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Polícia

Juíza responsável por união gay: gaúchos não são homofóbicos

15 set 2014 - 13h29
(atualizado em 17/9/2014 às 08h58)
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Foto: Fabian Ribeiro / Raw Image

O Movimento Tradicionalista do Rio Grande do Sul é visto por muitos como o baluarte daquilo que mais orgulha o povo gaúcho: sua cultura e passado de luta. Mas na semana passada, o incêndio de Centro de Tradições Gaúchas (CTG) na cidade de Santana do Livramento que seria palco de um casamento gay trouxe à tona o viés do preconceito e da intolerância. O argumento daqueles que eram contra era o de que a união de duas mulheres seria uma afronta ao que prega o tradicionalismo.

Entretanto, a juíza Carine Labres, responsável pelo casamento, rejeitou o argumento apresentado pelos tradicionalistas dizendo que se tratava de preconceito. “A justificativa, que não foi aceita por mim, era de que casais homossexuais não poderiam casar dentro de um CTG porque isso é um afronta e desrespeito ao tradicionalismo. Eu não aceito essa resposta”, disse a magistrada em entrevista ao Terra.

Sua juventude, 34 anos, e a visão de uma sociedade livre de preconceitos talvez sejam sua principal fonte de energia para enfrentar a pressão vinda de uma pequena parcela de fundamentalistas contrários ao casamento de duas mulheres. “A sociedade de Santana do Livramento e o Estado do Rio Grande do Sul não são homofóbicos, não são preconceituosos. Acontece que uma pequena minoria ainda que seja muito barulhenta conseguiu trazer o holofotes para a questão do preconceito, do ódio em relação a aqueles que são diferentes”.

Para ela, o casamento gay dentro de um CTG no mês de setembro, quando se celebra a Semana Farroupilha, seria um símbolo da aceitação e da evolução, mas terminou sendo um exemplo claro de que uma legislação própria contra crimes de homofobia é uma necessidade cada vez mais latente na sociedade brasileira.

<p>Na foto o patrão do CTG Gilbert Gisler emocionado abraça a filha</p>
Na foto o patrão do CTG Gilbert Gisler emocionado abraça a filha
Foto: Fabian Ribeiro/Raw Image / Frame

“Precisamos realmente discutir esse assunto, chamar atenção de todos, e realmente a legislação precisa ser modificada. Crimes de homofobia merecem uma atenção especial, uma legislação específica porque só assim a gente vai dar a punição devida dentro da escala de responsabilidade que a gente tem que apurar. Do jeito que nossa legislação está, a gente não consegue dar a punição de acordo com o grau de importância que essa conduta merece ser mensurada”, diz  juíza de 34 anos, natural de Lajeado, e que desde dezembro do ano passado atua na comarca, para onde foi transferida por mérito.

Confira os principais trechos da entrevista:

Terra: Como foi para a senhora passar por toda essa situação para a realização do casamento?

Carine Labres: A nossa ideia era ter feito um casamento coletivo dentro de um CTG, mas de uma forma muito mais tranquila, sem toda essa repercussão.  A gente imaginava que essa repercussão maior ia se dar aqui nos limites da comarca. Mas em razão do incêndio e da confirmação da polícia de que se trata ou de um ato criminoso, acabou ganhando uma repercussão internacional, inclusive.

O que me deixou com sentimento de frustração foi de não conseguir realizar o casamento dentro do CTG, mas agora analisando toda a questão, e pela impossibilidade de manter a segurança dentro do CTG, a transferência do casamento para o fórum foi uma decisão acertada  para não criar um risco desnecessário.

Nós saímos vitoriosos de tudo isso porque esse sentimento de frustração fica de lado à medida que, com essa repercussão toda gerada, nós conseguimos chamar a atenção de toda a sociedade para a discussão da questão da homofobia, do preconceito e da discriminação em qualquer forma. Chamando atenção de todos porque essa luta ainda é muito árdua, é um caminho muito longo que a gente tem que trilhar para vencer essa batalha.

Marcado originalmente para o Centro de Tradições Gaúchas (CTG) Sentinela do Planalto, o casamento teve que ser transferido porque o local foi alvo de incêndio criminoso, motivado por homofobia
Marcado originalmente para o Centro de Tradições Gaúchas (CTG) Sentinela do Planalto, o casamento teve que ser transferido porque o local foi alvo de incêndio criminoso, motivado por homofobia
Foto: Fabian Ribeiro / Raw Image

Precisamos realmente discutir esse assunto, chamar atenção de todos, e realmente a legislação precisa ser modificada. Crimes de homofobia merecem uma atenção especial, uma legislação específica porque só assim a gente vai dar a punição devida dentro da escala de responsabilidade que a gente tem que apurar. Do jeito que nossa legislação está, a gente não consegue dar a punição de acordo com o grau de importância que essa conduta merece ser mensurada.

Terra: Porque a escolha de um CTG?

Carine Labres - O primeiro casamento realizado na comarca ocorreu em março, contou com a participação de 56 casais, sendo um deles homoafetivo, de duas mulheres. Nessa época eu já manifestado vontade de realizar o segundo casamento no segundo semestre, durante o mês de setembro, como uma forma de homenagear o tradicionalismo e os valores locais.

 Em julho nos abrimos as inscrições para a realização do casamento limitando as inscrições para 30 casais, e quando eu fui na imprensa local, eu disse que minha intenção era realizar essa casamento durante a semana Farroupilha e, se possível, realizar essa casamento dentro de um Centro de Tradições a Gaúchas (CTG). Fiz o convite à comunidade de Santana do Livramento  para ver se algum patrão teria o interesse de ofertar suas dependências.

<p>A juíza Carine Labres, idealizadora do casamento coletivo de 29 casais, entre eles um casal homoafetivo, em um CTG, realiza uma vistoria na entidade após incêndio</p>
A juíza Carine Labres, idealizadora do casamento coletivo de 29 casais, entre eles um casal homoafetivo, em um CTG, realiza uma vistoria na entidade após incêndio
Foto: Fabian Ribeiro/Raw Image / Frame

Na abertura das inscrições sete patrões demonstraram interesse e ao final das inscrições tive o resultado de que 28 casais eram heterossexuais e dois homossexuais, dois casais de mulheres. Então eu questionei novamente os patrões falando do resultado e para ver se eles ainda tinham interesse em realizar. Dos sete patrões que demonstraram interesse inicialmente, apenas um me disse que poderia ser realizado o casamento nas suas dependências, que foi o do Sentinelas do Planalto.

Os outros seis disseram que não admitiriam o casamento homoafetivo dentro das dependências do seus CTGs porque isso seria uma afronta ao tradicionalismo gaúcho. Toda a resposta destes seis patrões está catalogada em um registro que eu mantenho aqui no meu gabinete, que eu não encaminhei para o Ministério Público, justamente, para não levantar essa celeuma em relação a eles, porque acreditei na boa fé deles, de que eles não teriam interesse de afrontar esses casais, e que estavam agindo com base naquilo que o movimento tradicionalista gaúcho exigia deles.

Nunca houve uma imposição para que o CTG aceitasse a realização de um casamento ali, até porque isso nem poderia acontecer. Tão logo foi firmado o convite, começou a pressão do movimento tradicionalista para que esse evento fosse cancelado. A justificativa, que não foi aceita por mim, era de que casais homossexuais não poderiam casar dentro de um CTG porque isso é um afronta e desrespeito ao tradicionalismo. Eu não aceito essa resposta. Reiterei isso, inclusive na vez em que estive em frente ao presidente do MTG , porque essa resposta passa pelo crivo do preconceito. Se fosse dada qualquer resposta em respeito a ambos os casais, hetero e homossexuais, eu poderia perfeitamente ter desistido dessa ideia para realizar o casamento aqui no fórum.

Terra: A senhora realmente recebeu ameaças?

Carine Labres - Desde o início quando aceitei o convite do patrão para que o evento fosse realizado dentro do CTG, as ameaças começaram a surgir. Eu nunca trouxe isso à mídia, e tampouco fiz o registro de ocorrência policial porque não queria que atenção ficasse voltada para estas circunstâncias. Meu objetivo era manter todos os holofotes voltados para os casais. Porque eles são os grandes protagonistas deste evento e eles mereciam toda a atenção da mídia. Então, trazer à tona ameaças de morte a uma juíza, com certeza tiraria o foco que seria devido aos casais.

Em razão do incêndio no CTG, e diante das ameaças sendo reiteradas de forma incisiva com ligações ao meu gabinete, eu trouxe isso a público isso até para que o  mundo conhecesse que a homofobia infelizmente existe, o preconceito ainda está muito enraizado em muitos tradicionalistas. A gente precisa questionar isso. O debate já foi o grande ganho dessa luta que a gente travou, e nós saímos vitoriosos ao chamar a atenção de todos para essa questão.

Sabriny Benites e Solange Ramires foram o centro das atenções e o primeiro casal gay a se casar
Sabriny Benites e Solange Ramires foram o centro das atenções e o primeiro casal gay a se casar
Foto: Fabian Ribeiro / Raw Image

Terra: Após o incêndio a senhora chegou a temer que as ameaças poderiam ler concretizadas?

Carine Labres - Em relação a minha pessoa, nós, magistrados, estamos acostumados com isso, então não modifiquei minha rotina, mas em razão das ameaças serem direcionadas a instituição do poder judiciário, minha segurança, toda a escolta foi acionada para que não acontecesse nada. Em relação às meninas foi um pedido meu. Solicitei que elas recebessem a mesma escolta que estava sendo direcionada a mim para prevenir qualquer atentado em relação a elas. Elas em absoluto receberam qualquer ameaça, mas a escolta para elas foi em caráter de prevenção assim como a escolta foi definida para o patrão do CTG.

Eu continuo com a escolta até a data de 20 de setembro, vou participar do desfile no palanque oficial, faço questão de estar lá presente, e depois vamos repensar, deixei isso a cargo do comandante da Brigada, que monitora tudo isso, e no momento oportuno será cancelada e tudo voltará ao normal.

Terra: A senhora acha que isso ganhou essa proporção por se tratar de uma cidade pequena?

Carine Labres - O que tem que ficar muito claro é que esse ódio parte de um grupo minoritário, a grande maioria da sociedade de Santana do Livramento apoia esse evento realizado pelo judiciário, tanto que quando pedi um mutirão para reerguer o CTG, todos se fizeram presentes de forma muito significativa. As doações não param de chegar, inclusive agora após a realização do evento.

A solidariedade da comunidade ficou evidente com a lotação do salão do júri na realização do casamento. As meninas quando entraram no salão foram aplaudidas de pé. Então a sociedade de Santana do Livramento e o Estado do Rio Grande do Sul não são homofóbicas, não são preconceituosas. Acontece que uma pequena minoria ainda que seja muito barulhenta conseguiu trazer o holofotes para a questão do preconceito, do ódio em relação a aqueles que são diferentes. Infelizmente não souberam dar um exemplo a todo mundo, que é o que nós queríamos, uma mensagem de tolerância de respeito as diferenças.

Essa minoria precisa ser responsabilizada para que entenda que não é com a força e com agressão eu a gente modifica alguma coisa. É com o debate e com o diálogo.

Resposta do Movimento Tradicionalista Gaúcho

Em nota, o MTG informou que o CTG Sentinelas do Planalto não é filiado a entidade e que tampouco conhece as atividades ali realizadas. Que os atos de vandalismo são condenáveis, que o movimento "naõ tem nenhuma restrição a preferências religiosas, ideológicas ou sexuais das pessoas" e que qualquer tentativa de vincular o episódio com o MTG "é repudiada".

Fonte: Terra
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