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As grandes guerras de ideias do Ocidente

22 jul 2014 - 15h14
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Com a queda do Muro de Berlim, ocorrida em 1989, seguida do desaparecimento da União Soviética dois anos depois, encerrou-se mais uma das grandes guerras ideológicas que assolaram o Ocidente nestes últimos quinhentos anos. Desde a eclosão da revolução bolchevique de 1917, parecia que o mundo estaria irremediavelmente dividido entre dois contendores, o capitalismo e o comunismo, cujo maior objetivo era a destruição total do outro.

A Iª Grande Guerra Ideológica Ocidental (1517-1648)

Até a exposição das 95 teses do monge alemão Martim Lutero, ocorrida em 1517, o que até então se entendia como mundo ocidental encontrava-se unido ao redor da República Cristã presidida pelo papa católico desde Roma. Não que não houvesse desavenças e perseguições contra dissidentes ou guerras entre os cristãos antes da revolta de Lutero, como fora o caso da Cruzada contra os Albigenses, heresia esmagada a ferro e fogo por Simão de Montfort no século XIII, mas nenhuma delas teve a ressonância e os resultados da Reforma. Talvez, um dos motivos maiores do impacto estrondoso dela se devesse ao surgimento da imprensa, da máquina de Gutenberg que foi largamente utilizada tanto pelos seguidores de Lutero como pelos contrarreformistas para expor seus princípios, defender ou atacar os dogmas. De um lado alinharam-se os reis e príncipes que aderiram aos reformadores (Lutero, Zwinglio, Calvino, etc) - que não aceitavam mais os poderes da Igreja Católica - e do outro o Papado e suas ordens religiosas (particularmente a dos Jesuítas), além do Sacro Império e os barões que formavam a Liga Católica, todos eles alimentados por batalhões de teólogos que atiçavam ainda mais as rivalidades.

Martinho Lutero, por Lucas Cranach (1528)
Martinho Lutero, por Lucas Cranach (1528)
Foto: Wikipedia / Domínio público / Reprodução

O confronto entre as duas teologias antagônicas foi a responsável direta pelas Guerras de Religião que assolaram diversos países europeus entre 1517 e 1648, data da Paz de Westfália e que pode ser considerada como inflexão das guerras europeias travadas por motivação religiosa.*

A esperança dos humanistas do Renascimento de a Europa vir a constituir uma república cosmopolita baseada na tolerância, no esclarecimento e no amor ao conhecimento do passado clássico, cujo símbolo vivo era Erasmo de Roterdam, viu-se perdida para sempre devido à violência fratricida provocada pela cristandade dividida entre dois campos teológicos ultra-fanatizados que se odiavam mais do que aos inimigos muçulmanos.

Ao contrário da tão esperada luz, o que predominou em boa parte da Europa depois da Reforma foi o obscurantismo do Tribunal do Santo Oficio da Inquisição católica e o radicalismo ortodoxo dos pastores das inúmeras seitas antipapistas que se multiplicaram na parte norte do Velho Mundo, fazendo com que em todos os locais imperassem as chamas das fogueiras da intolerância e do medo.

Consequências

A divisão permanente da Cristandade foi o resultado final do cisma teológico de 1517, fazendo com que, no geral, as regiões que se mantiveram católicas fossem aquelas que pertenciam anteriormente ao núcleo do antigo Império Romano (as exceções foram a Irlanda e a Polônia, que jamais foram ocupadas ou colonizadas pelos romanos mas mantiveram-se na antiga fé). Entre os que aderiram à Igreja Reformada e suas congêneres ficaram os países escandinavos e os anglo-germânicos. Este impasse somente terminou resolvido com a guerra ideológica seguinte travada à época do Iluminismo.

Retrato de Voltaire; do atelier de Nicolas de Largillière
Retrato de Voltaire; do atelier de Nicolas de Largillière
Foto: Wikipedia / Domínio público / Reprodução

A IIª Grande Guerra Ideológica Ocidental (1698-1848)

Resultante um tanto do horror provocado pelas Guerras de Religião que devastaram os reinos europeus, surgiu o Movimento Iluminista, os propagadores do Século das Luzes. Um número considerável de livres pensadores - particularmente no eixo compreendido por Londres e Paris - estimulados pela obra do inglês John Locke, lançou-se ao extraordinário desafio de atacar os costumes e  a religião instituída, fosse ela a católica ou a protestante.

Em pouco tempo formou-se um Partido dos Filósofos que tinha entre seus chefes o iluminista Voltaire e o barão d'Holbach e, do outro, o Partido dos Clérigos apoiado pela Companhia de Jesus. Contra o velho Deus das religiões instituídas e a afirmação do dogma do pecado original, os livres pensadores propunham o culto ao Progresso e a crença na perfectibilidade humana.

Além disso, os filósofos pregavam um Estado laico, apartado de uma identificação religiosa, manifestavam-se a favor da liberdade de consciência, do direito á livre expressão e pelo fim da censura. Ainda que ambíguos quanto à direção política da sociedade - muitos deles eram admiradores de Déspotas Esclarecidos - condenavam a tortura e a prisão arbitrária, prática comum naquela época, assim como, rejeitando o pecado original, defendiam o principio do aperfeiçoamento ético do Homem.

Os Clérigos, por sua vez, fossem padres católicos ou pastores luteranos, perceberam-nos como modernos hereges que desejavam destruir a autoridade dos reis e por um fim ao predomínio do corpo sacerdotal sobre o rebanho cristão.

Para eles os Iluministas eram agentes da desordem e propagadores da nociva incredulidade que fatalmente levaria as massas à rebelião e à revolução. O enfrentamento ideológico entre o Partido dos Filósofos e o Partido dos Clérigos intensificou-se com a eclosão da Revolução Francesa de 1789, cujos resultados se estenderam até a Revolução de 1848.

Consequências

Ainda que a o Partido dos Clérigos não se visse totalmente derrotado, a laicização da sociedade e do estado tornou-se um fato corriqueiro no Ocidente a partir da segunda metade do século XIX e uma larga parte do programa dos Iluministas viu-se concretizado sendo universalmente aceita a tese da soberania do povo oposta ao mando exclusivo dos reis e das igrejas, concretizada por inúmeras constituições que foram desde então aprovadas na maioria dos países ocidentais.

O deus Iluminista do Progresso consegui se impor sobre o Deus medieval e a sociedade ocidental inclinou-se definitivamente para o materialismo, chegando ao extremo de banir na maior parte dos países o ensino religioso das escolas públicas.

Karl Marx
Karl Marx
Foto: Wikipedia / Reprodução

A IIIª Grande Guerra Ideológica Ocidental (1848-1989)

Subproduto da filosofia iluminista, crente no Progresso, na Democracia e na Liberdade, a emergência do Movimento Socialista a partir da segunda metade do século XIX liderado por Karl Marx, provocou a eclosão da IIIª Grande Guerra Ideológica do Ocidente. Tendo como ponto de partida o Manifesto Comunista de 1848, desta feita ela alcançou uma irradiação universal, pois o vigor da polêmica atingiu aos mais remotos rincões da Ásia, da África e da América Latina. De fato, o conflito entre a ideologia socialista e seus contendores ( o liberalismo e o fascismo), ainda que iniciada no eixo formado pelos países de ponta do Ocidente (Inglaterra- França-Alemanha) tornou-se uma Guerra Civil Internacional como afirmara certa vez Rosa Luxemburgo.

Críticos do sistema capitalista, entendido essencialmente como  explorador da mão-de-obra proletária e concentrador de riquezas, os socialistas opuseram-se tanto ao estado, fosse ele monarquista ou republicano, como à religião dominante (Marx definiu as crenças como ‘ópio do povo’). Seus adversários, tanto os liberais como os clericais, por sua vez, condenavam-nos pelo viés totalitário e por sua inclinação em desconsiderar os anseios individuais em nome da emancipação das massas, assim como a aberta rejeição aos preceitos religiosos.

Foi um embate formidável que se acirrou ainda mais com a fundação de um estado comunista em 1917, fruto da Revolução Russa liderada por V.I. Lênin, repetindo-se trinta anos depois na China com a vitória dos seguidores de Mao Tse-tung em 1949. Parte considerável dos intelectuais ocidentais viu-se arrastada para a contenda, afastando-se do pensamento objetivo, imparcial, mergulhando intensa e emocionalmente nas batalhas ideológicas que se deram entre 1917 até 1989, data da Queda do Muro de Berlim - marco definitivo do fim da Guerra Fria  travada entre os Estados Unidos, a potência capitalista, e a URSS, potência comunista. O fracasso da economia coletivista em gerar a prosperidade e desenvolver a tecnologia, sepultou por igual as possibilidades da vitória de uma sociedade socialista.**

Consequências

Ainda que a Terceira Grande Guerra Ideológica  quase levasse o mundo a uma conflagração atômica, fosse travada com a contribuição de teólogos (quase todos anticomunistas e anti-socialistas), as principais polêmicas foram conduzidas por intelectuais laicos (J.P. Sartre, B. Russell, Raymond Aron, A. Koestler, George Orwell, Heidegger, A. Camus, Ortega y Gasset, etc). A paixão ideológica que os movia durante o desenrolar da Guerra Fria fez com que bem poucos mantivessem uma observação relativamente imparcial, isenta e objetiva da realidade e dos fatos.

A tendência deles foi ignorar as coisas negativas do lado que defendiam e exagerar ao máximo os defeitos da outra parte. Os que defendiam o capitalismo norte-americano omitiam o apoio do Departamento de Estado às tiranias da Europa e do Terceiro Mundo (Franco, coronéis gregos, Mobuto, Somoza, Pinochet, Trujillo, Suharto etc), enquanto que os que eram pró-soviéticos não se manifestavam quando das intervenções blindadas da URSS na sua área de influência (Hungria, Tchecoslováquia, golpe do general Wojciech Jaruzelski  na Polônia, invasão do Afeganistão).

Evidentemente, que isto terminou por abalar profundamente a respeitabilidade dos intelectuais e dos pensadores ocidentais de um modo geral, pois expôs o seu lado sombrio e fraudador de quem opinião pública - menos comprometida ideologicamente - esperava esclarecimento e bom senso.

* Entre as consequências do grave cisma da Cristandade, dividida entre protestantes e católicos, registram-se: 1) as oito guerras travadas entre a Liga Católica e os huguenotes na França ao longo do século XVI; 2) a divisão da Alemanha entre luteranos (no centro e no norte) e papistas (no sul), acertada na Paz de Augsburg em 1555, entre o imperador Carlos V e a Schmalkadischer Bund, a Liga Esmalcalda, 3) a rebelião bem sucedida dos Países Baixos contra o Império Espanhol, defensor máximo do catolicismo; 4) a revolução puritana contra os Stuart na Inglaterra, e 4) a devastadora Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) que arrasou a Europa Central, particularmente a Alemanha. Até hoje não foi feito um levantamento que apurasse o total aproximado das vítimas das guerras de religião, de quantos morreram nas perseguições, na tentativa de buscar exílio, nas batalhas e outras matanças, como a que ocorreu na Noite de São Bartolomeu na França, que ensanguentaram a Europa e mesmo o Novo Mundo.

** Ainda que as duas superpotências não se enfrentassem diretamente, transformaram as regiões do Terceiro Mundo em arena eleita para resolver suas desavenças. Qualquer guerra civil que eclodisse num país da África, da Ásia ou da América Latina (e mesmo da Europa), entre 1945 e 1989, imediatamente era enquadrada pelos interesses estratégicos dos EUA e da URSS que passavam a apoiar um dos lados no conflito. O resultado disto, além dos danos materiais, foi um numero espantoso de mortos e feridos tal como ocorreu na Guerra Civil grega de 1946-7, na Guerra da Coréia de 1950-1953, na Guerra do Vietnã de 1965-1975, na Guerra do Congo de 1960-1962, no apoio ao Golpe Militar da Indonésia de 1965, como nos sucessivos golpes militares que se deram na América Latina a partir de 1964.

Fonte: Especial para Terra
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