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Argentina: tremor e terror

10 ago 2013 - 06h06
(atualizado em 29/9/2013 às 21h07)
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Com a deposição da presidente Isabel Perón pelas Forças Armadas num golpe militar ocorrido no dia 24 de março de 1976, a Argentina mergulhou num dos mais brutais e sanguinários episódios da sua história. Quando o regime militar, denominado de Processo de Reorganização Nacional, deu-se por encerrado em 1983, contabilizou-se o desaparecimento de mais de 8 mil pessoas de ambos os sexos, estimando-se ainda que o total de vítimas tenha alcançado algo arredor de 30 mil civis. A economia, por sua vez, estava arrasada. Seguramente, foram os sete anos mais pavorosos e infelizes da vida nacional do país platino no século 20. Anos de sangue e chumbo que tornaram quase que inofensivas todas as ditaduras anteriores que a nação conhecera, inclusive a do tirano Juan Manoel Rosas (1829-1852).

Tempos difíceis
Tempos difíceis
Foto: Gravura de Ricardo Carpani / Reprodução

Civilização e barbárie

Um dos aspectos mais chocantes - para um país profundamente identificado e inserido na tradição ocidental - dos acontecimentos que enlutaram a grande nação do Rio da Prata durante aqueles anos foi o fato de que o banho de sangue que o enlameou deu-se num país que se orgulhava da sua elevada cultura e do seu notável padrão civilizatório. De longa data, além de ser o país mais homogêneo e refinado da América Latina, desconhecia a tão costumeira miséria social dos seus vizinhos do Continente Latino-Americano.

Buenos Aires, a capital, por décadas foi cenário de notáveis episódios de entretenimento, de famosas apresentações operísticas e de outros gêneros de apresentação teatral e musical. Praticamente todos os grandes nomes das artes passaram por lá: do tenor italiano Enrico Caruso à dançarina norte-americana Isadora Duncan; do poeta espanhol Federico García Lorca ao escritor indiano Rabindranath Tagore. Sem emitir-se de mencionar o bailarino Nijinsky e os ballets russes. Todos os que foram relevantes passaram pelos palcos e salões da Paris do Rio da Prata.

Entre a Farda e o Sindicato

Ainda assim, nada desse refinamento e da orgulhosa civilidade portenha livrou-a da tragédia da sua crônica política. Durante pouco mais de meio século - do golpe perpetrado pelas forças armadas em 1930 contra o presidente Yrigoien até a retirada final do poder castrenses, na esteira da derrota na Guerra das Malvinas, ocorrida em 1982 -, a Argentina viu-se palco permanente de um confronto quase que sem tréguas e esmorecimento, travado entre o Poder Fardado e a ascensão política das massas, representadas pelo Movimento Trabalhista, politicamente representado pelo Partido Justicialista (Peronismo) e corporativamente pela poderosa CGT (Confederação Geral dos Trabalhadores).

O resultado disso – desta intermitente guerra civil não declarada entre a oficialidade e as lideranças sindicais – foi que o país terminou sendo governado naquele meio século por nada menos do que 17 generais-presidente, o que resultou numa média de três anos de poder para cada um deles. Disso decorreu uma tensão irreparável entre os anseios de implantação de uma moderna democracia de massas, fortemente apoiada nos poderosos grêmios argentinos, e as Forças Armadas protetoras de um ordenamento sócio-político conservador, quando não abertamente reacionário.

O engessamento e o radicalismo de cada uma das partes em luta pelo poder, ao longo das décadas, fez com que a democracia, o liberalismo e a tolerância praticamente desaparecessem do cenário nacional. Não deixa de ser significativo ter cabido a um egresso da caserna, ao então coronel Juan Domingos Perón, ter implantado um regime – dito Justicialista ou Peronista – que pretendia ser uma síntese entre os dois pugilantes, entre a caserna e fábrica.

Peronismo como equilíbrio autoritário

Durante dez anos, de 1945 a 1955, Juan Domingo Perón procurou manter por meios autoritários similares aos do fascismo italiano um equilíbrio entre a Farda, a Igreja e o Sindicato, tendo então, para isto, o total apoio do Púlpito devido a sua política pró-clerical. Isto se estendeu até ocorrer um grave desentendimento entre o peronismo e o alto clero. A Farda, então, tomando as dores dos padres, o derrubou num cruento golpe deflagrado em 16 de setembro de 1955 (quase 400 peronistas foram mortos).

Autodesignada Revolución Libertadora, conduzida pelo general Eduardo Leonardi e o almirante Isaac Rojas, ambos sucedidos em seguida pelo general Pedro Aramburu, deu então andamento no processo de "desperonização" do país. O novo regime, uma Junta Consultiva formada por militares e seis outros partidos políticos, ainda que de abertura democrática. Todavia, decidiu banir o Peronismo da participação eleitoral.

Exilado primeiro no Paraguai e depois na Espanha, o general Juan Domingo Perón ficaria por 18 anos excluído do poder. Ainda assim, continuou sendo a figura política mais influente da Argentina, enquanto sua falecida esposa Eva Duarte Perón, transformada num ícone do Partido Justicialista (como os peronistas oficialmente se designavam), praticamente adquiriu a estatura de uma santa laica.

A situação ficou deveras confusa. O regime semiliberal implantado pelas Forças Armadas, ainda que promovesse eleições e tratasse de dar apoio às personalidades civis, particularmente às do velho Partido Radical, criara um impasse de difícil senão impossível solução. Mesmo com eleições e com ampla liberdade de organização partidária, os peronistas – majoritários no país – se eleitos, não podiam assumir os cargos, devido ao veto militar. O paradoxo disso revelava-se no fato de que ainda mantido o sufrágio livre o maior partido de massas da Argentina estava impedido de vencê-lo.

A esquerda revolucionária entre em cena

Seguramente foi a entrada em cena da esquerda revolucionária – seja em seu viés marxista ou neoperonista – que fez por precipitar a tragédia que engolfou e ensanguentou a Argentina entre os anos de 1970 e 1980. Para explicar a proeminência no cenário político de então é preciso recompor, ainda que brevemente, o clima da época.

Che Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana de 1959-1962 e o mais famoso revolucionário em ação, era argentino. A aventura em que ele se envolvera, junto com Fidel Castro, na derrubada da tirania de Fulgêncio Batista, deu-lhe uma aura de herói continental, senão que mundial.

Obviamente que milhares de jovens argentinos e latino-americanos em geral se inspiraram no engajamento dele em favor da revolução social. Desprezando a democracia e os partidos comunistas tradicionais, grande parte deles ainda estudando nas Universidades, ou recém-egressos delas, os jovens acreditavam que a transformação da sociedade somente poderia vir por meios radicais, resultante do sucesso da "ponta do fuzil". Era pela luta armada, tal como ocorrera em Cuba, e não pelos procedimentos eleitorais-parlamentares, que a América Latina se veria livre do atraso social, representando pela aliança da Oligarquia (interna) com o Imperialismo (externo).

Acreditavam, pois, que deviam seguir "os passos de Che" e criar "focos revolucionários", rurais ou urbanos, de onde partiriam para a luta final contra as forças do capitalismo. Além disso, o mundo ocidental foi profundamente abalado pela rebelião estudantil de 1968 que, estimulada pela ofensiva antiamericana dos guerrilheiros vietnamitas durante a celebração do Ano Tet, alastrou-se para grande parte dos países da Europa e da América Latina (*).

Tinham certeza de que o país em que viviam perdera a independência – se é que algum dia havia-a alcançado – e que cabia a eles, a geração revolucionária por excelência, resgatar a soberania humilhada pelo capitalismo internacional. Era pela pólvora e pelo sangue, não pelo voto e debates parlamentares, que as coisas então se dariam.

Encruzilhada: tanques e caminhões
Encruzilhada: tanques e caminhões
Foto: Tela de G. Gargano, 1989 / Reprodução

A Terceira Guerra Mundial

No entender das Forças Armadas formadas nos quadros da Guerra Fria, a retórica revolucionária e os grupos de ação estavam a serviço do comunismo soviético. O cenário externo encontrava-se dividido entre o Mundo Livre, formado pelas nações ocidentais de tradição cristã, e o Bolchevismo Ateu, predominante no Leste Europeu e na Ásia. Os jovens nada mais eram do que peças teleguiadas da subversão internacional, força maligna manipulada por Moscou ou por Pequim, que já deitara mãos sobre a ilha de Cuba, de onde pretendia saltar para dentro do restante da América Latina. Além disso, utópicos e irresponsáveis, desejavam implantar um projeto de transformação social "contrário ao ser nacional e à ordem social natural".

Afinal, não fora o próprio Che Guevara quem insuflara a juventude de esquerda a criar "dois, três Vietnãs" para levar a guerra de guerrilhas para todas as partes e fazer assim os Estados Unidos se desgastarem num combate mundial? Evidentemente, era o pensamento militar, que essa subversão não seria detida pelos procedimentos de um Estado democrático de direito, mas exatamente pela supressão dele. A democracia latino-americana, planta de natureza fragilíssima, viu-se assim, nos anos 1960 e 1970, impugnada tanto pelos revolucionários da extrema esquerda como por aqueles que saíram no seu combate. A tal ponto chegou a irrelevância da democracia na América do Sul que, por volta de 1973-1976, somente a Colômbia e a Venezuela mantinham-se obedientes a constituições liberais. Todos os demais países passaram a ser governados por Estados de Segurança Nacional discricionários.

Marxistas e peronistas

Escudo dos Montoneros
Escudo dos Montoneros
Foto: Reprodução

A primeira organização extremista com proposta de levar a luta armada as suas derradeiras consequências foi o PRT (Partido Revolucionário de los Trabajadores) fundado em 1965 por Mário Santucho, Rodolfo Matarollo e Enrique Gorriaran Merlo, que iriam compor a futura Junta de Coordinación Revolucionária. Tratava-se de uma agremiação trotskista, filiada à IV Internacional. Na verdade, foi somente em 1970, na esteira dos violentos eventos sucedidos em Córdoba contra a ditadura do general Ongania, que o PRT decidiu lançar mão do seu braço armado, o ERP (Ejercito Revolucionário del Pueblo). Tratava-se de uma versão Argentina das guerrilhas e do terrorismo urbano que então proliferava na Europa e América Latina (Brigadas Vermelhas, na Itália; grupo Baader-Meinhoff, na Alemanha Ocidental; Var-Palmares, no Brasil etc), cuja fundação deu-se no V Congresso do PRT, realizado em 1970, como "uma organização de massas para a guerra civil... dirigida contra o Estado burguês e seu exército".

Aproveitando-se da fragilização da ditadura militar, abalada pelo El Cordobazo, levante de metalúrgicos e estudantes que se estendeu de 14 a 29 de maio de 1969 na cidade que acolhia grandes indústrias de automóveis, foi a vez da juventude peronista decidir-se pelas armas. Para tanto, 12 militantes liderados por Mário Firmenich e Hugo Vaca Narvaja formaram a organização Los Montoneros (*).

O sequestro e assassinato de Aramburu

A estreia deles ocorreu de modo espetacular quando a célula "Camilo Torres" (padre terceiro-mundista colombiano, integrante do ELN - Ejército de Liberación Nacional - morto quando em atividade guerrilheira, em 1966) sequestrou e executou no dia 1º de junho de 1970 o general Pedro Aramburu – o responsável pelo golpe dado contra Perón em 1955.

Os tiros disparados contra um sexagenário oficial das Forças Armadas – ídolo do Exército – inaugurou uma cruel guerra das agrupações esquerdistas, marxistas e peronistas contra os militares. A partir daquele crime, as comportas que continham Nêmesis, a Deusa da Vingança, pelos dez anos seguintes, foram escancaradas, visto que os radicais, ao assassinarem um prestigiado militar, perderam o métron, o senso grego da medida, fazendo com que atraíssem sobre si as fúrias vingativas das forças armadas, o que levou ao maior banho de sangue da história da Argentina.

Na primeira fase da guerra, de 1970 a 1973, a esquerda e os peronistas radicais pareciam ter levado vantagem, visto que o general Ongania, afastado do comando pelos seus companheiros de armas, foi sucedido pelo general Augustin Lanusse, mais sensível a questão da pacificação nacional. Ele entendeu, contra a opinião de boa parte dos seus colegas de farda, que não haveria modo de acalmar a sociedade sem promover eleições num processo que ele denominou de "peronismo sem Perón".

Atentados se seguiam de todos os lados e a vida ficara um inferno na Argentina dos começos da década de 1970. Ainda assim foram poucos os que previram a hecatombe que estava por vir.

A resposta militar ao assassinato de Aramburu terminou por ocorrer em 22 de agosto de 1973, com o fuzilamento de 16 integrantes das agrupações terroristas (PTR-ERP-FAR-Montoneros). O local das execuções foi a base naval de Almirante Zar, perto da prisão de Trelew, situada no sul, na província de Chubut, na Patagônia, por ocasião da tentativa de uma fuga em massa das lideranças presas. Ainda que Mário Santucho, o chefe do ERP, e alguns outros, conseguisse escapar num avião sequestrado para o Chile (na época governado pelo socialista Salvador Allende), a maioria foi recapturada pelo capitão Sose, que decidiu passá-los pelas armas.

De certo modo, o horror provocado no país pelo fuzilamento dos presos, ocorrido 87 dias antes do retorno de Perón, acelerou o processo de devolução do poder aos civis – isto é, a alguém do Partido Justicialista, pois os militares sabiam que qualquer candidato que recebesse apoio do chefe exilado venceria facilmente as eleições na Argentina.

A matança de Ezeiza

Outro momento significativo da tragédia Argentina deu-se por ocasião do desembarque de Juan Domingo Perón na sua viagem de retorno definitivo à Argentina após 18 anos de ausência. Seguramente, nunca ninguém vira algo assim. Parecia que a nação como um todo, pobres e ricos, burgueses e trabalhadores, homens e mulheres, haviam se irmanado no intento de ir ao aeroporto internacional acolher o líder nacional.

Calculou-se que três milhões e meio de argentinos espalharam-se pela autoestrada que liga a capital federal ao aeródromo. Era o regresso do Messias, o grande homem que certamente salvaria a pátria do caos anunciado. Muito viam na ocasião daquele encontro do povo com o seu caudilho uma reedição dos acontecimentos de 17 de outubro de 1945, quando as massas saíram às ruas para exigir dos militares o retorno de Perón ao poder, lançando os fundamentos do Movimento Justicialista e do projeto de uma Argentina próspera e liberta das ingerências externas.

Todavia, o que se assistiu no dia 20 de junho de 1973 não foi um momento eufórico de conciliação nacional, mas uma bárbara desavença entre a direita peronista e os Montoneros. Um tiroteio destemperado e doido se espalhou pelos arredores do aeroporto, dividindo desde então as facções peronistas em dois campos jurados de morte. Velhas lideranças do sindicalismo peronista, situadas ideologicamente à direita do Movimento Justicialista, capitaneadas por José López Rega, personagem mal afamado e suspeito, um dos mais próximos colaboradores de Perón (segundo alguns, o mordomo dele), quiseram impedir a aproximação dos Montoneros ao chefe, que vinha como o inquestionável líder da FRENTE CIVICO DE LIBERACIÓN NACIONAL.

Não temeram em abrir fogo contra eles quando viram "as formações especiais" de Mário Firmenich se aglomerando perto do palanque montado para que Perón, logo que apeasse, dirigisse algumas palavras ao povo que o esperava. As 18 mil pombas que tinham sido levadas para a ocasião para realizarem um voo da paz tiveram que se esquivar dos balaços que cortaram os céus, enquanto a orquestra do teatro Colón convidada para tocar o hino nacional teve que se jogar ao solo com instrumentos e tudo para livrar-se do fogo cruzado.

O cenário de confusão geral e de guerra aberta entre as várias facções que compunham o peronismo foi o prenúncio de que coisas ainda piores, inomináveis, estavam por vir. A chegada de Perón – que desembarcou num outro aeroporto dada a insegurança de Ezeiza – em que se depositaram tantas esperanças de reconciliação nacional, virou um imenso fiasco. Contabilizaram-se sem muita precisão a perda de 13 pessoas, além de 380 feridos.

Para piorar o quadro, os Montoneros (ofendidos pela "recepção" que tiveram em Ezeiza), juraram continuar na "luta armada", ainda que com Perón no poder. O mesmo engrenou o PRT-ERP (machucado pelas perdas de Trelew), que acelerou suas ações de terror atacando as comissárias de polícia, assaltando bancos, sequestrando diplomatas e executivos de corporações multinacionais, alguns dos quais apareceram mortos. Alargando o front de batalha, mesmo após Perón ter sido empossado, passaram a visar aos arsenais militares e diversos quartéis, abrindo ainda no ano de 1974 um foco de guerrilha rural na província de Tucumã. Imaginaram, no seu delírio, fundar ali um "território independente" que pudesse ser reconhecido pela ONU.

Perón de volta ao poder

Cartaz de boas-vindas a Perón (1973)
Cartaz de boas-vindas a Perón (1973)
Foto: Reprodução

Para não entregar o poder diretamente a Perón, os militares num primeiro momento haviam autorizado eleições vetando, porém, o nome do chefe justicialista ainda exilado. Marcadas para 11 de maio de 1973, venceu-as com grande folga um lugar-tenente dele, Hector Campora, com 49,59%, cuja primeira medida foi fazer aprovar a lei de anistia e indulto que foi estendida tanto a Juan Domingo Perón como aos chefes do terrorismo que estavam encarcerados. O fato deste presidente-tampão ter aberto as cadeias para que vários acusados de assassinato de oficiais das forças armadas saíssem quase lhe custou a vida três anos depois, por ocasião do segundo golpe castrense, o de 1976.

Campora, El Tio, como carinhosamente lhe apelidaram os peronistas, ficou apenas 49 dias no governo. Logo o transferiu para Juan Domingo Perón, que alcançara um percentual ainda mais impressionante de apoio: 60% dos votos sufragaram a chapa Perón&Perón, isto é, Juan Domingo e sua esposa Maria Estela, ou Isabelita, êmula de Eva Perón, heroína do Movimento Justicialista, falecida em 1952.

Processo eleitoral do retorno do peronismo:

Data Chapa majoritária % de votos
11/05/1973 Hector Campora - Solano Lima 49,59
21/09/1973 Juan Domingo Perón - Maria Estela de Perón 60

A morte do caudilho e o caos nacional

O governo de Perón causou uma profunda decepção na esquerda marxista e nos Montoneros. A expectativa que eles tinham é que poderiam arrastar o caudilho para a causa da "libertação popular", fazer dele um novo Fidel Castro, quiçá um Mao Tse-tung disposto a tudo para enfrentar a oligarquia e o imperialismo. Pura fantasia.

Com 78 anos de idade, sentindo-se cansado daquilo tudo, o caudilho não tinha mais ânimo para levantar bandeiras revolucionárias, muito menos as da extrema esquerda e dos peronistas radicais. Ele, que antes, ainda na Espanha, apoiara e encorajara a rebeldia e a violência dos jovens contra a ditadura militar, agora sentiu o resultado disto se voltar contra ele próprio. Como ele mesmo disse sobre os eventos: Yo ya estoy amortizado (Eu já estou atemorizado).

O rompimento entre eles não tardou. Num pronunciamento feito no balcão da Casa Rosada no dia 1º de maio de 1974, Perón, irritado, do alto da sacada, admoestou-os publicamente, chamando-os de "imberbes, estúpidos", expulsando-os da praça. Para consternação nacional, Juan Domingo Perón veio a falecer exatamente dois meses depois, em 1º de julho de 1974. Com ele também se foi a possibilidade de pacificação nacional. Dali em diante as paixões políticas e ideológicas que dividiam a Argentina abertamente metralharam e explodiram umas as outras.

Na ocasião das homenagens fúnebres, pareceu que o país inteiro acompanhou-lhe o féretro, sepultando-o como se fora um herói nacional. O seu lugar foi ocupado por uma presidenta, a viúva Isabelita Perón, totalmente despreparada para o cargo, assistida de muito perto pela figura tenebrosa do "el brujo" José López Rega, que terminou agindo nos bastidores como uma espécie de Rasputin, a alma maligna do peronismo (*).

A Triple "A"

Nos meses seguintes à morte do caudilho, assistiu-se a chega ao poder da direita sindicalista que formou um verdadeiro cinturão ao redor de Isabelita, como se dirigiam à presidenta. Os principais chefões dos grêmios laborais tornaram-se íntimos da Casa Rosada, levando para lá suas práticas de gangsterismo, favoritismo e violência. A economia parou e os tumultos se multiplicaram por todo o país. A extrema esquerda erpista e os Montoneros continuaram no seu desafio aberto aos militares. Defendiam a tese do assalto oblíquo ao poder. Atacando diretamente os oficiais das forças armadas, que passaram a ser baleados nas ruas ou saindo das suas residências, esperavam conduzir as três armas a um novo golpe (um dos crimes que mais tocaram a opinião pública foi o assassinato de um oficial-médico e de sua filha adolescente quanto saíam de casa).

Acreditavam as lideranças guerrilheiras que assim – com os militares voltando a catalisar o governo – as massas argentinas, enfurecidas, se rebelariam, conduzindo o país a tão esperada revolução social, à derradeira, aquela que implantaria uma sociedade socialista ou ultranacionalista.

Neste cenário as chefias sindicais, naturalmente temerosas de se virem afastadas por uma nova insurgência militar, decidiram apoiar a iniciativa do ministro López Rega de empreender uma guerra de extermínio contra o ERP e os Montoneros, bem como contra todos aqueles que os apoiavam.

Criou-se uma situação surrealista que nenhum ficcionista latino-americano, cultor do realismo-mágico, poderia engendrar. A base para a estratégia dos assassinatos seletivos seria o Ministério do Bem-Estar Social, situado na Plaza de Mayo. Nos seus escritórios eram feitas as listas negras daqueles que deviam ser eliminados. Das garagens do prédio partiam em missão os veículos dos esquadrões da morte compostos pelos "matones", os pistoleiros profissionais daquela que ficou tetricamente conhecida como a Triple "A" (Alianza Anticomunista Argentina). Portanto, antes mesmo do golpe militar, o próprio Estado Peronista chamara a si a tarefa de cumprir tarefas de "limpeza do terreno".

Começaram então a aparecer pelas ruas de Buenos Aires, à vista de todos, corpos destroçados por balas ou parcialmente incinerados, muitos com marcas de espancamento ou tortura. Não eram somente militantes revolucionários "infiltrados" no peronismo, mas igualmente artistas, jornalistas, acadêmicos ou escritores que sabidamente manifestavam simpatias pela esquerda e pelos Montoneros. Muitos deles não tinham posição política.

Marcelo Larraquy, biógrafo de López Rega (López Rega, una biografia, B. A. Editorial Sudamericana, 2004), calcula que a Triple "A", nos 20 meses que sucederam o novo golpe, no total assassinou mais de 2 mil pessoas, sendo que 600 estão até hoje desaparecidas. A Argentina parecia querer multiplicar por mil os massacres ocorridos nos tempos das guerras civis entre federalistas e unitários, travadas no século 19, que tanto encheram de sangue o pampa e o Rio da Prata. Por conseguinte, a matança, antes dos militares darem-lhe uma "solução final", foi engendrada pelo próprio Estado Peronista.

Fonte: Especial para Terra
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