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Cientistas estudam cérebro de homem sem memória

4 dez 2009 - 08h36
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Um homem que não tinha memória legou aos cientistas um recurso que fornecerá conhecimentos às gerações vindouras: seu cérebro, que agora está sendo dissecado e mapeado digitalmente de maneira detalhada.

O homem, Henry Molaison - que quando vivo era identificado apenas como H. M. para proteger sua privacidade - perdeu a capacidade de formar novas memórias depois de uma operação no cérebro, em 1953, e ao longo do meio século seguinte se tornou o mais estudado paciente da ciência cerebral.

Ele havia consentido anos atrás em doar seu cérebro para estudos, e em fevereiro o Dr. Jacopo Annese, professor assistente de radiologia na Universidade da Califórnia em San Diego, atravessou o país para cuidar do transporte do cérebro à sua instituição.

Pouco depois do meio-dia da quarta-feira, no primeiro aniversário da morte de Molaison por problemas pulmonares, Annese e outros neurocientistas iniciaram a cuidadosa dissecação do mais famoso órgão mundial. O processo de dois dias de duração resultará em 2,5 mil amostras de tecido para análise.

Um computador que registra cada amostra produzirá um mapa aberto a buscas do cérebro de Molaison, semelhante aos oferecidos pelo Google Earth, e os cientistas esperam empregá-los para esclarecer o mistério de como e onde as memórias são criadas - e como temos acesso a elas.

Enquanto removia a primeira camada de amostra do cérebro de Molaison, Annese exclamou: "Uma pronta; faltam 2.499" (o processo está sendo transmitido em vídeo online ao vivo no site thebrainobservatory.ucsd.edu/hm_live.php.

"É espantoso que apenas um paciente - essa simples pessoa - possa ter contribuído tanto, historicamente, para os estudos iniciais da memória", diz o Dr. Susamu Tonegawa, professor de neurociências do Instituto Picower de Aprendizado e Memória, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). "E agora seu cérebro continuará disponível para futuros estudos".

Boa sorte e má sorte conspiraram para fazer de Molaison um dos mais valiosos recursos e dos mais produtivos colaboradores que a ciência já teve. Na infância, que ele passou no Connecticut, Molaison estava sujeito a convulsões. Elas se agravaram depois de uma queda, e aos 26 anos eram tão severas que ele aceitou uma cirurgia cerebral experimental em uma tentativa de aliviá-las.

O médico que o atendia. William Scoville, um renomado cirurgião cerebral, removeu por sucção duas pequenas porções de tecido, uma de cada lado do cérebro. A operação de fato permitiu que as convulsões fossem controladas, mas não demorou a ficar claro que o paciente se havia tornado incapaz de formar novas memórias.

"Ele adorava conversar, por exemplo, mas em 15 minutos repetia a mesma história três vezes, com a mesma entonação e vocabulário, sem lembrar que já a havia contado", disse Suzanne Corkin, neurocientista do MIT que estudou e acompanhou o caso de Molaison ao longo das cinco décadas finais da vida do paciente.

Antes de H. M., os cientistas acreditavam que as memórias ficassem distribuídas de maneira ampla no cérebro, e não dependessem de uma única área. Mas ao testar Molaison, pesquisadores em Montreal e Hartford não demoraram a estabelecer que às porções de cérebro removidas - no lobo temporal médio, a uma profundidade cerca de 2,5 centímetros, na altura do ouvido - eram críticas para a formação de novas memórias. Um órgão, o hipocampo, tem papel especialmente importante, e é tema de estudo intensivo.

Em uma série de estudos, Molaison em breve permitiu uma mudança permanente no estudo desse campo, ao demonstrar que parte de sua memória estava completamente intacta. Um estudo conduzido em 1962 pela Dra. Brenda Milner, do Instituto Neurológico de Montreal, descreve uma experiência na qual Molaison tenta traçar uma linha entre duas estrelas de cinco pontas, uma dentro da outra.

A cada vez que ele tentava, a tarefa parecia ser inteiramente nova. No entanto, ele gradualmente ganhou competência nesse exame, o que demonstra que o cérebro tem ao menos dois sistemas para memórias, um para acontecimentos e fatos e o outro para aprendizagem motora ou implícita, para tarefas como tocar violão ou andar de bicicleta.

Novo projeto de mapeamento cerebral em San Diego, que pretende catalogar diversos cérebros, os cientistas poderão estudar algumas áreas do cérebro de Molaison com um nível de detalhe que as tomografias não propiciam, a fim de resolver alguns dos mistérios persistentes quanto ao homem e o cérebro.

Molaison surpreendeu os pesquisadores em diversas ocasiões, por exemplo ao demonstrar capacidade de reter memórias novas. Ele era capaz de desenhar uma planta detalhada de sua casa em East Hartford, na qual viveu por anos depois da operação, em companhia dos pais.

Dessa e outras surpresas sugerem que o cérebro de Molaison, privado de seu núcleo central de memória, recrutou áreas vizinhas a fim de tentar compensar a deficiência, segundo os cientistas. Agora, os pesquisadores podem estudar de mais perto essas áreas pouco compreendidas. Uma região, o cortex do para-hipocampo, parece ser a base da memória de "familiaridade", a sensação de que vimos ou ouvimos alguma coisa anteriormente, sem sabermos exatamente onde ou quando.

Tradução: Paulo Migliacci ME

The New York Times
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