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Hart Island, a ilha dos mortos invisíveis

26 mar 2015 - 10h14
(atualizado às 10h14)
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A maioria dos nova-iorquinos não conhece Hart Island, mas quase um milhão deles estão enterrados ali. É a ilha dos mortos invisíveis.

A ilha teve muitas funções, a principal delas como prisão durante a Guerra Civil, mas desde 1869 contém a maior vala comum dos Estados Unidos, um cemitério quase inacessível aonde vão parar os corpos de indigentes, pobres, bebês recém-nascidos e de muitas pessoas que morrem sem que ninguém reclame por seus corpos.

Suas fossas são cavadas por presos com penas menores do que um ano que navegam todos os dias desde outra ilha no East River, a Rikers Island, o maior complexo penitenciário da cidade.

Por causa da herança de uma antiquíssima legislação colonial, Hart Island depende ainda hoje do Departamento Penitenciário de Nova York, o que limita o acesso, o que pode mudar em breve.

"Não entendo como pode haver leis tão maléficas. Os mortos não são terroristas", disse à Agência Efe Rosalee Grable, de 63 anos, enquanto olha emocionada para o horizonte nas estreitas cabines do barco que a leva para visitar sua mãe pela primeira vez desde que ela morreu de câncer no ano passado.

Sua mãe era Gladys Van Aelst, uma mulher de Michigan que nos anos 80 chegou a Nova York de trem com todos seus pertences na mala. Sua espontaneidade, seu "espírito vital" e seu amor pela música a transformaram, mesmo sem ter uma voz especialmente bonita, em "Karaoke Gladys", a sensação dos karaokês do norte de Manhattan.

"Deve estar cantando na ilha sua canção favorita, 'Crazy'", de Patsy Cline, sugeriu Rosalee sobre Gladys, que não desceu dos palcos da Amsterdam Tavern até dar entrada no hospital em que morreu, sem dinheiro para pagar um enterro.

Quando Rosalee tentou visitá-la no verão foi expulsa pelo capitão Martin Thompson, com 25 anos de experiência em presos de alta segurança, porque não estava na lista.

As normas de acesso à ilha são muito rígidas, e agora os familiares só podem tomar o ferry na terceira quinta-feira de cada mês. Antes de 2007, nem isso podiam.

"O fato de não terem me deixado passar foi uma experiência horrível, horrível, horrível. Mas desta vez pude ir e pude ver que o homem que me barrou ano passado é um bom sujeito", explicou a aposentada, que se sentia "realmente aliviada por ter visto que o lugar onde repousam os restos de minha mãe tem potencial".

"O túmulo da minha mãe está de frente para o estuário de Long Island", contou, ajeitando a câmera em forma de periscópio que comprou pela internet há dois meses porque sabia que os oficiais apreendem todas as câmeras e telefones celulares dos visitantes.

Se permitissem esses aparelhos, talvez os nova-iorquinos conhecessem melhor esta ilha, próxima a uma área de pescadores no Bronx, onde a mata castigada agora pelas frias temperaturas cobre totalmente seus 53 hectares, um visual só interrompido por dois edifícios e uma igreja abandonados e um ou outro memorial improvisado pelos reclusos.

"Os presos estão muito conectados ao processo funerário porque muitos deles têm um parente, um bebê ou um amigo que foi enterrado ali", explicou Melinda Hunt, canadense que dirige o Hart Island Project, para ajudar a identificar os falecidos antes de 1977. Os arquivos anteriores pegaram fogo.

Este projeto, entre outras atividades, coordena um museu virtual que é "como um Facebook, mas para os mortos", no qual familiares e amigos podem encontrar as coordenadas exatas em que estão enterrados e publicar epitáfios, detalhes sobre a vida, fotografias ou vídeos de lembrança.

"Não é verdade que não importam para ninguém, porque senão eu não teria estas fotografias", ressaltou Hunt, enquanto mostrava em seu pequeno escritório em Peekskill (Nova York) os retratos que recebeu antes de existir o museu digital.

Hunt é a cara visível da luta de muitas pessoas que, como Rosalee Grable, querem ter mais acesso a Hart Island. Que não consideram justo terem que ligar para o Departamento Penitenciário para ver entes queridos, nem o regime de visitas mensais, nem estarem limitados a um pequeno recinto longe dos túmulos.

O Conselho Municipal de Nova York aprovou no último mês de janeiro um projeto de lei para transferir a jurisdição de Hart Island ao Departamento de Parques, ao qual estão vinculados os outros cemitérios de Nova York, uma proposta que pode ser realidade a partir de junho.

"Com um pouco de flores e gramado chegaria a ser lindo", disse Rosalee Grable, após voltar a atravessar a cerca de metal que custodia o ferry da ilha e que, talvez um dia, deixe de sustentar a placa de "área restrita".

EFE   
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