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Protestos mostram descompasso entre 'sociedade 3.0' e 'governo 1.0', diz analista

24 jun 2013 - 17h22
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O papel das redes sociais na articulação dos protestos de rua ─ na promoção de diferentes temas da agenda das manifestações e no ato de convocar os jovens ─ mostrou que o Brasil conta com "uma sociedade 3.0, mas com um governo 1.0". Essa é a opinião de Ronaldo Lemos, representante do MIT Media Lab e coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas

Em entrevista à BBC Brasil, o escritor e acadêmico afirmou que os protestos populares mostaram que "as demandas que surgem na internet são legítimas, que elas deveriam influenciar o Congresso e o Executivo da mesma forma que a mídia exerce influência sobre pautas de políticas públicas".

Mas os protestos e a indiferença das autoridades em relação às redes sociais, comenta, também mostraram um grande descompasso entre as demandas da sociedade brasileira e as respostas das autoridades brasileiras.

"O momento atual oferece uma oportunidade muito grande para o governo entrar nesse diálogo, mas governo e sociedade estão divorciados nesse momento."

Leia a seguir a entrevista.

BBC Brasil - Durante a Primavera Árabe, países como o Egito chegaram a bloquear o acesso à internet, o que dificultou a mobilização de manifestantes. Mas, no Brasil, a internet é livre, e as redes sociais tiveram um papel importante na convocação de protestos. O movimento no Brasil teria sido mais resultado das redes sociais do que a Primavera Árabe?

Ronaldo Lemos - As redes sociais tiveram um papel importante em todos esses movimentos. No Brasil, ficou claríssimo que a internet virou o fórum de discussão sobre o que está acontecendo. Não só isso. Ela é o fórum de articulação dos encontros e das manifestações que estão ocorrendo. Ela está cumprindo uma expectativa que já existia há algum tempo, de ser um canal onde as pessoas procuram manifestar frustrações que elas não conseguem há anos expressar na esfera política, expressar uma vontade de participar na esfera pública que o sistema político há anos deixou de conseguir canalizar. Isso é o mais importante que está acontecendo.

BBC Brasil - Foi graças às redes sociais que essas manifestações passaram do mundo virtual para o mundo real?

RL - Exatamente. Esse modelo de manifestação circula como se fosse um meme (como são conhecidos os links, imagens, vídeos ou hashtags que se tornam virais ao serem amplamente compartilhados nas redes sociais). Meme é a peça de informação que circula um pouco por imitação (...), é uma forma de comunicação por excelência da rede. Agora, a influência (das manifestações) veio da Turquia, e antes, o que aconteceu, da Espanha. No Brasil, essas foram influências muito importantes na ideia desse modelo de como se manifestar, de como ir para as ruas. Ele acabou sendo muito importante para o que está acontecendo agora. O estopim veio do Movimento Passe Livre, até porque, a meu ver, a agenda do transporte público materializa toda a questão da falta de gestão pública, a vontade de ocupar a cidade, a possibilidade de se deslocar de uma ponta a outra sem o sacrifício de tempo ou de dinheiro. Esse movimento foi percebido como uma síntese de todas as coisas que o país vive, de todas as crises de governabilidade que o país vive, e aí escalonou para uma dimensão maior, justamente graças ao debate que começou nas redes sociais.

BBC Brasil - No começo, muitos expressavam entusiasmo e vontade de ir para as ruas. Mas, mais recentemente, surgiu o receio de que o movimento poderia estar perdendo o rumo, pregando o autoritarismo ou enveredando pela violência. O fato de as redes sociais serem uma Torre de Babel em que cada um prega uma mensagem não pode contribuir para uma tensão?

RL - Contribui, sim. Caminhei pela Presidente Vargas (avenida no Centro do Rio que foi palco de manifestações na semana passada). As manifestações, que começaram na segunda-feira, tinham uma agenda clara ou ao menos uma agenda principal, que era o transporte urbano. Depois dessa manifestação, essa agenda foi bem-sucedida e conseguiu baixar as tarifas em várias cidades do Brasil, mas não conseguiu promover uma discussão maior sobre a reorganização mais abrangente do transporte público. Mas ao menos conseguiu cumprir o resultado de curto prazo. É um momento em que existe muita energia no Brasil, uma energia de mudança. Mas, depois do transporte público, ainda não surgiu uma plataforma de destaque entre as outras plataformas difusas. Nenhuma entrou em primeiro plano. Surge uma frustração por haver tanta energia, mas sem o surgimento de uma agenda.

BBC Brasil - Falando em frustração, existe o risco de as redes sociais passarem de uma posição de protagonismo e vetor para um instrumento inócuo quando o movimento fica difuso demais?

RL - Eu acho que não. As redes sociais se tornaram o principal fórum para esse debate. As pessoas que participaram das manifestações ligam a TV e veem os mesmos comentaristas falando sobre o que aconteceu. Daí, vão para a internet e passam três, quatro horas checando o que seus amigos estão falando sobre a mesma questão no Twitter e no Facebook. As pessoas agora estão se dedicando a discutir e a analisar o que está acontecendo. Há um momento de reflexão. As pessoas estão fazendo um balanço sobre quais os limites e quais as garantias democráticas que não podem ser abaladas. Há uma busca por outras agendas que podem se tornar centrais. As pessoas estão buscando novas agendas que podem gerar consenso. Não acho que o papel das redes sociais se enfraquece. Pelo contrário. Hoje está havendo um debate sobre o que aconteceu e quais os próximos passos.

BBC Brasil - Os governantes não souberam interpretar os sinais de insatisfação que já se percebiam nas redes sociais?

RL - Existe desde sempre um temor sobre o papel das redes sociais no Brasil. Um elemento objetivo desse temor é que a lei sempre tem sido extremamente restritiva no que diz respeito ao uso da internet e das redes sociais na campanha eleitoral. Até meados da década passada, o uso da internet na campanha eleitoral era praticamente proibido. Tudo que acontecesse fora do site do candidato era considerado pela lei eleitoral como propaganda irregular. Quando você olha a lei, dá para enxergar o temor que a rede gera na esfera pública. Demorou anos para que a rede ganhasse a liberdade necessária. O que aconteceu foi um descompasso cada vez maior entre a agenda governamental e as demandas de diversos setores da sociedade, que estavam difusos, não tinham identidade ideológica clara, mas vinham sentindo uma insatisfação crescente. Tudo isso agora estourou com a questão do transporte público e com a Copa das Confederações e a sensação de que o governo investiu demais em coisas não-essenciais. O sentimento que o governo ficou preso demais em barganhas internas, nesse toma lá dá cá entre Executivo e Congresso para aprovar qualquer coisa. E as agendas brasileiras ficaram totralmente paradas. E a sociedade brasileira ficou profundamente incomodada com isso. As pessoas estão cansadas do "mais do mesmo" e querem agendas maiores e mais significativas para o país. E isso está sendo extravasado para as redes sociais.

BBC Brasil - Consta que dentro do governo se comentou que houve uma falha da Abin (a Agência Brasileira de Inteligência) pela não-antecipação dos protestos, e que, para saber de antemão que manifestações aconteceriam, bastaria ter acompanhado a movimentação no Facebook e no Twitter. Não seria esse um sinal de que o mundo é "digital", mas o governo ainda é "analógico"?

RL - A rede gerou um outro canal de expressão democrática, onde se expressam demandas, visões, agendas para o país. O problema é que o canal está lá, mas é totalmente ignorado pelo sistema político. O poder público age como se essas demandas que surgem na internet não fazem parte da agenda, mas as demandas extravasadas pela internet são demandas reais, fundamentadas no descontetamento de cidadãos. O poder público age como se a internet fosse um mundo à parte, que só o que aparece na mídia (tradicional) é que tem relevândia. A internet seria perfumaria, algo acessório. Mas as manifestações mostraram o contrário, inclusive por cartazes com dizeres como ''Saímos do Facebook". Os protestos mostraram que as agendas que estão na internet são agendas legítimas, que deveriam influenciar o Congresso e o Executivo, da mesma forma que a mídia exerce influência sobre pautas de políticas públicas. Houve sim falha do governo em identificar essas frustrações. O governo ainda é 1.0. A sociedade brasileira é 3.0. Era 2.0, mas depois das manifestações, ela subiu para 3.0 porque se misturou a rua com a rede. E o recado que a gente está discutindo é que o que se passa no online precisa ser levado a sério.

BBC Brasil - Qual deverá ser o papel das redes sociais daqui para frente à luz desse movimento?

RL - Está havendo uma megarreflexão, as pessoas estão debatendo. Há uma grande produção de informações. Há um debate que não tem como não ser construtivo, mas é muitas vezes doloroso. Muitos estão preocupados - e é uma preocupação totalmente legítima - com a energia que está nas ruas e com quais serão os próximos passos desse movimento. Há uma grande oportunidade para o governo entrar nesse diálogo. Mas governo e sociedade estão divorciados nesse momento. O governo está vivendo num planeta e a sociedade, em outro. Do governo se espera uma agenda positiva que incluiria desde a reforma política, passando pela PEC 37, a lei partidária, até o marco civil da internet, até para reforçar a proteção e a liberdade dos usuários. O Brasil vem atravessando um regime de crescente vigilantismo na net, com resoluções da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) que não passam pelo Congresso.

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