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Ouvido de animal primitivo era similar ao de mamíferos atuais

16 out 2009 - 14h04
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Natalie Angier

Imagine como seria a sua conversação ao jantar se você tivesse bons modos à mesa mas orelhas de lagarto. Não só você precisaria parar de comer sempre que desejasse falar mas, porque partes de seus ouvidos estariam conectadas às suas mandíbulas, também teria de parar de comer para poder ouvir o que os demais tivessem a dizer.

E porque falar e ouvir exigiriam que você parasse de comer, o garçom logo perceberia que você não estava interessado na comida e removeria de sua frente o prato que você nem teria tido tempo de atacar. Ocasionalmente, são as pequenas coisas da vida que fazem toda a diferença - no caso em questões, os três menores ossos do corpo humano.

Abrigados em nossos canais auditivos, logo ao lado dos tímpanos, ficam o malleus, o incus e o stapes, três pequenos ossos, três ossículos, de nomes musicais e mais ou menos do tamanho de uma pequena pérola; somados, eles formam a base de uma das maiores invenções da evolução: o ouvido médio dos mamíferos.

O ouvido médio é exatamente o que nos permite mastigar sem que sejamos forçados a ignorar os ruídos do mundo, como acontece com a maioria dos demais vertebrados. É difícil determinar se os seres humanos teriam se tornado tão ferozmente verbais caso os nossos ancestrais não tivessem desenvolvido o hábito de conversar enquanto devoravam seu churrasco de bisonte.

O ouvido médio também explica por que os mamíferos, como grupo, têm a mais acurada audição do planeta e a grande diversidade de estilos de escuta, que variam dos morcegos e golfinhos, capazes de detectar ondas de pressão que circulam no extremo ultrassônico da banda, a elefantes e baleias, capazes de ouvir infrassons, captando as impressões sonoras baixas e graves de seus pares a uma distância de muitos quilômetros.

Um recente estudo aponta que, em termos gerais, o ouvido médio foi uma invenção tão excelente e é parte tão essencial de ser mamífero, que assim que a evolução o desenvolveu, seria impossível substitui-lo por método mais primitivo ou modelos passados.

Na mais recente edição da revista Science, paleontologistas reportam sobre restos fossilizados de um mamífero da era mesozóica recentemente descoberto, datado de cerca de 123 milhões de anos. O animal de focinho comprido, chamado Maotherium asiaticus e ligeiramente semelhante a um esquilo, vivia no que hoje é o nordeste da China, e caminhava entre as patas dos poderosos dinossauros, como os mamíferos costumavam fazer já há 100 milhões de anos.

O que atrai o interesse para esse antepassado do Tico e Teco são seus ouvidos: o fóssil muito bem preservado indica que os ouvidos médios do Maotherium eram intermediários, apresentando características tanto de répteis quanto de mamíferos. Dada a datação do fóssil e indícios obtidos junto a fósseis mamíferos anteriores, os pesquisadores acreditam que o Maotherium represente um exemplo de recuo evolutivo, ou de reversão a um sistema auditivo anterior.

Mas isso não deve causar preocupação; a evolução redescobriria seu tríplice invento pelo menos uma vez mais, se não repetidamente, pois, quando os ancestrais dos atuais mamíferos surgiram, esse traço já estava estabelecido. Cada uma das cerca de 5,4 mil espécies de mamíferos existentes - quer placentais, marsupiais dotados de bolsa, ou exemplares extremos como o ornitorrinco, que se reproduz por meio de ovos - dispõe dos três ossículos libertados da tirania da mandíbula, o que permite audição em tempo integral.

"Para os estudiosos que trabalham com a evolução dos mamíferos, a evolução do ouvido médio é como o santo graal", disse Zhe-Xi Luo, curador de paleontologia vertebrada do Museu Carnegie de História Natural, em Pittsburgh, e um dos autores do novo estudo. "A audição sensível foi o que permitiu aos primeiros mamíferos coexistir com os dinossauros; dispor dela era realmente uma questão de vida ou morte". O novo fóssil, ele afirma, "nos oferece percepções sobre o complexo processo evolutivo que resultou nessa característica central dos mamíferos".

A natureza caminha de maneira delirante, diz Neil Shubin, autor de um livro sobre a evolução e professor de biologia e anatomia de organismos na Universidade de Chicago. "O estudo mostra que o ouvido dos mamíferos não surgiu de uma progressão linear", ele afirma. "Ou o sistema evoluiu múltiplas vezes de maneira independente ou ele evoluiu e se reverteu, talvez mais de uma vez; de qualquer forma, estamos falando de um arbusto com muitos ramos e brotos".

A descoberta também se encaixa bem aos resultados de recentes pesquisas sobre genética molecular e biologia do desenvolvimento. Entre os modernos mamíferos, o ouvido interno de um feto é uma das últimas estruturas a amadurecer e a migrar para sua posição devida e, mesmo depois do parto, os ossículos retêm alguns filamentos remanescentes da chamada cartilagem de Meckel, que conectava ouvido e mandíbula no embrião inicial.

Luo e seus colegas sugerem que uma mutação em um gene que controla o ritmo de desenvolvimento é responsável por esse desligamento em estágio tardio, e pode, na prática, ter travado os ouvidos do Maotherium em estado embriônico permanente, da mesma forma que pode acontecer no caso de alguns raros distúrbios craniofaciais humanos, como a síndrome de Treacher Collins. "Os caçadores de fósseis, os biólogos especialistas em desenvolvimento e os geneticistas médicos estão todos chegando a conclusões semelhantes", disse Luo.

Os pesquisadores sabem há muito que os ossos do ouvido médio em um mamífero evoluíram de ossos mandibulares em seus ancestrais reptilianos, e que o "reaproveitamento" dos ossos, como define Shubin, para o fim de obter audição melhorada ocorreu em paralelo com o refinamento e elaboração da dentição dos mamíferos. "Houve um avanço de uma mandíbula formada por diversos ossos, nos répteis, para uma mandíbula de osso único, nos mamíferos", diz Shubin.

Também houve transição dos dentes simples e em geral cônicos dos répteis, dispostos como que ao acaso na boca para os conjuntos equiparados de molares, bicúspides e caninos que vieram a constituir uma mordida evolutiva afortunada. "Pode-se ver os mamíferos efetivamente mastigando os seus alimentos", disse Christian Sidor, especialista em evolução de mamíferos na Universidade de Washington.

Em outras palavras, embora a mandíbula simplificada do mamífero talvez não tenha a força de uma mandíbula de crocodilo, seus complexos dentes eram capazes de compensar essa deficiência na alimentação e assim liberar os ossos adicionais da mandíbula para que assumissem tarefas mais elevadas.

Ou melhor, tarefas em frequências mais elevadas. Os pesquisadores propõem que uma das pressões seletivas que propeliram a evolução dos ouvido médio dos mamíferos pode ter sido identificar um suprimento firme de insetos, e até mesmo os seres humanos, não insetívoros, continuam altamente sensíveis aos sons agudos, como o zumbido de um mosquito.

O ouvido dos mamíferos também é muito competente para detectar sons muito discretos: quando uma onda de pressão agita o tímpano e os ossículos adjacentes, o movimento coordenado dos ossos ajuda a amplificar a energia da onda antes de transmiti-la. Os primeiros mamíferos eram provavelmente noturnos, para melhor evitar os dinossauros, que costumavam caçar de dia, e ainda hoje muitos mamíferos preferem circular à noite. "Era fundamental para os mamíferos que seu elaborado sistema sensorial estivesse bem adaptado a um nicho noturno", disse Luo. Ou a um jantar à luz de velas na companhia de amigos de boa conversa.

Paulo Migliacci ME

The New York Times
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