitente. Expressão deste descontentamento foi a declaração dada pelo escritor e jornalista Antonio Callado, que nunca se afinara com a direita, sobre seu apoio ao golpe:  "A deposição de Jango – teve cobertura grande porque o Presidente estava levando o País à anarquia. (...) é inegável que o Brasil descia sem freios uma encosta que ia dar no caos."   

(*) Esta aproximação dos lideres trabalhistas com os escalões subalternos não era um novidade no Brasil republicano. Getulio Vargas e Osvaldo Aranha quando arquitetavam o levante de 1930 por igual se aproximou dos tenentes, cujas principais lideranças estavam exiladas em Buenos Aires (particularmente Luis Carlos Prestes, o herói da coluna homônima, que terminou rejeitando participar). Muitos deles aderiram ao processo revolucionário varguista (Juarez Távora, Djalma Dutra, João Alberto, Miguel Costa, Cordeiro de Farias, Eduardo Gomes, João Cabanas etc).

O arquipélago das conspirações

A direita brasileira (conservadores, liberais udenistas, ativistas anticomunistas e ex-integralistas) vinha há muitos anos articulando um golpe militar que pusesse um fim definitivo na república populista. No seu acervo conspirativo e golpista contava:

a) a tentativa de impugnação da eleição de Getúlio Vargas, em 1951;

b) a pressão pela deposição de Getúlio Vargas em 1954;

c) a tentativa de impedir a posse de  Juscelino Kubitschek, em 1955;

d) os levantes de oficiais da FAB em  Jacarecanga, em 1956, e novamente em Aragarças, em 1959; e

e) o veto a que João Goulart assumisse a presidência em 1961.

Aproveitando-se da trégua provocada pela adoção do  parlamentarismo, formou-se um imenso arquipélago de conspirações pelo Brasil como um todo, mas mais concentrado no triângulo que abarcava o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, nos quaias tinham a plena cobertura dos respectivos governadores. Setores antijanguistas, em inúmeras ilhas de conluios nem sempre secretos,  reuniram-se tanto nas agremiações militares como dentro dos quartéis, em partidos políticos e nas associações empresariais e comerciais. Da alta cúpula militar se faziam presentes na conspiração os marechais Odylio Denys, Cordeiro de Farias e Juarez Távora, e, mais discretamente,  o general Humberto Castello Branco, chefe do Estado Maior do Exército, que agia com a máxima prudência.

Ibade/Ipes

Expressando o sentimento da classe média afluente que ascendera desde o juscelinismo,  havia a  crença de que o País deveria ser dirigido por uma neo-oligarquia empresarial-militar de perfil tecnocrático que superasse o populismo e que seu poder, de certo modo, fosse imune às influências eleitorais. Exatamente era este o projeto em gestão na Escola Superior de Guerra (ESG), desde que fora refundada em 1949 pelo general Cordeiro de Farias, e que foi levado a diante pelo coronel Golbery do Couto e Silva, que depois de 1964 assumiria o Serviço Nacional de Informações (SNI).

 A função aglutinadora desta elite antipopulista foi executada pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrática/Ins­tituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ibade/Ipes). Estas instituições arregimentaram empresários e tecnocratas em vários estados importantes do País, particularmente no eixo Rio-São Paulo, realizando estudos e projetos alternativos à administração popu­lista. Ao Ibade, braço da CIA no Brasil, desde sua fundação em 1959, coube o papel de repassador de verbas a candidatos "confiáveis", isto é, anti-janguistas, obtendo significativo êxito nas eleições de 1962. Na mesma época a CIA fazia uma operação semelhante no Chile para evitar a vitória do senador socialista Salvador Allende, financiando os candidatos da Democracia Cristã.

O que esses setores temiam não era a figura de João Goulart, afinal um político de temperamento conciliador (como se verificara no episódio da aceitação do parlamentarismo), mas à  infiltração em seu governo de comunistas e nacionalistas exaltados que pregavam o rompimento com os Estados Unidos e uma exclusão dos investimentos estrangeiros. O marechal Odílio Denys, num depoimento dado a Hélio Silva (1964: golpe ou contra-golpe?, RJ, 1975), viu-o como "um Kerensky", o político russo que em 1917, sem o desejar, abriu as portas  para a tomada do poder pelos bolcheviques. Era, pois,  crescente o número de oficiais, entre 1963 e começos de 1964,   inclinados a romper com  a legalidade a pretexto de evitar uma "outra Cuba".

O cenário internacional

Desde o término da Segunda Guerra Mundial, as relações entre os Estados Unidos e a União Soviética se azedaram num confronto ideológico planetário, a chamada Guerra Fria. As superpotências dividiram o mundo em áreas de influên­cia, governando cada uma delas o seu próprio bloco. Os Estados Unidos comandavam a Organização do Atlântico Norte (Otan), a Organização do Tra­tado do Sudoeste Asiático (Otase) e o Tratado Interamericano de Auxílio Recíproco (Tiar), firmado com os países latino-americanos em 1947. Enquanto isso, a URSS liderava as forças do Pacto de Varsóvia, que cobria os países do Leste eu­ropeu: as ditas "democracias populares" ( Polónia, Thecoslováquia, Bulgária, Romênia, Hungria e Alemanha Oriental).

Para os estrategistas norte-americanos, o nacionalismo do Terceiro Mundo colocava-se objetivamente contra os seus interesses e, por conseqüência, aproximava-se estrategicamente da potência comunista. Mantiveram então  uma política de ativa desconfiança para com os lideres populistas latino-americanos, fossem eles  Juan Domingo Perón (da Argentina), Jacobo Arbenz (da Guatemala), Getúlio Vargas e João Goulart ( do Brasil), Haia de la Torre (do Peru ), ou Fidel Castro (de Cuba).

Paralelo ao duelo de gigantes, processava-se por grande parte do Terceiro Mundo o movimento de emancipação. As colonias européias da África da Ásia lançaram-se na luta pela independencia dos antigos Império Coloniais (Grã-Bretanha, França, Itália, Bélgica, Holanda. Portugal e Itália). Líderanças nacionalistas (Gandhi, Nasser, Jomo Kenyata, Nelson Mandela, Kuame N´Kruma, Sukarno, Agostinho dos Santos, Fidel Castro etc) exigiam pela força das armas ou pela negociação que "o domínio do homem branco" cessasse sobre eles.

Na Conferência de Rangun, na Indonésia, em 1955, acertaram  que os colonialistas:  

a) mantivessem o respeito a integridade territorial e soberania das novas nações emancipadas;

b) assumissem o compromisso de não-agressão;

c) não ousassem se ingerir  nos assuntos internos;

d) se comprometessem comercialmente com a igualdade e vantagens mútuas; e

e)  aderissem à coexistência  pacífica.

O Brasil viu-se tragado por essas duas forças, a da Guerra Fria e a da ascensão do nacionalismo terceiro-mundista.

A reação à Revolução Cubana

De acordo com a Doutrina da Segurança Nacional (National Security) desenvolvida pelo Pentágono a partir de 1947 - começo da guerra fria -, todos os movimentos políticos que ocorriam no mundo afetavam de algum modo os interesses estratégicos dos Estados Unidos. A Revolução Cubana de 1959 e as medidas sociais e políticas  tomadas pelo regime de Fidel Castro, por exemplo, foram interpretadas pelos americanos  como uma extensão dos projetos soviéticos de dominação da América Latina, região historicamente subordinada a eles.

Para evitar que o vírus daquela revolução contaminas­se os latino-americanos,  a administração John Kennedy adotou duas políticas. A primeira delas deu-se no campo sócio-econômico com o lançamento da Aliança para o Progresso, que estimulava reformas sociais e estruturais na América Latina. A outra, de inspiração estratégica-militar, a Doutrina da Contra-insurgência, sublinhava que os mecanismos de repressão à luta guerri­lheira passariam a ser executados pelas forças armadas latino-americanas, instruídas e supervisionadas por instrutores norte-americanos.

Para tanto, o Departamento de Estado abriu a Escola das Americas, no Panamá, centro de instrução militar e ideológica por onde passou grande parte da liderança militar do continente (um levantamento feito posteriormente, indicou que dos 500 altos oficiais selecionados que lá cursaram,  mais de 380 deles assumiram  funções de chefia nos  regimes de força que foram implantados na América Latina, a partir do sucesso do golpe militar de 1964 no Brasil).

 Escolheram-nos para serem adestrados no novo tipo de luta. Não mais a dos exércitos convencionais condicionados pela Segunda Guerra Mundial, mas sim de forças especiais preparadas para dar combate à guerrilha. Precisava-se, pois, reciclar a instrução militar. Até a Revolução Cubana, ela ainda estava orientada para o combate convencional. O sucesso da  guerrilha de Fidel Castro, culminando com a tomada de Havana em 1959,  provocara um alarma, obrigando a que o treinamento dos conscritos fosse orientado no sentido da luta  na selva ou nas montanhas. Para tanto era preciso a formação de regimentos especiais de comando (como foi o caso dos Rangers bolivianos). Isso levou inclusive à troca dos uniformes, deixando  de lado as cores tradicionais de cada país latino-americano para os de camuflagem.

Embriagados pela Revolução

As esquerdas não-comunistas latino-americanas, por sua vez, entusiasmadas com o sucesso dos cubanos, abandonaram a estrada do reformismo político e manifestaram-se pela solução da "lu­ta armada". Em todo o continente, exaltados pelas façanhas de Fidel Castro e do argentino Che Guevara,  embriagados pelas possibilidades da insurgência,  surgiram lideranças guerrilheiras tais como o padre Camilo Torres na Colómbia, Douglas Bravo na Venezuela, Carlos Maringhela e Carlos Lamarca no Brasil, Mário Firmenich na Argentina ou Raul Sendic no Uruguai, que agiram distantes dos partidos comunistas locais, tidos por eles como superados e ineficazes. Estavam convictos de que as transformações sociais desejadas passavam inevitavelmente pela ponta dos fuzis. Isso serviu de pretexto para que fossem combatidos e exterminados por Estados de Segurança Nacional, instalados e controlados pelas Forças Armadas de cada país, com apoio norte-americano.

Em plena agitação

Dos canaviais nordestinos às fábricas paulistas, dos quartéis às greves sistemáticas do porto de Santos, a agitação e a inquietação parecia não ter mais fim. Esta situação classificada pelos críticos de Goulart como "pré-revolucionária" exacerbou crescentemente as classes médias, jogando-as nos braços dos golpistas (um dos boatos que corria é que aqueles que possuíssem mais de um imóvel na área urbana se veriam expropriados).

Contramanifestações, organizadas pela Igreja Católica e por líderes conservadores, ou explicitamente direitistas, ocorreram em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Mas nem esses movimentos, que surpreendiam pela participação de milhares de pessoas, serviram de alerta ao governo e seus apoiadores. Estes, ao contrário, tinham certeza de que, por meio de protestos e seguidas paralisações, poderiam acuar os parlamentares, a ponto de mudarem seus votos, até então sabidamente hostis às reformas propostas pelos trabalhistas.

Difundiu-se então uma palavra de ordem entre aqueles que defendiam a causa reformista. Era uma consigna extremamente infeliz, já que ameaçava o prńprio Congresso nacional, caso este não aprovasse o projeto janguista: "Reformas na lei ou na marra". Igualmente, mais desastrada ainda foi a declaração de Luis Carlos Prestes, o histórico líder comunista, que disse a viva voz: "Nós não estamos com o governo, nós estamos no governo".

Os militares entenderam a expressão "na lei ou na marra" como um apelo à desobediência constitucional e uma chamada à rebelião geral, se deputados e senadores não cumprissem a vontade do governo. Significava o deflagrar de um processo revolucionário em que provavelmente as principais instituições do País seriam varridas sem contemplação. Assim, quando as Forças Armadas entraram em ação, alegaram estar defendendo o regime democrático, ameaçado pelos janguistas, brizolistas e comunistas.

A insubordinação dos escalões subalternos

Em 12 de setembro de 1963, os sargentos da Marinha e da Aeronáutica, liderados pelo sargento Antônio Prestes de Paula, servindo em Brasília,  insurgiram-se em protesto contra a decisão do Supremo Tribunal Federal que negara a eles o direito de disputarem eleições. Durante 12 horas eles controlaram o setor dos ministérios da capital. Rendidos,  mais de 500 deles foram anistiados pelo presidente (posteriormente, com o sucesso do golpe de 1964, todos eles foram expulsos das suas respectivas corporações).

O estabanado levante foi entendido pelos altos escalões militares como prova evidente "da infiltração comunista" e prenúncio do que poderia vir acontecer no futuro próximo: o ataque aberto  às instituições republicanas por escalões inferiores das forças armadas, incitados pelos  janguistas. Inúmeros oficiais legalistas, até então a favor do cumprimento da Constituição,  denunciaram  o rompimento do elo  da cadeia de comando. Nos quartéis, na esquadra e nas bases aéreas aumentava a tensão entre os comandantes e seus oficiais, de um lado,  e seus subordinados que ocupavam posições intermediárias, mais próximas das tropas, de outro lado.

O comício da Central do Brasil

No dia 13 de março de 1964, João Goulart decidiu fazer um comício de natureza radical na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Reafirmou então, frente a uma massa impressionante, o seu projeto de "lutar com todas as suas for­ças pela reforma da sociedade brasileira. Não apenas pela reforma agrária, mas pela reforma tributária, pela reforma eleitoral ampla, pelo voto do analfabeto e pela elegibilidade de todos os brasileiros, pela pureza da vida democrática, pela emancipação econômica, pela justiça social e pelo progresso do Brasil".

O ex-governador gaúcho Leonel Brizola - a personalidade mais expressiva do nacionalismo radical - procurou atiçar a massa presente contra o Congresso, apontado-o como uma confraria de privilegiados que jamais aprovaria as leis que o Brasil necessitava. Contra este Congresso das elites, ele propunha uma nova constituinte da qual emergisse um Congresso popular, formado apenas "por homens públicos autênticos". 

A marcha anticomunista

Seis dias após o lançamento das Reformas de Base, frente aos 300 mil trabalhadores que compareceram ao comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, veio a resposta. Em São Paulo, tendo a frente o governador Ademar de Barros e autoridades do clero, 500 mil pessoas, atendendo ao chamado da União Cívica Feminina,  desfilaram na Marcha com Deus pela Família e pela  Liberdade. Reagiam contra "o comunismo" e contra a assustadora desordem que diziam ser instigada ou acobertada pelo governo Goulart (em seguida a vitória do golpe, no dia 2 de abril, a Camde, Campanha da Mulher pela Democracia, reuniria 2 milhões de pessoas, no Rio e Janeiro).

Lá estava o povo - senhoras católicas em sua expressiva maioria - caminhando, implorando e rezando pela ação das Forças Armadas. Nas principais faixas e cartazes estavam inscritas frases anti-governistas: 'Deputados patriotas, o povo está com vocês'; 'Brizola: playboy de Copacabana'; 'Reformas só dentro da Constituição'; 'Basta de palhaçada, queremos governo honesto'; 'A melhor reforma é o respeito à lei'; 'Senhora Aparecida, iluminai os reacionários' etc.

Como se fosse a representação de um grande auto medieval, as multidões, pró e contra Goulart, umas com a foice e o martelo, outras com os crucifixos, umas com bandeira vermelha, outras com a verde-amarela, encenavam nas ruas e nas avenidas brasileiras o derradeiro ato de um grande drama político que vinha se arrastando há muito tempo pelo País inteiro.

A agonia do populismo

As greves, por sua vez, não cessavam, desgastando enormemente o governo por não conseguir ou não querer terminá-las. Praticamente todas elas eram promovidas por lideranças de alguma maneira vinculadas à Presidência da República. Exemplo desse atiçamento à greve é um discurso feito por Francisco Julião, o líder das Ligas Camponesas do Nordeste, em novembro de 1963: “A agitação e a greve já estão deixando a burguesia sem sono e acabando com a sua paz. Então agitemos! Então façamos greve! ...O Brasil necessita de mais agitação, As greves precisam se multiplicar por dez, por cem, por mil.”

Em imediata resposta ao protesto das classes médias, no dia 25 de março, os marinheiros da Armada, liderados pelo cabo Anselmo, organizados ao redor da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, levantaram-se no Rio de Janeiro. Durante o chamado Motim da Semana Santa, 1,2 mil marujos rebeldes concentraram-sedos no Palácio do Aço, sede do sindicato dos metalúrgicos. Para tornar ainda mais tensa a situação, receberam ainda a adesão de um destacamento de fuzileiros na­vais que se dirigira ao local para prendê-los. Mediante um acordo os sublevados foram levados presos para um quartel e imediatamentes anistiados por João Goulart. Inconformado, o ministro da Marinha, almirante Silvio Mota renunciou a seu cargo. Ao ter se posicionado a favor dos estamentos subalternos,  o Presidente  voltava a ferir os princípios da hierarquia militar. Quase mais mais ninguém na alta chefia militar estava disposto a dar-lhe sustentação.

Um abismo cada vez maior se abria entre as intenções reformistas do governo e a realidade que o sufocava. É provável que esta tenha sido a explicação para o desejo de João Goulart de encaminhar sua renuncia à presidência como confessou a alguns mais chegados, decisão da qual, em seguida, desistiu.

Um observador privilegiado, o historiador Décio Freitas, então trabalhando na Procuradoria Geral, em Brasília, disse que o governo - além da oposição de numerosos setores da sociedade brasileira - ainda se via paralisado pelo boicote de parte considerável da alta burocracia, que até hoje domina a máquina estatal no Brasil. Era comum um ministro determinar algo que simplesmente os funcionários não executavam.

O pouco empenho do segmento burocrático de Brasília, na verdade, era uma maneira de discreta censura, quando não de oposição, ou franca sabotagem, a qualquer intento do presidente por em prática o seu programa. Bastou os militares tomarem o poder para que os altos burocratas de imediato se mostrassem dispostos e diligentes, servindo fielmente os seus novos senhores pelos vinte anos seguintes.

Para coroar o desastre político, João Goulart e Leonel Brizola conseguiram se indispor com praticamente toda a mídia da época, cadeias jornalísticas, redes de rádio e TVs etc. Esta mídia não cessou de exigir sua remoção ou deposição. No livro O golpe de 64: a imprensa disse não, Thereza C. Alvim indicou os intelectuais que aderiram à deposição janguista. Entre eles figuravam celebridades como Alceu de Amoroso Lima, Antônio Callado, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Heitor Cony, Edmundo Moniz, Newton Rodrigues, Otto Lara Resende, Otto Maria Carpeaux, Carlos Castelo Branco e Alberto Dines.

Quase todos eles - longe de serem direitistas - começaram a aceitar a ideia de que não havia solução ao crescente caos e desgoverno senão a derrubada da liderança populista pela força das armas. Em editorial publicado em 29 de março de 1964, o Jornal do Brasil conclamou publicamente o Exército a intervir no afastamento imediato de João Goulart da cadeira presidencial.

'Basta!' 'Fora!' A imprensa ajuda a depor Goulart

Dois outros editoriais preparados pela equipe de redatores do Correio da Manhã do Rio de Janeiro, diário que não era dos mais ativos antijanguistas, servem como demonstração do engajamento da grande imprensa na deposição de João Goulart: o primeiro é o 'Basta', editado na manhã que antecedeu a mobilização militar:

Até que ponto o presidente da República abusará da paciência da Nação? Até que ponto pretende tomar para si, por meio de decretos-lei, a função do Poder Legislativo? Até que ponto contribuirá para preservar o clima de intranquilidade e insegurança que se verifica presentemente, na classe produtora? Até quando deseja levar ao desespero, por meio da inflação e do aumento do custo de vida, a classe média e a classe operária? Até que ponto quer desagregar as Forças Armadas por meio da indisciplina que se torna cada vez mais incontrolável?

Não é possível continuar neste caos em todos os sentidos e em todos os setores. Tanto no lado administrativo como no lado econômico e financeiro. (...)

Não é tolerável esta situação calamitosa provocada artificialmente pelo Governo, que estabeleceu a desordem generalizada, desordem esta que cresce em ritmo acelerado e ameaça sufocar todas as forças vivas do país.(...)

A Nação não admite nem golpe nem contragolpe. Quer consolidar o processo democrático para a concretização das reformas essenciais de sua estrutura econômica. Mas não admite que seja o próprio Executivo, por interesses inconfessáveis, quem desencadeie a luta contra o Congresso, censure o rádio, ameace a imprensa e, com ela, todos os meios de manifestações do pensamento, abrindo o caminho à ditadura.

Os Poderes Legislativo e Judiciário, as classes armadas, as forças democráticas devem estar alertas e vigilantes e prontos para combater todos aqueles que atentarem contra o regime.

O Brasil já sofreu demasiado com o Governo atual. Agora, basta!

O segundo editorial do Correio da Manhã ('Fora!') era mais agressivo ainda. Praticamente tomou a iniciativa de destituir João Goulart que naquela manhã ainda estava no Palácio das Laranjeiras no Rio de Janeiro e que, depois, rumaria para tentar alguma resistência a partir de Porto Alegre.

A Nação não mais suporta a permanência do Sr. João Goulart à frente do Governo. Chegou ao limite final a capacidade de tolerá-lo por mais tempo. Não resta outra saída ao Sr. João Goulart senão a de entregar o Governo ao seu legítimo sucessor. Só há uma coisa a dizer ao Sr. João Goulart: saia.

Durante dois anos o Brasil aguentou um Governo que paralisou o seu desenvolvimento econômico, primando pela completa omissão, o que determinou a completa desordem e a completa anarquia no campo administrativo e financeiro. (...)

O Sr. João Goulart iniciou a sedição no País. Não é possível continuar no poder. Jogou os civis contra os militares e os militares contra os próprios militares. É o maior responsável pela guerra fratricida que se esboça no território nacional. (...)

O Sr. João Goulart não pode permanecer na presidência da República, não só porque se mostrou incapaz de exercê-la, como também porque conspirou contra ela, como se verificou pelos seus últimos pronunciamentos e seus últimos atos.

O Brasil não é mais uma nação de escravos. Contra a desordem, contra a mazorca, contra a perspectiva de ditadura, criada pelo próprio Governo atual, opomos a bandeira da legalidade.

Queremos que o Sr. João Goulart devolva ao Congresso, devolva ao povo o mandato que ele não soube honrar”. (...)

O Baile da Ilha Fiscal do populismo

O  Baile da Ilha Fiscal (*) do governo populista, ocorreu no dia 30 de março de 1964, véspera do golpe, ocasião em que o Presidente compareceu a uma  grande confraternização no Automóvel Clube do Rio de Janeiro. Oportunidade em que Goulart recebeu as homenagens dos subtenentes e dos sargentos pela defesa que fizera dos interesses corporativos  deles. Entre tantos discursou na ocasião o Cabo Anselmo, líder dos revoltosos do dia 25 de março e, desde então,  símbolo dos amotinados da Marinha.

Foi a ultima aparição pública de Goulart como Presidente. Assistindo a tudo pela televisão na sua casa em Juiz de Fora, o general Olimpio Mourão Filho, que desde o dia 28 de março acertara comandar as tropas insurgentes, dali mesmo ordenou que os seus regimentos  pegassem nas armas e  entrassem nos caminhões para irem depor o Presidente que ainda estava no Rio de Janeiro.

(*) Referência ao famoso baile ao qual Dom Pedro II e a família compareceram dias antes da monarquia ser derrubada pelo golpe republicano.  O baile ficou como metáfora da alienação de certos governantes face ao abismo que se cava a seus pés e que eles, no entanto, não perceberam.

O milagre da sobrevida

Não deixa de ser espantoso o tempo de sobrevida que João Goulart conseguiu para postergar o desenlace frente esta confederação antipopulista e anticomunista que abarcava praticamente a maior parte dos grupos produtivos, religiosos, midiáticos e sociais do Brasil de então. Durou dois anos e seis meses.  Cometera a façanha de descontentar quase que o País inteiro, semi-paralizado pelas manifestações, protestos, greves e pela apaixonada discussão entre a direita e a esquerda sobre o destino nacional. Além disso, a incapacidade gerencial de seus agentes políticos somada à conspiração de setores internos e externos gerara uma situação econômica em que a ameaça de estagnação convivia com uma inflação descontrolada. Um clima de desordem, pânico e radicalismos de parte a parte assolava a nação.

Apesar da generosidade do seu programa de governo, que intentava uma operação jamais vista de inclusão social, foram poucos os que realmente acreditaram em sua viabilidade.  Amplas parcelas das classes médias, da Igreja, e a quase totalidade da burguesia e dos proprietários rurais associaram-no ou à temida Revolução Cubana ou simplesmente ao caos que já parecia se desenhar nas cidades brasileiras. As reformas janguistas eram vistas por muitos como o escancarar das portas dos infernos, de onde saltariam em massa as teratologias sociais e humanas do Brasil para vir a assombrar a todos.

A solidão e o exílio

Além do seu temperamento conciliador, é possível que um sentimento de real abandono e dramática solidão tenha acometido o presidente naqueles idos de março de 1964. É possível que por isso não quisesse ousar uma reação armada ao golpe, mesmo que ainda contasse com a fidelidade do comandante do poderoso Terceiro Exército, general Ladário Telles. Arrastado a uma radicalização que não se coadunava com seu espírito e provavelmente incapaz de ver a realidade pelas viseiras ideológicas, Jango percebeu que havia a iminência de um terrível e inútil derramamento de sangue. Além disso, a maioria de seus apoiadores nas Forças Armadas ou já estavam presos ou destituidos de suas funções. As grandes massas que haviam saído às ruas para defender sua posse em 61 agora pareciam desencantadas.

Praticamente ninguém se mobilizou para defender o seu governo ou sequer manifestar-lhe apoio. Com exceção de algumas arruaças em pouquíssimas capitais, não houve fábricas paradas, nem trens paralisados, nem a perspectiva de uma greve geral. Enquanto isso, as lideranças sindicais da CGT, entre elas Dante Pellacani, que lhe juraram apoio estavam em busca de embaixadas que os acolhessem e os deixassem partir para o exterior. Goulart antes de embarcar para o exílio uruguaio parecia um daqueles personagens de Shakespeare vagando solitário e cego por um reino que já não era dele e que jamais teria a possibilidade de recuperar.

Todo o radicalismo, toda a provocação dos seus apoiadores se desvaneceu em questão de algumas horas. Foi um raro golpe militar latino-americano que não produziu nem vítimas nem sangue, por não ter encontrado qualquer resistência relevante. Como previra o coronel Golbery do Couto e Silva, um dos principais articuladores de 1964, o governo Goulart "desmoronaria como um castelo de cartas".  

Fonte: Terra
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