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Getúlio Vargas: duas visões sobre a história do Brasil

1 mai 2014 - 08h07
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Vargas (centro) e apoiadores em Itararé, São Paulo, a caminho da Revolução de 30
Vargas (centro) e apoiadores em Itararé, São Paulo, a caminho da Revolução de 30
Foto: Claro Jansson / Wikicommons / Wikimedia

Escrever a biografia política de Getulio Vargas é, guardadas as devidas proporções, descrever boa parte da história brasileira do período 1930/54.

A figura de Vargas vem fascinando há tempos os “brazilianists” cujas pesquisas se intensificaram nos últimos anos. A primeira obra sobre esta marcante figura data de 1942, realizada pelo muito citado Karl Lowenstein (Brazil under Vargas, N. York, Mcmillan) que terminou sendo uma obra isolada por mais de vinte anos. O jejum foi rompido, tendo aparecido ultimamente três obras de importância, as quais procuram lançar luzes sobre a Era de Vargas. O primeiro a ser editado, causando relativo impacto, foi o trabalho de Thomas Skidmore (Brasil: de Getúlio a Castelo) editado pela Saga em 1969. No ano que passou fomos brindados por duas traduções: a de John Wirth (A política de desenvolvimento na Era de Vargas, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas) e a de John W. F. Dulles, filho do falecido secretário de Estado do governo Eisenhower. Foster Dulles (Getúlio Vargas: Biografia Política, Rio de Janeiro, Renes) editada com seis anos de atraso. Por sua vez a nossa historiografia não ficou marcando passo. Hélio Silva, como é de conhecimento geral, vem editando desde 1964 uma série de documentos referentes a Era de Vargas, os quais já atingiram o décimo segundo exemplar, muito deles já em segunda edição.

Há 100 anos nascia Carlos Lacerda, o maior inimigo de Vargas

O que se segue é uma analise da obra de John Watson Foster Dulles sob dois aspectos: primeiramente de maneira como ela é apresentada ao leitor, seu arcabouço. Em segundo lugar, faremos uma crítica à visão histórica de Dulles, apontando as omissões intencionais ou ingênuas daí decorrentes.

A obra é dividida em onze livros titulados de maneira inteligente, não se desviando nenhum do que realmente foi importante na Era de Vargas. É um impressionante painel narrativo. Cada livro por sua vez é dividido em capítulos numerados, cada um possuindo de duas a três páginas e meia de extensão. A bibliografia contida em dezenove páginas atinge quase quatrocentas obras, das quais trinta e uma são de autores americanos. As novidades estão nos memorandos e relatórios enviados pelos diplomatas americanos ao Departamento de Estado, material de difícil acesso ao historiador brasileiro.

O que nos impressiona são as entrevistas, todas elas realizadas no período de 1963 a 65. Um material de fazer inveja. Nada menos de oitenta e três personalidades do mundo brasileiro ou a ele ligadas, como no caso de embaixadores americanos que aqui serviram, são arrolados como testemunhas ou participantes dos principais acontecimentos da Era Vargas.

Em sua relação constam dois ex-presidentes da República: Dutra e Café Filho; quatro governadores ou interventores estaduais: Adhemar de Barros, Cordeiro de Farias, Juraci Magalhães e Benedito Valadares; ministros civis e militares, tais como Francisco Campos, Vasco Leitão da Cunha, Eduardo Gomes, Amauri Kruel e Juarez Távora; o ex-chefe de polícia do Estado Novo, Filinto Muller; político como Clemente Mariani, Tancredo Neves, Raul Pilla; o dirigente integralista Plínio Salgado; o líder do PC brasileiro, Luís Carlos Prestes; entre a intelectualidade destacamos Pedro Calmon, Caio Prado Júnior, Hélio Silva, Gilberto Freyre, Austregésilo de Athayde e Tristão de Athayde, assim como Afonso Arinos e Mello Franco. É de se perguntar se falta alguém!

<a data-cke-saved-href="http://noticias.terra.com.br/brasil/50-anos-do-golpe-de-64/" data-cke-656-href="http://noticias.terra.com.br/brasil/50-anos-do-golpe-de-64/">veja o infográfico</a>

A Visão Histórica De Dulles

Quanto a esta, apresenta os tradicionais defeitos do neo-positivismo (ideologia dos scholars americanos). Aliás, os mesmos defeitos apresentados pelos seguidores da doutrina econômica neoclássica, exacerbadamente criticados por John Galbraith, isto é, de analisar de maneira particular, isoladamente, os fenômenos estruturais da sociedade, sem fazer a devida interação entre eles. John W. F. Dulles é um ortodoxo. Para ele, a política é uma atividade executada por um determinado número de elementos humanos para tal capacitados, fechados em gabinetes, assembléias, palácios governamentais ou em reuniões conspiratórias. Aparentemente estas figuras “eleitas” por algum desígnio não especificado pelo autor representam suas funções tais como os heróis da tragédia grega, isolados em suas dores e poucas alegrias, cabendo ao resto da Nação o papel passivo de um coro que lamenta e aplaude as decisões dos heróis. O sr. Dulles parece ignorar os últimos trabalhos da moderna historiografia em relação às biografias políticas. Não conta com os levantamentos sociais e econômicos que tanto enriqueceram a história nos tempos mais recentes, entre as quais o trabalho de Boris Fausto sobre a Revolução de 1930 serve de modelo.

Para J.W. F. Dulles, a política é entendida no seu sentido vulgar, como “arte de governar” ou, como propunha Maquiavel, de se “manter no poder”. Não a entende como uma atividade muito mais ampla, que transcende a limitação da palavra, isto é, uma atividade onde todos os elementos da sociedade se dizem presentes, e se encontram representados e materializados no político.

Uma biografia política adquire maior dimensão quando consegue revelar o biografado em toda sua amplitude histórica. Que forças representam? A que tendência obedece? Quais as que lhe opõem? Pois todo indivíduo representa uma “categoria” de interesses que atuam na sociedade. Categorias essas “sociais e econômicas” que agem através dele, sobre ele e muitas vezes, como no caso de Vargas, contra ele. O sr. Dulles simplesmente emudece e este respeito. Não sabe aliar, por exemplo, as manifestações do Tenentismo (a revolta do Forte de Copacabana, de 1922, a Revolta de Isidoro em São Paulo em 1924, A coluna Prestes - Miguel Costa no período de 1924/27, e a própria revolução de 1930) a crescente clima de insatisfação reinante entre a classe média brasileira, marginalizada em suas tentativas de escolher “legalmente” seus representantes, no seu desejo de modernizar um país cujas estruturas políticas pouco se haviam alterado desde a deposição de D. Pedro II. Não vê os interesses de uma burguesia nacional, ainda que fraca, mas em ritmo de franco progresso, lutando por protecionismo e mais atenção dos “donos do poder”, a oligarquia “café com leite”.

Podemos dizer que Dulles cria uma imagem simpática de Vargas (afinal, Vargas aliou-se aos EUA na IIGM e cedeu uma base aeronaval para os americanos em Natal, no RGN). O autor louva-lhe a habilidade política, a transigência, a profunda reflexão que antecede qualquer tomada de decisão, o caráter contemporizador, o humanitarismo. Por outro lado, reconhece uma ponta de “maquiavelismo” em seu trato com inimigos, mas principalmente com os amigos (Borges de Medeiros, Flores da Cunha, Lindolfo Collor, João Neves da Fontoura e outros). Associa Vargas ao processo de modernização do país a uma maneira digna e séria no trato da “coisa pública”, característica, aliás, que herdou da tradição castilhista fortemente implantada no Rio Grande do Sul.

Além da crítica a ser feita em sua visão de história, devemos destacar outras falhas ou omissões de ordem estrutural que suspeitamos serem naturais num professor norte-americano. No jogo de interesses, dos quais os Estados Unidos fazem parte de forma leonina, o autor recorre aos despachos e memorandos da Embaixada Americana, fazendo-nos crer ser ela a única representante dos interesses do seu país. Não revela quais outras “categorias” representavam esses interesses, “categorias” pertencentes à própria estrutura de classes da sociedade brasileira.

Para dar ideia dessa omissão no do que ocorre no terreno dos acontecimentos econômicos e sua ação política, dedica o autor duas linhas e meia à crise de 1929 – o crash.

Dulles publicou esta biografia em um tempo que os documentos dos arquivos nacionais estavam bloqueados aos pesquisadores brasileiros. Na época do regime militar (1964-1985) nossa história era mais fácil de ser escrita por um acadêmico estrangeiro do que por um graduado nas nossas universidades.

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Fonte: Terra
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