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Dom Quixote e Bolívar, a solidão do herói

Bolívar declarou certa vez que Jesus Cristo, Dom Quixote e ele eram os maiores ingênuos da história

29 mar 2013 - 07h00
(atualizado em 29/9/2013 às 21h33)
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Representação de Dom Quixote e seu fiel escudeiro, Sancho Pança
Representação de Dom Quixote e seu fiel escudeiro, Sancho Pança
Foto: Reprodução

É uma ideia de Miguel de Unamuno, o filósofo espanhol, que Dom Quixote, o personagem da novela de Miguel de Cervantes, teria prenunciado o destino final, solitário e triste, de todos os cavaleiros andantes do mundo hispânico, não escapando da desdita nem homens como o venezuelano Simón Bolívar, o Libertador, o uruguaio Gervásio Artigas ou o argentino San Martin, que morreram abandonados por todos, indo ou já estando no exílio.

Aliás, o próprio Bolívar declarou certa vez que Jesus Cristo, Dom Quixote e ele, Bolívar, eram os maiores ingênuos da história.

Entre os cavaleiros do céu

Ao encontrar pela estrada de Zaragoza um pequeno conjunto de relicários, reduzidas estátuas de santos guerreiros, Dom Quixote, desmontando de Rocinante, mostrou-os a Sancho Pança para que ele conhecesse a nobreza daqueles milicianos dos céus. Entre outros, ali estava o bravo São Jorge, que abatera o dragão, e, ao seu lado, um Don São Diogo, mata-mouros que, como o nome bem dizia, deitara fama mandando os infiéis a espadaços para o além. Grandes cavaleiros, disse Dom Quixote, gente que conseguiu um lugar junto aos espaços celestes graças à força do braço e da valentia.

Lamentou, então, que o destino dele era outro. Por ser cavaleiro terreno, encarregado de reparar as injurias e os agravos cometidos aqui na Terra, quase ninguém o conhecia. Nada sabiam da sua temeridade e das suas façanhas de justiceiro destemido, um valente capaz de enfrentar os encantamentos com peito aberto, hábil em escapar de todas as armadilhas dos bruxos e dos enfeitiçadores a serviço do mal.

Nem bem discursava enfático para Sancho quando uma partida de touros de Jarama, vindos em marcha pela estrada, ignorando a presença do Cavaleiro da Triste Figura, simplesmente o atropela. Desconsolado, tirando o pó de sobre a armadura amassada, diz a Sancho que afinal "nascera para viver morrendo". Quando ele esperava palmas e hurras de triunfo pelas coisas extraordinárias que fizera, eis que quase acabara seus dias esmagado pelas patas da tourama.

Simón Bolívar
Simón Bolívar
Foto: Reprodução
As amarguras finais de Bolívar

Foi esse quadro marcado pela decepção do herói de Cervantes que fez com que Miguel de Unamuno, num ensaio famoso (Don Quijote y Bolívar, 1931), comparasse o destino do Cavaleiro da Mancha com o de Simón Bolívar, o Libertador. Tal como o fidalgo manchego, Bolívar, depois de travar umas 80 batalhas pela libertação da América do Sul, só colheu desgraças junto aos seus. Ele, que até a natureza enfrentara depois de um terremoto ("Se a natureza se opõe a nós, lutaremos contra ela e faremos com que ela nos obedeça"), o estadista que fundara a república da Grã-Colômbia, o líder que ambicionava juntar todo o continente num colosso político só, num repente, por injunções da política, vira-se sem nada: sem saúde, sem poder e sem fortuna.

Por todos os lados, logo que os espanhóis foram batidos na batalha final de Ayacucho, no Peru, em dezembro de 1824, o que campeou nas terras recém-libertadas da América Hispânica foi a traição e as cruas rivalidades caudilhescas. Cada um dos seus generais, transformados em caudilhos, quis um país para si. Como ele era o símbolo mor de um projeto unitário, viram-no como um inconveniente, um trambolho sem uso a ser despachado para a Europa. A suprema amargura dele, de Bolívar, foi ter sido considerado proscrito, um fora da lei, pela Assembleia Nacional do seu país natal, a Venezuela, a qual ele emancipara em 1811.

Enquanto Dom Quixote arrastava as suas magras carnes para ir morrer no anonimato na sua fazendola em La Mancha, Simón Bolívar, despido de tudo, retirando-se com o corpo devastado pela tísica, seguiu a corrente do rio Madalena para ir morrer próximo ao porto de Cartagena. Não lhe saía da memória que, ao partir de Bogotá, na Colômbia, quando renunciara a tudo, um bando de desqualificados gritava para ele "Longanizo! Longanizo!", como chamavam um louco da cidade que perambulava pelas ruas fardado de general.

Um fim solitário

Antes de morrer, em 17 de dezembro de 1830, um amigo ainda consolou-o, dizendo-lhe que seu nome havia sido usado pelos revolucionários de Paris quando, meses antes, ao assaltarem o Hotel de Ville, bradavam versos inspirados nele:

Entrementes, a Grande República Americana que ele imaginara unida esvaiu-se em tiroteios, devorada por ambições paroquianas e despotismos sem fim dos caudilhos locais. Destino ingrato ao dele, por igual, tiveram os outros cavaleiros andantes da liberdade americana como San Martin, falecido na França, e Artigas, abrigado por favor no Paraguai do Doutor Francia. De certo modo, cada um deles, dos Libertadores, terminou por cumprir com o melancólico destino do Cavaleiro da Triste Figura, como se a literatura, a ficção, determinasse a história do porvir.

Fonte: Especial para Terra
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