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Política

'Os militares sentiram que o tempo deles tinha acabado', diz ex-governador da BA

João Durval Carneiro foi o primeiro governador do Estado após a ditadura militar

16 mar 2013 - 11h41
(atualizado às 15h10)
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João Durval Carneiro foi o primeiro governador baiano após a ditadura militar
João Durval Carneiro foi o primeiro governador baiano após a ditadura militar
Foto: Arquivo pessoal / Divulgação

Aos 84 anos, o senador baiano João Durval Carneiro pode se orgulhar de ter desempenhado um papel importante na história do Estado. Formado em Odontologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), trocou o ofício pela carreira política para ser duas vezes vereador e duas vezes  prefeito de sua cidade natal, Feira de Santana, dirigiu o Centro de Desenvolvimento Industrial (Cedin), foi duas vezes deputado federal pela Aliança Renovadora Social (Arena) e, no segundo mandato, secretário de Saneamento e Recursos Hídricos da Bahia, no governo de Antônio Carlos Magalhães, um dos nomes mais influentes da política brasileira no século passado, inclusive durante a ditadura militar. 

A proximidade e algumas agruras do destino o colocaram no relevante papel de 1º governador eleito no Estado após a democratização do País. "Foi um governo praticamente livre. Os militares sentiram que o tempo deles tinha acabado. Eu fui eleito e nunca recebi sequer um pedido. Nada, nada. Nós já esperávamos que fosse ser assim, porque eles estavam bastante desgastados", recorda. . 

Em uma entrevista ao Terra, João Durval falou de sua trajetória política, da relação com ACM e da presença dos militares na cena polítca baiana.

Terra - Como foi o início da sua carreira política?

João Durval Carneiro - Eu fui vereador duas vezes em Feira de Santana. Depois disso, disputei a prefeitura contra Francisco Pinto. Foi uma luta duríssima para nós dois. Perdi a campanha por 43 votos na última urna apurada. A tensão era muito grande, até porque naquele tempo o voto era no papel. A apuração levou 15 dias, sempre das 8h da manhã à meia-noite. Na véspera da conclusão, eu estava 15 votos à frente. Eu estava em Dias Dávila com o rádio sintonizado na Sociedade AM de Feira. Depois disso fiquei quatro anos sem mandato, esperando uma nova oportunidade. Aí veio a chamada revolução.

Terra - Em que momento a ditadura se tornou um fato concreto para o senhor?

Carneiro - 

Ele marcaram Chico Pinto para ser cassado porque ele era tido como comunista. As ruas ficaram desertas e eu fui levar minha esposa, Yeda, ao colégio onde ela trabalhava. Estava lendo enquanto esperava por ela, quando entrou Antonio Carlos Magalhães, dizendo que tinha um presente para mim. Disse que “o pessoal da revolução” achava que em Feira eu não tinha perdido, que eu sabia que tinha sido roubado, e que estava me dando a eleição. Os militares teriam pedido a ele um nome, pois já havia sido enviada uma tropa de Alagoas para pegar Chico. Eu disse que não aceitava em hipótese alguma e ele se irritou.

Terra - Mas o senhor não queria ser prefeito?

Carneiro - 

Sou um democrata por formação e era contra o golpe de Estado batizado de revolução. Cargos, eu aceito pelo voto popular. O Tribunal Eleitoral afirmou que ele ganhou, tanto assim que ele foi empossado como prefeito. Eu disse a ele que política era uma coisa muito séria, e bem diferente da nossa amizade. Chico soube disso muito tempo depois e me procurou para agradecer a minha posição. 

Terra - O como o senhor conheceu Antonio Carlos Magalhães e como era a relação de vocês?

Carneiro - 

Quando nos conhecemos ele era deputado estadual. Os políticos geralmente faziam da rua Chile o local para conversar, e eu sempre estava por ali ouvindo. Mas nessa época ainda não éramos amigos. 

Terra - E qual era a sua posição política na época?

Carneiro - Eu era da UDN, que era um partido sério. Fiquei aguardando o tempo passar e eu não queria voltar a ser candidato. No dia da convenção da Arena, o povo foi para a rua e ficou em frente ao prédio gritando meu nome. Mas eu resisti e disse que não iria. Quatro anos depois eu fui candidato a prefeito novamente.

Terra - E quando o senhor foi eleito, a percepção da ditadura mudou?

Carneiro - 

Em Feira de Santana a situação era tranquila e eu sabia o que queria. Eu não fui apoiado por eles, mas também não fui perseguido. Elegemos bons vereadores se fiz uma administração, sem falsa modéstia, muito boa. Feira de Santana não tinha água encanada nem energia elétrica. Os aguadeiros passavam com burricos carrregando barris de água e vendendo nas portas das casas. Eu consegui trazer essas coisas e muitas outras. Foi assim que eu ganhei espaço, me candidatei novamente a prefeito e ganhei.

Terra - E Antonio Carlos, que era próximo ao regime, continuou lhe apoiando?

Carneiro - 

Logo que saí do segundo mandato fiquei à frente do Centro de Desenvolvimento Industrial (Cedin) a convite de Antonio Carlos. Quando saí fui à casa dele com minha esposa agradecer pela oportunidade e dizer que ia sair da política. Quando cheguei lá, havia alguns jornalistas, e ele acabou dizendo que eu seria deputado federal. Quando todos saíram, eu expliquei a ele que não queria mais, mas ele insistiu e disse que eu iria de qualquer jeito. Fui o segundo mais votado da Bahia e depois reeleito na mesma colocação. Nessa época, trabalhei com Menandro Minaim, Leur Lomanto, Luis Vianna Neto.

Depois que eu me reelegi, ele me convidou para ser secretário de saneamento e recursos hídricos. O objetivo principal é resolver um problema simples: Salvador não tinha água. Ele viu que eu era um bom administrador e a Barragem de Pedra do Cavalo era o sonho da Bahia. Era uma obra cara, de 800 milhões de dólares. Ele me chamou e disse que tinha convidado três pessoas: eu, Clériston Andrade para administrar o Baneb, que era o banco estatal, e Mário Kértesz, como prefeito de Salvador. Todos tínhamos a indicação dele e, segundo me dizia, o que se saísse melhor seria o seu sucessor no governo do Estado. 

Terra - E como o senhor chegou lá?

Carneiro - 

Primeiro Antonio Carlos se desentendeu com Mário (Kértesz) e o demitiu. Depois veio a morte de Clériston (Andrade), que eu creio que foi coisa do destino. Ele tinha ido a uma cidade chamada Caatiba, no interior do Estado, semanas antes, e prometeu ao prefeito que voltaria. Organizou a viagem de helicóptero e queria levar Antonio Carlos, que estava com a perna quebrada por causa de um acidente sofrido em São Paulo. Ele ainda aconselhou Clériston, dizendo que não precisava atender ao pedido de todos os prefeitos, até porque viagens tão frequentes eram desnecessárias. Quando o helicóptero estava cheio, chegou Luis Eduardo Magalhães e foi entrando, mas o piloto disse que estava no peso limite. Depois, veio Manoel Novaes, e o piloto disse a mesma coisa. Estava chovendo torrencialmente, o piloto não tinha visibilidade, e acabou batendo numa serra. Ele morreu com todos os companheiros de viagem. 

Ex-governador da BA fala sobre período pós-ditadura:

Eu estava num bairro de Feira chamado Campo Limpo. Eu estava terminando de arrumar um comitê e Ieda mandou me chamar, dizendo que houve um desastre em Caatiba. Ela tinha ouvido no rádio e a única notícia é que tinha muita chuva. Já tarde da noite foi comprovado que houve o acidente e todos morreram. Eu vim direto para Salvador. Quando cheguei em casa Luis Eduardo estava me esperando, enviado pelo pai, para dar a notícia em detalhes. Eu fique chocado. Faltava cerca de um mês para a eleição e ele era uma pessoa de quem eu gostava muito. 

Fui para a fazenda para evitar especulações e fugir dos jornalistas, porque meu nome começou a ser cogitado. Todos os dias eu falava pelo telefone com minha esposa às 19h, e ela me dava notícias. Mas um dia uma amigo me chamou para jantar na cidade e eu fui. Mais tarde, Ieda me liga dizendo que Antonio Carlos queria me falar no mesmo dia. Eu pensei logo numa coisa ruim e fiz Feira Salvador em menos de uma hora. Luis Eduardo Magalhães estava na minha casa dizendo que o pai queria falar comigo no mesmo dia. Eu tinha tomado um susto tão grande que não tinha condição de ir. Aí ele pediu que eu estivesse no Palácio de Ondina (sede do governo) na manhã seguinte.

Terra - O senhor estava preparado?

Carneiro - 

Eu poderia imaginar, pois era o mesmo dia de homologação da candidatura. A primeira pessoa que eu encontrei no gabinete dele no dia seguinte foi Antônio Britto, jornalista. Antônio Carlos disse: “Britto, o homem é todo seu. Pode perguntar o que quiser que eu vou ficar daqui ouvindo.” Antônio Carlos tinha prometido ao Roberto Marinho que daria prioridade a ele no anúncio do substituto. Aí então a

Globo

deu a notícia no

Jornal Hoje

e a notícia estourou.

Começamos a viajar para o interior. O Clériston já havia visitado quase toda a Bahia, e então nos visitamos apenas os maiores municípios. Eu ganhei a eleição com mais de 600 mil votos. Nós éramos recebidos sempre com muito carinho, foi uma campanha bonita. Só lamentei que Clériston tenha morrido. 

Terra - Qual era a sua percepção de ser o candidato da transição?

Carneiro - 

Se percebia que algo estava acontecendo. Estava havendo cada vez mais caminhadas pedindo por democracia e outras ações desse tipo. As coisas foram se avolumando a tal ponto que não houve alternativa. Os militares tiveram que fazer eleições para não perder o controle da situação. Ele sabiam que o povo queria liberdade e democracia e não resistiram. Foram 18 anos no poder e eles perceberam que não dava mais. Todo mundo que enxergava bem a política sabia que não seria possível continuar.

Terra - E os militares interferiram no seu trabalho?

Carneiro - 

Na minha administração, não. Mandava eu. Todos me respeitavam. Eu tinha o meu prestígio e a Bahia me conhecia. Jamais ninguém foi até lá me dizer nada, me dar sugestões.

Terra - E a proximidade com ACM, que era próximo do regime, ajudou?

Carneiro - 

Ajudava, mas não muito. Eram os militares mesmo que mandavam, como tiraram de Ilhéus Jabes Ribeiro e tiraram Virgildásio Sena de Salvador. Ele era um candidato a prefeito que estava com uma eleição tranquila. Éramos vizinhos e assisti chateado à prisão dele. Eu fiquei chocado. A alegação era que encontraram numa viatura que vinha do Sul do País uma quantidade muito grande de livros com a capa vermelha vindo para Salvador. Os livros nem foram abertos para se saber o conteúdo.

Terra - E qual era a sua relação com os políticos da esquerda?

Carneiro - 

Da minha parte havia uma boa convivência. Como governador, eu atendia a todos que me procuravam, se eu pudesse, claro. Mas antes da minha eleição, cada um participava de um grupo e tinha uma aproximação com os seus. Havia um certo distanciamento da oposição. Víviamos na cordialidade.

Terra - Os militares foram uma sombra no seu governo?

Carneiro - 

Foi um governo praticamente livre. Os militares sentiram que o tempo deles tinha acabado. Eu fui eleito e nunca recebi sequer um pedido. Nada, nada. Nós já esperávamos que fosse ser assim, porque eles estavam bastante desgastados. 

Salvador era uma cidade turística e tinha um aeroporto pequeno feito pelos americanos na II Guerra Mundial. Fiz uma licitação que foi vencida pela OAS (empreiteira) e pedi que ficasse pronto em oito meses. De fato ficou, e a inauguração teve um momento importante. Antonio Carlos estava na Eletrobras, mas veio para a inauguração. Durante o seu discurso, ele rompeu publicamente com o governo militar, que estava representado no evento pelo Ministro da Aeronáutica, Brigadeiro Délio Jardim de Matos. 

Terra - E como foi a sua declaração de apoio a Tancredo Neves?

Carneiro - 

Eu fiz um trabalho junto outros governadores a pedido Tancredo. Antonio Carlos escolheu Andreazza e eu escolhi Tancredo. Conversei com os governadores do Nordeste e todos eles aceitaram apoiar também. Então fui a Brasília e convidei Tancredo para vir receber o apoio dos governadores na Bahia. Ele concordou, afinal, éramos nove governadores. Enquanto corria a briga entre Maluf e Andreazza, eu trabalhava calado. Convidei os líderes políticos da Bahia, avisei o que eu iria fazer, conversei com Antônio Carlos, porque eu não fazia nada escondido dele. Ele não me disse nada. Fiz o almoço e foi ótimo. Tancredo fez um belíssimo discurso. Sarney, que era do PSB, já era o vice dele, e não havia mais nem sombra do golpe. Com essa atitude da Bahia as coisas começaram a mudar. Isso foi decisivo para Tancredo.

Terra - ACM declarou ter sido tratado pelo senhor a pão e água? É verdade?

Carneiro - Eu o tratei como tratava a todos. Nunca tratei ninguém a pão e água. Mas se vinha me pedir algo que eu julgasse que não era correto, eu negava, fosse quem fosse. Eu fui justo e coerente com aquilo em que eu acreditava. Mas terminei rompendo com ele mais tarde. 

Terra - Por quê?

Carneiro - Nós nos respeitávamos muito até 1990, quando ele me convidou para ser senador em sua chapa. Ele queria o mesmo que eu fiz com Wagner (Jaques, atual governador da Bahia, do PT), que perdeu a eleição a prefeito de Camaçari e veio um grupo de 10 presidentes de partidos de esquerda me convidar para a chapa como candidato a senador. Mas voltando a Antonio Carlos, ele sabia o que estava fazendo. Durante quase três horas me mostrou pesquisas me colocando com 38 e ele com 27 pontos e insistiu, embora eu dissesse que não queria mais me meter em política. Ele disse: 'João, eu lhe ajudei, você me ajuda agora. Eu preciso vencer. Você começou debaixo e já vai em 38 e eu não saio de 27'. No fim eu acabei achando que devia a ele a indicação para governador e, mesmo sem querer, acabei aceitando. Estava claro que no dia seguinte a imprensa saberia de tudo, mas ele pediu que eu ficasse calado.

As inscrições nos diretórios dos partidos iriam até um domingo, e eu vim de Feira de Santana no dia. O prazo era 18h, e às 16h ele não tinha dado sinal. Liguei para ele e atendeu Sebastião, que foi o homem de confiança de Juscelino Kubitschek e depois se tornou dele. Ele passou o telefone e Antonio Carlos me perguntou logo de onde eu estava falando. Eu pedi uma posição dele e ele me disse que fosse para o diretório do partido, que mandaria o presidente Chico Benjamin me esperar na porta. Disse que era muita gente, ele candidato a governador, e que tinha se atrapalhado. Eu fui, quando cheguei lá com meus filhos estava tudo trancado. Ele tinha mandado fechar o prédio antes do horário. Aí voltamos para casa. 

Terra - Porque ele teria feito isso?

Carneiro - 

Provavelmente, por minha escolha para o meu sucessor, que foi Josafá Marinho. Eu tinha muita admiração por ele, uma simpatia, era um homem de esquerda equilibrada. Foi uma escolha minha, porque homens como Lomanto, Luís Vianna, Jutahy, me pediam um nome em que pudesse votar. Diziam que não colocasse um Carlista porque não votariam. Comuniquei a todo mundo, inclusive a Antonio Carlos. Ele só me disse que era um bom nome, mas sei que no fundo ele não gostou, porque queria escolher. Eu não teria apoio nesse jogo político. Assim, eu consegui atrair 16 nomes de esquerda, mas não ganhamos por causa do Plano Cruzado de Sarney, que nos tirou muitos votos.

Cheguei em casa, liguei de volta para ele e quem atendeu foi Sebastião, dizendo que ele tinha saído. Eu o conhecia e sabia que eles só saíam juntos, então era mentira. E eu disse a ele: uma coisa eu sei, que você é bom de recado, pois já assisti você dar recados duríssimos a Antonio Carlos. Então você vai dizer a ele que a nossa amizade termina hoje, mas não como eu vejo ele dar um estouro no sujeito e o cara estar lá no outro dia. Comigo, é sim, sim, não, não. Não mande ninguém me procurar para tentar pacificar que não vai adiantar. Eu disse também outras coisas, desabafei. Foi a razão porque eu estou aqui como senador da República, porque veio a turma de esquerda me procurar e foi a minha chance de mostrar que eu seria senador sem depender dele. Coloquei Wagner nas costas e fui pela Bahia e me elegi como o quarto mais votado do Brasil. 

Terra - E o afastamento durou até o fim da vida?

Carneiro - Definitivamente. Eu mandei o recado para valer. Ele mandou uns cinco ou seis me sondarem e eu disse que não me procurassem mais. No dia da minha posse no Senado, fui sentar logo na primeira fila, porque a Bahia é o Estado mais antigo da federação. O pessoal sabia que eu não me dava com ele e me colocaram atrás dele, e não ao lado. Quando eu entrei, ele se levantou e olhou para mim, esperando para saber se eu falaria com ele. Eu entrei, registrei meu nome e fiquei olhando para a mesa. Não falei com ele um dia. Ele morreu e eu não fui no enterro. Fui apenas no do filho dele, Luis Eduardo Magalhães.

Terra - E é verdade que toda a sua vida política foi guiada por Nilton Pinto (vidente e médico da família)?

Carneiro - Sim. Ele fazia quiromancia. Nossa relação era estreitíssima e eu tinha confiança total nele. Minha esposa me falava das previsões dele e acabou acontecendo essa amizade. Eu levava o nome de alguns secretários que eu tinha dúvida para ele ler a mão. Ele previu inclusive em julho de 1982 que seria governador. Ele estava na minha casa, leu minha mão e me disse que eu estava jogando dinheiro fora fazendo campanha para deputado federal, pois eu seria governador. Ninguém sabia sequer da possibilidade da morte de Clériston. Ele nunca me disse uma coisa para dar errado. Antes mesmo do golpe, ele veio a minha casa dizer que nenhum dos candidatos seria presidente. Que iria acontecer algo muito sério no País e que o novo presidente seria um militar. E foi o que aconteceu.

Fonte: Especial para Terra
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