PUBLICIDADE

Enciclopédia: Diderot e o dicionário da razão

Como um grupo de livreiros conseguiu tirar da prisão o único homem capaz de tocar o projeto da Encyclopédie

2 nov 2013 - 06h45
(atualizado às 06h45)
Compartilhar
Exibir comentários
Denis Diderot, o pai da Encyclopédie
Denis Diderot, o pai da Encyclopédie
Foto: Louis Michel van Loo / Wikimedia

Em julho de 1751, há mais de 250 anos, foi publicado o primeiro volume de uma série que fez história: a Encyclopédie, cuja edição estendeu-se por 21 anos, até 1772. Confirmou-se com o tempo como o mais prestigioso monumento intelectual que o movimento iluminista legou aos tempos modernos, concentrando em 28 volumes (17 de textos e 11 de ilustrações) a síntese de toda a sabedoria alcançada pelo homem até então. Tornou-se, simultaneamente, um documento de uma época e obra seminal de onde a maior parte da ciência contemporânea inspirou-se para avançar para patamares até então nunca imaginados pela humanidade: foi a Suma da Razão.

Uma carta suplicante

No verão de 1749, o conde d'Argenson, Chanceler de Luís XV, recebeu uma curiosa carta de suplicas. Tratava-se de um grupo de livreiros parisienses que implorava a intervenção daquela eminência para que M. Denis Diderot, um notável homem de letras que havia sido preso e conduzido ao cárcere de Vincennes, na manhã de 24 de junho daquele ano, fosse solto.

A alegação dos negociantes era no mínimo curiosa: haviam empatado um bom sonante num empreendimento editorial, um dicionário universal de ciências, de artes e ofícios, que só poderia ser tocado adiante por Diderot e ninguém mais. Ele é quem tinha a chave do sucesso, alegavam.

Não revelavam os missivistas nenhuma indignação pelo fato de um escritor ser encarcerado por delito de opinião – Diderot publicara um tempo antes um ensaio intitulado Lettre sur les aveugles à l'usage de ceux qui voient (Carta sobre os cegos para o uso dos que enxergam), que as autoridades consideraram uma provocação. Assim, eles pediam humildemente a Votre Grandeur, como repetidamente dirigiam-se a d'Argenson, que o libertasse sob pena de levá-los à falência. Concluíram-na colocando-se sob a proteção do conde, na expectativa de sensibilizá-lo com os rogos que faziam. Assinavam-na Le Breton, David, L'aîne, Durand e Briasson, livreiros e impressores do rei.

Capa do 1º volume da Encyclopédie (1751)
Capa do 1º volume da Encyclopédie (1751)
Foto: Reprodução

Desta forma, entre mais três outros pedidos de clemência que se seguiram e junto às alegações financeiras, eles afinal obtiveram a libertação de Diderot três meses e 10 dias depois de ter sido preso, podendo encaminhar os procedimentos para que, exatamente dois anos depois deste desagradável episódio, o primeiro volume da Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, par une Société de Gens de lettres saísse do prelo no mês de julho do ano de 1751.

Ordens de supressão e queima

Mas nada garantia a livre circulação do novo dicionário. Mal os dois primeiros volumes foram distribuídos aos seus assinantes (conseguiram com o tempo 4 mil inscrições, ao preço de 372 livres cada, um número espantosos para a época), o mesmo Conde d'Argenson entrou em ação em nome do rei. A obra, dizia o despacho real, era um perigo. Além de destruir a autoridade do monarca, visava a estabelecer o espírito independente, a revolta, a elevar os fundamentos do erro, à corrupção dos costumes, à irreligiosidade e à incredulidade. A Encyclopédie, concluía o Arret du Conseil d'État du Roi, de 7 de fevereiro de 1752, era uma ameaça à ordem pública e à honra da religião, cabendo ao rei determinar a imediata apreensão e destruição dos dois primeiros volumes.

Sua Majestade tinha razão, o grande dicionário era tudo aquilo mesmo. Ela iria implodir o Antigo Regime e inspirar a revolução de 1789. Por isso mesmo, sete anos depois, em 9 de fevereiro de 1759, quando atingia o seu 7º volume, o Parlamento de Paris aprovou e determinou que eles fossem laceres et brûlés, destruídos e queimados pelo carrasco. Ato que, felizmente, foi suspenso. Não revogaram, entretanto, a determinação de 1757 que condenava à pena de morte ou às gales os autores ou editores de "obras tendenciosas" que fossem distribuídas clandestinamente.

Laboratório de química
Laboratório de química
Foto: Reprodução

Denis Diderot

Os livreiros estavam certos, só Diderot era capaz de por aquela catedral da razão em pé. Não só em função das suas múltiplas habilidades em ciências, mas também por seu temperamento. Ele era um dos raros homens de letras de Paris com quem todos se davam bem, inclusive o mercurial Jean-Jacques Rousseau que, conforme a idade avançava, mais paranoico ficava. Afável, sincero, confiável, Diderot circulava com desenvoltura nos cafés e nos salões onde se criticava abertamente o despotismo ao tempo em que mantinha uma assídua correspondência com Catarina II, da Rússia. Ingênuo, chegou a supor ganhar a musa da autocracia para a causa dos filósofos. Quando em 1758 seu parceiro D'Alembert, um talentoso matemático e homem de ciências, desistiu de continuar como co-responsável editorial, ele seguiu adiante sozinho até o final. Não houve trovoada que o assustasse, nem ofensa que não respondesse, não existiu ameaça que o encolhesse. A sua pena não tremia em dar o troco aos intermináveis inimigos da publicação.

D'Alembert, co-editor da Encyclopédie
D'Alembert, co-editor da Encyclopédie
Foto: William Hopwood / Getty Images

A tempestade

Desde a aparição do primeiro volume (tiragem de 2050 exemplares), a Encyclopédie atraiu a artilharia pesada da oposição. Jesuítas, padres seculares, bispos e simples padres de aldeia, o partido dos devotos enfim, trataram de inflamar os espíritos contra os volumes que creditavam ser demoníacos. Oracle des nouveaux philosophes, "oráculo dos novos filósofos", batizou-a o indignado abade Guyon num polêmico escrito de 1759. Durante um decênio e meio, uma tempestade de artigos e uma enxurrada de vitupérios varreu o reino de Luís XV, provocando uma daquelas formidáveis querelas intelectuais de que só a França é capaz. Clamores pela fogueira de um lado, reforçados pela condenação da obra pelo Papa Clemente XIII (3/9/1759), eram respondidos com apelos ao bom senso e à tolerância pelo outro.

Um apoio inesperado

O partido dos filósofos, dos enciclopedistas, como eles passaram a ser chamados, contou com um apoio inesperado. Madame Pompadour, a amante do rei, talvez por identificar-se com a situação dos perseguidos, teceu os fios da sua apreciada proteção nos bastidores da câmara real, tolhendo as iniciativas dos fanáticos. Foi, dentro dos seus limites, a fada madrinha deles.

O fato do Parlamento de Paris ter aprovado a pena de morte em certas circunstâncias, para os escritores e livreiros era revelador da tensão a que o país e os seus homens de letras estavam submetidos. Os tempos, porém, eram outros, e os mecanismos da opressão não eram mais eficazes. Além disso, Diderot juntara a nata da inteligência francesa para colaborar na Encyclopédie. Era como se o melhor do espírito nacional em peso se sentasse à escrivaninha, pegasse pena, tinta e papel, e começasse a completar os verbetes do dicionário. Portanto, não era nada fácil reprimir os colaboradores ou hostiliza-los além da conta.

O partido dos filósofos

Não era apenas o partido dos devotos quem a injuriava. Na Academia Francesa, discursos candentes jogaram a Encyclopédie às feras. Até o teatro, de resto tão liberal, se manifestou contra. Na Commédie-Française, o comediógrafo Palissot, numa peça intitulada Philosophes, faz Jean-Jacques Rousseau aparecer andando de quatro no chão.

Voltaire, aquela altura quase um sexagenário auto-exilado em Genebra, não deixava nada sem resposta. A cada asneira que os devotos e os fanáticos publicavam, ele forrava a França com panfletos devastadores, mordazes, na defesa de Diderot e dos militantes da razão.

Na verdade os livre-pensadores, que formavam o partido dos filósofos daquela época, viram no dicionário uma tribuna excepcional, pois graças às subscrições numerosas eles atingiriam a elite pensante e governante do reino e também a crescente classe burguesa ávida por informação técnica e científica. Entenderam aqueles volumosos tomos como um começo: a revolução cultural que afirmaria a vitória da ciência e da razão sobre a superstição e o fanatismo religioso. A magnífica obra era a tumba definitiva dos desatinos medievais.

Popularizar o conhecimento

Queriam contemplar a todos, o fidalgo esclarecido, o burguês e o artesão, o ministro da corte e a favorita do rei, o cientista e o engenheiro. Retirar o conhecimento de dentro das universidades e abrir os laboratórios experimentais, quase secretos, expondo-os ao público curioso. Apesar de muitos poucos deles simpatizarem com a causa da democracia, ou mesmo se inclinarem pela monarquia, eles desejavam popularizar ao máximo as descobertas e os ofícios, queriam era ilustrar as gentes. Uma influência, como logo eles perceberam, que não se limitaria às fronteiras da França, expandindo-se para todos os lados, mesmo para inculta e bárbara Rússia ou para a obscura e devota Espanha. Voltaire e Rousseau, inimigos ideológicos, impuseram-se uma trégua, por assim dizer, para juntos colaborarem com a Encyclopédie. Ela virou um best-seller, com cinco outras edições em francês feitas nas cidades suíças até o final do século 18.

O mundo transformado num laboratório
O mundo transformado num laboratório
Foto: Reprodução

Os colaboradores

Já se disse que o verdadeiro gênio de Diderot não foi conseguir publicar todos os 28 volumes da Encyclopédie, mas congregar os estranhíssimos seres bizarros e esquisitos que são os homens de letras e de ciências. Suportar-lhes durante mais de vinte anos as esquisitices, os atrasos, as inconstâncias, as indecisões, as vaidades feridas e os melindres, sem perder as estribeiras ou enlouquecer. Feito digno de ensombrecer os trabalhos de Hércules.

Além dos já citados Voltaire e Rousseau, enriqueceram os verbetes os Barões de Montesquieu e D'Holbach, o grande naturalista Buffon, o cientista Helvetius, o gravador Papillon, o horologista Ferdinand Berthold, os gramáticos Beauzée e du Marsais, o arquiteto Blondel, o escultor Falconet, o cirurgião Antoine Louis, os economistas Fortbonnais e Turgot, os naturalistas Daubenton e Desmarest, perfazendo ao todo 140 autores, todos eles especialistas. Não houve espírito inquietante e inquiridor da França que não se fizesse presente entre os seus 72 mil artigos e 16.500 páginas. Até teólogos católicos liberais, que padeceram o diabo quando descobertos, enviaram suas contribuições.

Dados finais
Responsável-geral: Denis Diderot e D'Alembert (até 1758)
Editor: Le Breton
Anos de edição: de 1751 até 1772
Número de volumes: 28 (17 de textos e 11 de ilustrações)
Número de artigos: 72 mil
Páginas & palavras: 16,5 mil páginas / 17 milhões de palavras
Total de colaboradores: 140
Oposição: Colocada no índex e proibida (1759)

Discurso preliminar

Apesar da sua apreciável influência nas coisas do saber no Brasil e em Portugal, nunca houve uma tradução da Encyclopédie para o português. Em parte isso se explica não só pela carência de recursos e pela ativa censura dos padres e dos funcionários, mas também pelo fato da elite intelectual luso-brasileira não dominar o francês, em geral, com fluência. Só em 1989 a Editora Unesp (Universidade Estadual Paulista) providenciou a publicação bilíngue do Discurso Preliminar e mais alguns outros textos encerrados numa obra de um só volume, no qual Diderot e seu colega D'Alembert expõem nas 100 páginas iniciais as diretrizes gerais da magnifica obra.

Bibliografia
Darton, Robert. O Iluminismo como negócio: história da publicação da Enciclopédia (Cia. das Letras, SP, 1996)
Diderot e D'Alembert. Discurso preliminar - Enciclopédia ou dicionário raciocinado das ciências, das artes e dos ofícios (Unesp, SP, 1989)
Gay, Peter. The Enlightenment, an interpretation (Norton, NY, 1966, 2 vols)
Goulemont-Launay. El siglo de las luces (Guadarrama, Madri, 1969)
Groethuysen, Bernhard. Filosofia de la revolución francesa (FCE, México, 1989)
Groethuysen, Bernhard. La formación de la conciencia burguesa en Francia durante el siglo XVIII (FCE. México, 1981)
Hamson, Norman. O Iluminismo (Ulisseia, Lisboa, 1973)
Mornet, Daniel. Los origines intelectuales de la revolución francesa, 1715-1787 (Paidos. Buenos Aires, 1969)
Roche, Daniel. France in the Enlightenment (Harvard, Massachusetts, 1998)
Voltaire. Dictionnaire philosophique (Garnier-Flammarion, Paris, 1964)
Yolton, John W. (org.). The blackwell companion to the Enlightenment (Blackwell, Londres, 1991)
Fonte: Especial para Terra
Compartilhar
Publicidade
Publicidade