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Darwin no Brasil - Parte II

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Voltaire Schilling

Na Bahia

Bahia. Ou São Salvador. Brasil, 29 de fevereiro - O dia transcorreu deliciosamente. Delícia, no entanto, é termo insuficiente para dar conta das emoções sentidas por um naturalista que, pela primeira vez, se viu a sós com a natureza no seio de uma floresta brasileira. A elegância da relva, a novidade das plantas parasitas, a beleza das flores, o verde vivo das ramagens e, acima de tudo, a exuberância da vegetação em geral me encheram de admiração.

A mais paradoxal das misturas entre som e silêncio reina à sombra das árvores. Tão intenso é o zumbido dos insetos que pode perfeitamente ser ouvido de um navio ancorado a centenas de metros da praia. Apesar disso, no recesso íntimo das matas parece reinar um silêncio universal.

Para uma pessoa apaixonada pela história natural, um dia como este traz consigo uma sensação de prazer tão profunda que se tem a impressão de que jamais se poderá sentir algo assim outra vez. Depois de vagar por algumas horas, decidi voltar ao local de desembarque; antes de alcançá-lo, contudo, fui surpreendido por uma tempestade tropical. Procurei me abrigar debaixo de uma árvore, cuja copa cerrada seria impermeável à chuva comum da Inglaterra. Aqui, porém, após alguns minutos, descia pelo enorme tronco uma pequena torrente.

É à violência desta chuva que devemos atribuir a verdura do solo nas matas mais densas, pois, se as pancadas fossem como nos climas mais frios, a maior parte da água seria absorvida ou evaporaria antes que chegasse ao chão. Não tentarei fazer agora a descrição do cenário desta gloriosa baía, porque, em nossa viagem de regresso, voltaremos a ancorar aqui, havendo então ocasião mais propícia para dar conta disso.

Ao longo de toda a costa brasileira, numa extensão de 3200 quilômetros, e certamente sobre uma considerável superfície do litoral, onde quer que se encontre uma rocha sólida, esta será de formação granítica. A circunstância de que esta enorme área seja constituída por materiais que a maioria dos geólogos acredita ter se cristalizado quando submetidos ao calor sob pressão, dá espaço para muitas e curiosas reflexões. Teria este efeito sido produzido nas profundezas do oceano? Ou seria o caso de um estrato primitivo que cobrisse toda a região e tivesse sido posteriormente removido? Pode-se acreditar que algum tipo de força, atuando durante quase uma eternidade, seria capaz de desnudar o granito por tantos milhares de léguas quadradas?

Lembrando Humboldt

Num local não muito distante da cidade, onde um riacho deságua no mar, observei um fato relacionado com um assunto discutido por Humboldt*. Nas cataratas dos grandes rios Orinoco, Nilo e Congo, as rochas sieníticas são cobertas de uma substância negra que lhes dá a aparência de um polimento feito com plumbagina. A camada é extremamente fina. Segundo a análise de Berzelius, ela está constituída de óxidos de manganês e ferro. No Orinoco, esta ocorrência se verifica sobre os rochedos periodicamente lavados pelas inundações, e somente nas localidades em que a correnteza é muito rápida, ou, como costumam dizer os índios: "As rochas são negras onde a água é branca". Nestes rochedos a camada costuma ser de um marrom vivo ao invés de negra e parece composta somente de matéria ferruginosa. Espécimes portáteis não fornecem a idéia exata do que são essas pedras de polimento pardo que cintilam aos raios solares.

Elas ocorrem exclusivamente nos limites das ondas; e, visto que este riacho serpenteia vagarosamente, é na violência da rebentação que deveremos procurar o agente de polimento, representado nos grandes rios pela força das cataratas. De mesmo modo, a enchente e a vazante das águas provavelmente substituem as inundações periódicas, produzindo assim os mesmos efeitos em circunstâncias análogas, embora aparentemente diversas. A origem destas camadas de óxido metálico, contudo, que parecem cimentadas sobre as rochas, não é compreendida. Não creio que se possa atribuir uma razão para o fato da espessura permanecer constante.

Peixe-esfera

Certo dia, diverti-me ao observar os hábitos do Diodon antennatus, que foi apanhado enquanto nadava próximo à praia. Este peixe, com sua pele flácida, possui, como sabido, a singular capacidade de distender o corpo numa forma quase esférica. Após ter sido tirado da água por alguns momentos e depois mergulhado novamente, uma considerável quantidade de água e de ar é absorvida pela boca, o mesmo acontecendo provavelmente pelos orifícios branquiais.

O processo se efetua de dois modos: o ar é aspirado e, em seguida, forçado a penetrar na cavidade do corpo, de onde não pode retornar em função de uma contração muscular que é externamente visível. A água, porém, penetra numa corrente branda pela boca que é mantida aberta e imóvel. Isto indica, portanto. que o ato se baseia na sucção. A pele do abdome é muito mais flácida do que a do dorso. Desta forma, durante a inflação, a superfície inferior se distende muitíssimo mais do que a superior.

O peixe, por conseqüência, flutua com as costas voltadas para baixo. Cuvier duvida que o Diodon nessa posição possa nadar. Todavia, o animal pode se mover não só em linha reta como também se voltar de um lado para o outro. Este último movimento é efetuado exclusivamente pela ação das barbatanas peitorais, a cauda colapsada e inativa. Em função do corpo boiar com tanto ar no interior, as aberturas branquiais se mantêm fora d¿água, mas um fluxo aspirado pela constantemente as atravessa.

O peixe, tendo permanecido algum tempo distendido, expele o ar e a água com grande violência pelas aberturas branquiais e pela boca. Pode soltar, também, apenas parte da água, o que leva a crer que o fluido é aspirado com o fim de regular a gravidade específica do animal. Este Diodon dispõe de vários recursos de defesa. Além de possuir uma severa mordida, é capaz de expelir um jato d¿água a certa distância, fazendo ao mesmo tempo um ruído curioso pelo movimento das mandíbulas. Com a inflação do corpo, as papilas, que recobrem sua pele, tornam-se eretas e pontudas.

A circunstância mais notável, no entanto, é que, quando tocada, a pele do ventre segrega uma matéria fibrosa de linda cor vermelho-carmim, que mancha o marfim e o papel de modo tão persistente que seu brilho permanece até os dia atuais: sou um tanto ignorante quanto à natureza e utilidade desta secreção. Ouvi do Dr. Allan de Forres que ele freqüentemente encontrava um Diodon flutuando, distendido e vivo, no estômago do tubarão; e que soubera de vários casos em que o animal tinha aberto uma passagem para si, não só através das paredes gástricas como também das tramas musculares, matando, desta forma, o monstro que o havia engolido. Quem poderia imaginar que um peixe pequeno e flácido fosse capaz de destruir um colossal e selvagem tubarão?

De novo no Mar

18 de março. - Partimos da Bahia. Alguns dias mais tarde, não muito distante das ilhas dos Abrolhos, tive minha atenção atraída por uma coloração vermelho-pardacenta que se notava no mar. Toda a superfície da água, conforme se via através de uma lente de pequeno aumento, parecia como que coberta de minúsculos fragmentos de feno, com as extremidades franjadas. São diminutas confervae cilíndricas, em colônias de vinte a sessenta indivíduos. O sr. Berkeley informou que são da mesma espécie (Trichodesmium erythraeum) encontrada em grandes áreas do Mar Vermelho, ocorrência que inclusive nomeia o próprio mar*.

Seu número deve ser infinito: o navio atravessou vários bandos, um dos quais media cerca de nove metros de largura e, a julgar pela cor barrenta da água, pelo menos quatro quilômetros de comprimento. Em quase toda longa viagem longa que se faça, estas confervae são presença registrada. Parecem ser especialmente comuns nas águas próximas à Austrália. Ao largo do Cabo Leeuwin, encontrei uma espécie semelhante, porém menor e aparentemente de uma espécie diferente. O Capitão Cook, na sua terceira viagem, registra que os marinheiros lhe deram o nome de serragem-do-mar.

Perto do Atol de Keeling, no Oceano Indico, observei massas de confervae muito pequenas, medindo alguns milímetros quadrados e consistindo de filamentos cilíndricos longos e excessivamente finos, quase invisíveis a olho nu, misturadas com outros corpúsculos maiores apresentando extremidades finamente cônicas. A gravura mostra dois indivíduos juntos. Eles variam em comprimento entre um milímetro e um milímetro e meio, atingindo mesmo dois milímetros; e em diâmetro entre quinze e vinte centésimos de milímetro.

Próximo de uma extremidade da parte cilíndrica, um septo verde, formado de substâncias granulosas, mais grossas no centro, pode geralmente ser visto. Isto, creio, é o fundo de uma delicadíssima bolsa incolor, composta de matéria polpuda, que forra o invólucro por dentro, sem que, no entanto, se estenda às pontas extremas e cônicas. Em alguns espécimes examinados, o lugar ocupado pelo septo apresentava minúsculas mas perfeitas esferas de substância granulosa pardacenta. Pude também observar o curioso processo pelo qual se produzem.

Subitamente, a matéria polpuda do interior se agrupa e se alinha, algumas das quais partindo de um centro comum. Em seguida, com um movimento irregular e rápido, a fim de se contrair, transformava-se, depois de um segundo, numa perfeita esfera que ia ocupar a posição do septo em uma das extremidades do invólucro agora completamente oco. A formação da esfera granulosa se acelerava sob qualquer dano acidental. Posso acrescentar que freqüentemente um par destes corpos se unia, como representado acima, cone justaposto a cone, na extremidade em que ocorre o septo.

As várias cores do mar

Acrescentarei aqui algumas outras observações sobre a descoloração do mar devido a causas orgânicas. Na costa do Chile, poucos quilômetros a norte de Concepción, o Beagle passou, um dia, por grandes zonas de água lamacenta, exatamente parecida com a água de um rio inundado. Em outra ocasião, um grau ao sul de Valparaíso e a oitenta quilômetros da costa, este aspecto se dava de maneira ainda mais clara. Num copo de vidro essa água apresentava um matiz vermelho pálido; e, examinada sob o microscópio, viam-se pulular animálculos minúsculos, muitos dos quais freqüentemente explodiam. Sua forma é oval, contraídos na parte central por um anel formado de cílios curvos vibráteis.

Era, entretanto, muito difícil de examiná-los cuidadosamente, uma vez que, no instante em que cessava o movimento, ou mesmo ao atravessarem o campo ocular seus corpos explodiam. Às vezes, as duas extremidades explodiam ao mesmo tempo; outras vezes, uma só, projetando-se, então, uma substância granulosa, áspera e pardacenta. Um instante antes de explodir, o animal se expandia a quase o dobro de seu tamanho normal. A explosão ocorria dentro de quinze segundos depois de cessado o rápido movimento de progressão. Em alguns casos, a explosão era, durante curto intervalo, precedida de um movimento de rotação em torno do eixo mais longo.

Deste modo pereciam, em dois minutos, quantos indivíduos se vissem isolados numa gota de água. Os animais se locomoviam com o ápice estreito voltado para frente, por meio dos cílios vibráteis e, em geral, deslocando-se rápida e subitamente. São excessivamente minúsculos e inteiramente invisíveis a olho nu, não ocupando mais que o espaço de 25 milésimos de milímetro quadrado. Seu número é infinito, pois na gota mais reduzida que consegui colher sempre havia uma grande quantidade deles. Noutro dia, atravessamos dois lugares no mar em que a água se via assim turvada, sendo que um deles deveria cobrir uma área de vários quilômetros quadrados.

Que número incalculável desses animais microscópicos! A cor da água, vista de longe, lembrava um rio que tivesse transbordado em algum distrito de barro vermelho; mas, à sombra lateral do navio, escureciam-se como chocolate. A linha em que a água vermelha e azul se juntavam estava claramente definida. Havia alguns dias que o tempo se mantinha calmo, e o oceano, num grau fora de comum, abundava de criaturas vivas*.

No mar em torno da Terra do Fogo, e não longe da costa, observei algumas faixas estreitas de água de um vermelho brilhante, produzidas por numerosos crustáceos que de alguma forma lembravam camarões gigantes. Os caçadores de focas os chamam de comida-de-baleia. Se as baleias se alimentam desses animais, não sei dizer; mas andorinhas-do-mar, cormorões e imensos grupos de focas gigantescas que se arrastam aos milhares em alguns lugares da costa têm como principal meio de subsistência esses caranguejos nadadores. Os marinheiros invariavelmente atribuem aos ovos de peixe a descoloração da água. Descobri, no entanto, que somente em uma das ocasiões era essa a causa.

A uma distância de vários quilômetros do Arquipélago de Galápagos, o navio cruzou três faixas de água amarelo- escuro, com aspecto lamacento, medindo alguns quilômetros de comprimento. Essas faixas, contudo, tinham apenas poucos metros de largura. A linha de separação da água comum era muito nítida, ainda que sinuosa. A cor era resultante de pequenas bolas gelatinosas, de cerca de cinco milímetros de diâmetro, contendo um grande número de minúsculos óvulos esféricos: estes eram de dois tipos distintos, cada qual tendo um tipo de matiz avermelhado e uma forma diferente do outro. Não posso fazer nenhuma conjetura sobre a que duas espécies de animais esses óvulos pertenciam.

Afirma o Capitão Colnett que a sua presença é muito comum entre as Ilhas Galápagos e que a direção que tomam as faixas é a mesma das correntes marítimas. No caso que acabei de descrever, contudo, a linha tinha sido dada pelo vento. O único outro aparecimento que tenho a mencionar é a de uma fina película oleosa refletindo cores irisadas na superfície da água. Pude ver na costa do Brasil uma considerável extensão do oceano coberta desta maneira. Os marinheiros a atribuem à decomposição de alguma carcaça da baleia, que provavelmente esteja à tona em lugar não muito distante. Não mencionarei aqui as diminutas partículas gelatinosas, a serem referidas mais tarde, freqüentemente dispersas sobre a superfície da água, pois elas não são suficientemente abundantes para provocar qualquer alteração de cor.

Indagações

Há duas circunstâncias nos comentários acima que parecem notáveis: em primeiro lugar, de que maneira os vários corpúsculos que formam faixas com margens tão nítidas se mantêm juntas? No caso dos caranguejos nadadores, seus movimentos se davam com a mesma uniformidade de um regimento de soldados. Isto, contudo, não pode acontecer de maneira voluntária com os óvulos ou as confervae, nem provavelmente entre os infusórios.

Em segundo lugar, que causa pode produzir o comprimento e a estreiteza das faixas? Há tanta semelhança entre essa aparência e a que se nota em toda grande torrente, onde a correnteza faz desenrolar em longas cintas a espuma colhida nos redemoinhos, que devo atribuir o efeito a uma ação idêntica de correntes, sejam elas aéreas ou marítimas.

Sob essa suposição, somos forçados a crer que os vários corpúsculos organizados são gerados em certos lugares favoráveis, e então removidos pela ação do vento ou da água. Confesso, entretanto, que há grande dificuldade em imaginar um local qualquer que pudesse ser o berço dos milhões de milhões de animálculos e confervae; pois, de onde teriam procedido os germes encontrados em tais pontos? - os corpúsculos paternos foram espalhados pelo vento e pelas ondas sobre um oceano imenso. Em nenhuma outra hipótese, porém, eu poderia compreender o seu agrupamento linear. Posso acrescentar que Scoresby observa que esta água esverdeada, abundante em animais pelágicos, é invariavelmente encontrada em certas partes do Mar Ártico.

No Rio de Janeiro

Rio de Janeiro - Excursão ao norte de Cabo Frio - Grande evaporação -Escravidão - Baía de Botafogo - Planariae terrestre - Nuvens sobre o Corcovado - Temporal - Rãs musicais - Insetos fosforescentes - Poder de salto do Elatro- Névoa azul - Estalido produzido por uma borboleta - Entomologia - Formigas - Vespa matando uma aranha - Aranha parasita - Artifícios de uma Epeira - Aranha gregária - Aranha de teia assimétrica.

4 de abril a 5 de julho de 1832. - Alguns dias depois da nossa chegada, travei conhecimento com um inglês que estava indo visitar sua propriedade situada ao norte de Cabo Frio, a mais de cento e sessenta quilômetros de distância da capital. Convidou-me para acompanhá-lo e eu prontamente aceitei sua gentil oferta.

8 de abril. - A nossa caravana consistia de sete pessoas. O primeiro estágio do percurso foi muito interessante. O dia estava excessivamente quente, e ao passarmos pelos bosques nada se movia, com exceção de algumas borboletas grandes e brilhantes que preguiçosamente esvoaçavam de um lado para outro. A vista que se revelava por detrás das colinas de Praia Grande era deslumbrante, as cores eram intensas, prevalecendo um tom azul escuro; as águas tranqüilas da baía disputavam com o céu em esplendor.

Depois de termos atravessado algumas áreas de terra cultivada, embrenhamo-nos em uma floresta, cujos recantos eram de inexcedível grandiosidade. Ao meio-dia, chegamos a Itacaia. Esta pequena aldeia estava situada numa planície e no entorno da casa principal se viam as cabanas dos negros. A forma e a posição dessas cabanas me fizeram lembrar das gravuras que vi de habitações hotentotes na África do Sul. Como a lua nascesse cedo, resolvemos partir na mesma tarde, a fim de alcançarmos nosso lugar de pernoite, junto à Lagoa Maricá. Como escurecia, passamos sob uma das íngremes colinas de granito maciço, tão comuns neste país. É lugar é notório pelo fato de ter sido, durante muito tempo, o quilombo de alguns escravos fugidos que, cultivando um pequeno terreno próximo à vertente, conseguiram produzir o necessário para o próprio sustento. Acabaram sendo descobertos e reconduzidos dali por uma escolta de soldados.

Uma velha escrava, no entanto, preferindo a morte à vida miserável que vivia, lançou-se do alto do morro, indo se despedaçar contra as pedras da base. Para uma matrona romana, este gesto seria chamado de nobre amor à liberdade. Para uma pobre negra, porém, este ato não passava de uma obstinação simples e brutal. Continuamos cavalgando por várias horas. Nos primeiros quilômetros a estrada era intrincada e passava por uma região desolada de lagunas e pântanos. À luz mortiça do luar, o cenário se fazia ainda mais desolador. Alguns vaga-lumes cruzavam o ar perto de nós, e a nosso ouvido chegava o gemido da narceja, que fugia à nossa passagem. As ondas que se quebravam nas praias ao longe cortavam o silêncio da noite com seu marulhar surdo e monótono.

Freqüentando a Venda

Um octopus

9 de abril. - Antes do nascer do sol, deixamos o local miserável em que passamos a noite. A estrada passava ao longo de uma planície estreita e arenosa que se estendia entre o mar e as lagunas salgadas interiores. Um grande número de belas aves ribeirinhas, como as garças e os grous, e as plantas suculentas que assumiam formas fantásticas davam ao cenário um interesse que de outra forma não possuiria.. As poucas árvores atrofiadas que se viam, estavam cobertas de plantas parasitas, entre as quais se podiam admirar a beleza e deliciosa fragrância de algumas orquídeas. À medida que o sol se erguia, o dia se tornou intoleravelmente quente, e a areia branca, refletindo a luz e o calor, causou-nos um mal-estar intenso. Fizemos a refeição em Mandetiba, com o termômetro marcando 28°C à sombra. Daí, viam-se morros distantes, cobertos de arvoredo, que se espelhavam nas águas tranqüilas de uma extensa lagoa, algo que nos reconfortou.

Como a Venda em que ficamos era ótima e me produziu uma reminiscência agradável, ainda que vaga, de um excelente almoço farei a seguir, a fim de provar minha gratidão, a sua descrição, como típica no gênero. Essas casas geralmente são espaçosas, construídas com postes verticais entrelaçados de ramos que são depois rebocados. Raramente possuem soalho; janelas com vidraças, nunca. São, entretanto, geralmente. muito bem cobertas. Como via de regra, a parte da frente é toda aberta, formando uma espécie de alpendre, em cujo interior se colocam mesas e bancos. Os dormitórios são contíguos de cada lado, e neles os hóspedes podem dormir, com o conforto que lhes for possível, sobre uma plataforma de madeira e um magro colchão de capim. A Venda ficava no quintal em que os cavalos eram alimentados. Costumávamos, ao chegar, desarrear os animais e lhes dar sua ração de milho*. Em seguida, curvando-nos reverentemente, pedíamos ao senhor que nos fizesse a gentileza de nos dar qualquer coisa para comer: ¿O que quiserem, senhores!¿, era sua resposta habitual. Nas primeiras vezes, dei em vão graças à Providência por nos haver guiado à presença de tão amável pessoa. Prosseguindo o diálogo, porém, o caso invariavelmente assumia o mesmo aspecto deplorável.

- Pode fazer o favor de nos servir peixe?

- Oh, não, senhor.

- Sopa?.

- Não, senhor.

- Algum pão?

- Não, senhor.

- Carne seca?

- Oh! Não, senhor!

Se tivéssemos sorte, esperando umas duas horas poderíamos conseguir frangos, arroz e farinha. Não raro tivemos que abater pessoalmente a pedradas as galinhas que nos iam servir para o almoço. Quando, extenuados de cansaço e de fome, dávamos timidamente a entender que ficaríamos satisfeitos de ver a mesa posta, a resposta pomposa usual (se bem que verdadeira), ainda que desagradável em demasia, era: "Ficará pronto quando estiver pronto". Se ousássemos insistir mais, acabaria por nos mandar seguir viagem por nossa impertinência. Os anfitriões possuíam péssimas maneiras e eram muitíssimo descorteses. Suas casas e suas roupas freqüentemente eram imundas e mal cheirosas. A carência por talheres também era total, e tenho certeza que não se encontraria na Inglaterra nenhuma cabana ou casebre assim destituídos dos mais simples confortos.

Em Campos Novos, contudo, passamos suntuosamente, tendo ao almoço arroz, frango, bolachas, vinho e licor. Pela manhã, serviam-nos peixe com café, e à tarde, café simples. Tudo isso, incluindo boa ração para os cavalos, custou-nos somente dois xelins e meio por pessoa. Ainda assim, quando perguntamos ao dono do estabelecimento se acaso sabia alguma coisa sobre o relho que um membro da nossa comitiva havia perdido, respondeu com brutalidade: "Como é que eu vou saber? Por que não guardaram direito suas coisas? É capaz que os cachorros tenham comido."

Deixando Mandetiba, seguimos novamente através uma intrincada e erma região de lagoas. Em algumas havia conchas de água doce: em outras, de água salgada. Entre as conchas de água salgada, encontrei grande profusão de Limnaea numa das lagoas que, segundo me afirmaram os habitantes, o mar invadia uma vez por ano, e, às vezes, até com maior freqüência, de modo que a água se tornava bastante salgada. Não tenho dúvida de que se poderiam observar muitos fatos interessantes sobre animais de água doce e salgada nesta cadeia de lagunas que margeia a costa do Brasil. M. Gay* declarou haver encontrado nas imediações do Rio, conchas marinhas do gênero solen e mytilus e conchas de água doce ampullariae vivendo juntas em água salobra. Observei também, freqüentemente, numa laguna próxima ao Jardim Botânico, onde a água é apenas menos salgada que no mar, uma espécie de hydrophilus, muito semelhante a um coleóptero comumente encontrado nos fossos da Inglaterra. Na referida laguna, a única concha encontrada pertencia a um gênero habitual dos estuários.

Entrando na floresta

Deixando por algum tempo a costa, novamente penetramos na floresta. As árvores que se viam eram de grande altura e bastante notáveis pela brancura do tronco, quando comparadas às da Europa. Vejo pelo meu caderno de notas que as "maravilhosas parasitas com belíssimas flores" invariavelmente me chamavam a atenção como o aspecto culminante da grandiosidade destas paisagens. Prosseguindo, atravessamos extensas pastagens que sofriam grande dano graças à presença de enormes formigueiros cônicos atingindo uma altura de três metros e meio.

Estes formigueiros davam à planície a aparência exata dos vulcões de barro em Jorullo, como figurados por Humboldt. Quando chegamos ao Engenho já era noite, depois de termos andado dez horas a cavalo. Durante toda a jornada, nunca cessei de me admirar da grande resistência dos cavalos, tendo notado que estes animais parecem se recuperar muito mais depressa de um acidente do que os nossos da Inglaterra. Os morcegos são muitas vezes a causa de grande transtorno, pois mordem os cavalos na junta do pescoço.

A lesão geralmente não se dá devido à perda de sangue mas sim à inflamação que depois se produz pelo atrito da sela. A veracidade deste fato foi há pouco posta em dúvida na Inglaterra, de modo que me considerei afortunado por presenciar um (Desmodus d' orbignyi, Wat.) no momento em que se achava sugando um dos cavalos. Certa noite, em nosso acampamento próximo de Coquimbo, no Chile, o meu criado, notando que um dos cavalos parecia inquieto, foi ver o que acontecia. Imaginando perceber qualquer coisa sobre o animal, avançou sorrateiramente a mão e agarrou o morcego. Na manhã seguinte, o lugar da mordida estava bem visível por causa de uma ligeira inchação sanguinolenta. Três dias depois, montamos o cavalo sem nenhum efeito danoso.

Fonte: Redação Terra
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