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Polícia

Casos semelhantes ao de Fritzl são considerados normais no MA

26 jun 2010 - 13h51
(atualizado às 14h14)
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Daniel Favero

O lavrador José Agostinho Bispo Pereira foi preso na cidade Pinheiro, acusado de estuprar as duas filhas
O lavrador José Agostinho Bispo Pereira foi preso na cidade Pinheiro, acusado de estuprar as duas filhas
Foto: Eveline Cunha / Especial para Terra

O Maranhão é um Estado com 6 milhões de habitantes, 217 municípios e com índice de pobreza aproximadamente sete vezes maior que o da Áustria, país onde Joseph Fritzl manteve a filha trancada em um porão por mais de 20 anos, onde era estuprada e teve seis filhos dele. Apesar das evidentes disparidades socioeconômicas e culturais, os dois lugares compartilham fama internacional por crimes de pedofilia em família, estupro e cárcere privado. No entanto, no Nordeste brasileiro, os aspectos culturais e a omissão da sociedade e do poder público são apontados como os maiores obstáculos para o combate a esse tipo de crime. De acordo com policiais, procuradores e políticos que vivenciam a realidade da exploração infantil no Estado, episódios de pais que engravidam filhas acabam sendo considerados "normais" pela sociedade local.

No dia 8 de junho, o lavrador José Agostinho Bispo Pereira foi preso na cidade Pinheiro, acusado de estuprar as duas filhas com quem teve oito filhos-netos, além de ter abusado de duas dessas crianças. Ele foi indiciado pela polícia por cinco crimes que incluem estupro, abandono de incapaz e abandono intelectual. Nove dias depois, na mesma cidade, o também lavrador Raimundo Pimentel Correia, 69 anos, foi preso acusado de abusar sexualmente da filha de 12 anos. Em depoimento à polícia, a jovem disse que foi abusada pelo pai, pelos irmãos e até por vizinhos.

O Maranhão é o terceiro lugar do Brasil em número de denúncias sobre abuso infantil no País, de acordo com dados do relatório do Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes. O número de denúncias feitas pelo Disque 100 fica atrás apenas do Distrito Federal e Mato Grosso do Sul.

Os casos não ocorrem apenas na região de Pinheiro, e a situação se mostra preocupante em todo o Estado. Nas cidades de Imperatriz, Caxias, Açailândia e Timon, um levantamento feito por especialistas da Secretaria de Segurança contabilizou, com a ajuda da comunidade, mais de 1,6 mil casos de exploração infantil, entre estupros, prostituição e violência familiar. Durante as investigações feitas pela CPI da Pedofilia do Maranhão, além dos casos de Pinheiro, foram denunciados 30 outros, sendo que alguns terminaram em prisão dos acusados. Em uma das denúncias, um vigilante de uma escola foi preso acusado de abusar de uma criança de 5 anos. Até um defensor público da Vara da Infância é investigado após ter sido flagrado em um motel com meninas de 11 e 12 anos.

Para o Ministério Público, os casos sempre existiram e o aumento no número de denúncias deve ser visto como um ponto positivo, pois evidencia a mudança cultural. De acordo com a coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Infância e Juventude do Ministério Público Estadual, promotora Márcia Moura Maia, a cultura influencia tanto na omissão, quando na prática dos abusos em família.

"No interior, o povo ainda tem a cultura de não se meter em assuntos que não sejam de sua família", disse. Sobre o primeiro caso de Pinheiro, a promotora disse que, apesar dos atos serem considerados monstruosos, aquilo era normal para os envolvidos. "Na cabeça dele (José) e dela (da filha) era normal. Aí, entra a questão cultural. Nesse caso, toda a família foi vítima da negligência do poder público (...). Ele não entende a dimensão do que fez", disse.

De acordo com a presidente da CPI da Pedofilia na Assembleia Legislativa do Maranhão, deputada Eliziane Gama (PPS), diferentemente do que aconteceu na Áustria, a vítima brasileira era submetida ao cárcere psicológico. "Ela podia sair de casa, mas não tinha acesso a informação, ou a qualquer tipo de ajuda. Ela me disse que começou a sofrer abusos com 13, 14 anos, e que não achava que aquilo fosse crime, só teve consciência disso depois".

A promotora também enfatiza os fatores culturais. "Conversei com psicólogos que me disseram que é possível que ele (José Agostinho) não tenha nenhum tipo de distúrbio psicológico. As pessoas acham normal esse tipo de coisa, elas pensam: 'não vou criar minha filha para os outros'. Naquele lugar, naquela situação, eles vivem e se comportam como animais, e o convívio em casas pequenas, sem paredes, sem privacidade, onde dormem todos juntos, favorece o acontecimento desse tipo de coisa".

Para a delegada regional de Pinheiro, Laura Amélia Barbosa, responsável pelas investigações dos casos recentes de abusos, a população acaba encarando como normais os casos de pais que têm filhos-netos com as filhas. "As pessoas sabem que pais têm filhos com as filhas, mas isso acaba sendo encarado com normal."

Márcia atribui parte da culpa à omissão das prefeituras. "O Maranhão é um Estado grande, difícil de percorrer, por isso o fortalecimento dos Conselhos Tutelares é uma medida que pode reverter o quadro. As prefeituras não destinam recursos para programas de atendimento. Os agentes de saúde, por exemplo, será que eles não viram a situação em que a família de Pinheiro vivia? Sem escola, sem acesso à saúde, em total isolamento? Porque não denunciaram isso? Acredito que aquele e outros casos e podem ter sido perpetuados pela omissão", afirmou.

Para a deputada Eliziane Gama, o isolamento, a falta da presença do Estado nos locais mais isolados, a exploração infantil - muitas vezes acobertada pela família que tira proveito disso -, a omissão da sociedade e a impunidade são os fatores que mais têm relação com os casos de pedofilia e abusos familiares apurados no Maranhão. Ela acredita que os pedófilos encontram espaço livre para atuar nas cidades e comunidades mais isoladas.

"Existem cidades que são verdadeiros paraísos, mas de difícil acesso, são necessários 40 minutos pelo meio da areia. Esses lugares ficam no meio da areia, e não há qualquer indício de aparelho do Estado. Lá se vive em outra época", disse, apontando que, em localidade como essas, turistas podem agir livremente com a ajuda de famílias que exploram os filhos e acobertam esse tipo de prática "porque ganham, R$ 200, R$ 300".

Denúncia

Nesses lugares mais isolados, de acordo com a deputada, a falta de informação e de aparelhos do Estado são os principais problemas, que permitem a omissão e falta de iniciativa para denunciar. "A falta de acesso aos aparelhos de denúncia nas cidades onde não há Conselho Tutelar, Ministério Público, delegados, e muito menos juízes, faz com que esse tipo de caso possa proliferar. Existe a questão social e a falta de acesso aos meios de denúncia."

No entanto, as campanhas de conscientização contra a exploração infantil já levam mudanças a outras partes. De acordo com a delegada Laura, o segundo caso de Pinheiro (da menina de 12 anos supostamente abusada pelo pai) veio à tona após a visita de um irmão mais velho que vive no Rio de Janeiro. Ele comentou os abusos na comunidade, mas ninguém denunciou até o primeiro caso ganhar repercussão na mídia.

"O caso de (José) Agostinho abriu as portas. A população não denunciava porque não queriam se submeter (...) Com a repercussão que o primeiro caso teve, muita gente começou a falar", disse. A delegada é responsável pela maior delegacia regional do Estado, que abrange 21 municípios. Muitas denúncias ainda não foram colocadas no papel, mas temos esses últimos em andamento (os casos dos lavradores que abusavam das filhas). Nos povoados, as pessoas começaram a comentar 'que tem esse caso', 'que tem aquele', mas esses ainda estão sendo apurados com a ajuda do Conselho Tutelar".

Para a promotora, a mudança é evidente. "Hoje, quando os vizinhos ouvem uma criança chorando durante toda a noite, tentam descobrir o que ocorreu e chamam o Conselho Tutelar".

Impunidade
De acordo com a presidente da CPI, existem casos em que a Justiça favorece acusados de maior poder aquisitivo. Ela citou o episódio de um pai que engravidou a filha de 12 anos na cidade de Colinas. De acordo com a parlamentar, ele admitiu o crime, mas foi absolvido. No entanto, a promotora disse nunca ter visto casos em que a Justiça inocentou culpados, quando há provas. Para ela, o que existe é a "fragilidade de provas".

"Às vezes, trabalhamos em processos nos quais não há testemunhas, e o exame de conjunção carnal não consegue comprovar se a violação foi recente. Temos apenas o denunciante. Em São Luis, contamos com a ajuda do centro com perícia, com médicos e psicólogos, mas nem sempre é assim no interior. Trabalhamos com processos com fragilidade de provas que podem inocentar o acusado", disse a promotora Márcia.

Fonte: Redação Terra
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