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Novo museu judaico de SP terá utensílios e histórias de campos de concentração

27 jan 2015 - 12h11
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Luis Guilherme Barrucho e Ricardo Senra

Maior museu dedicado à cultura judaica na América Latina será inaugurado em 2016 em São Paulo
Maior museu dedicado à cultura judaica na América Latina será inaugurado em 2016 em São Paulo
Foto: BBC Mundo / Copyright

Da BBC Brasil em São Paulo

Maior museu dedicado à cultura judaica na América Latina será inaugurado em 2016 em São Paulo

Esqueça os quadros, esculturas e obras de arte suntuosas: no maior museu judaico da América Latina, que abre as portas no ano que vem em São Paulo, as grandes estrelas serão bonecas, roupas, móveis e objetos pessoais.

Mais de 700 peças cotidianas usadas tanto por famílias judias reocuparão os salões da antiga sinagoga Beth-El, construída no final dos anos 1920 e fechada em 2007 ─ já com a estrutura comprometida e a fachada literalmente caindo.

São peças de momentos distintos na vida de refugiados judeus - dos campos de concentração, do dia a dia na Europa durante a Segunda Guerra e após a chegada ao Brasil.

O local, na rua Martinho Prado, próximo à Av. Nove de Julho, antes frequentado por algumas das famílias mais ricas do país, perdeu público com a desvalorização da região central da cidade. Hoje a área vive momento oposto ─ o investimento em restauro e ampliação do prédio histórico (que terá nova ala de vidro) deve alcançar R$ 26 milhões, dos quais R$ 900 mil vêm do governo alemão.

"O Brasil tem papel especial porque acolheu as pessoas", diz a doutora em Literatura em pela USP Nancy Rozenchan, que faz parte do conselho de curadores do futuro Museu Judaico de São Paulo. "Na Europa, a guerra teve impacto mais forte e traumático", diz.

A constatação não sugere que a experiência por aqui tenha sido simples.

"Demorou bastante tempo para que as relações com o Holocausto viessem à tona na cultura brasileira", diz a pesquisadora. "Os que sobreviveram foram pessoas que sofreram muito e perderam familias, bens, nome, identidade. Quando chegavam no Brasil, pensavam naqueles que não resistiram", diz. "Tudo muito cruel."

Imagens mostram diferentes etapas do processo de restauro de documentos do acervo

Do centro do salão principal, o médico Sérgio Simon, presidente do novo museu, aponta para a vizinha praça Roosevelt, que, nos anos 1940, teria sido reduto de simpatizantes do regime de Adolf Hitler. "O partido nazista o os integralistas foram muito fortes aqui e o Brasil recebeu muitos nazistas", diz.

Séries de passaportes com nomes alterados e diplomas profissionais confiscados vão ilustrar as dificuldades enfrentadas pelos judeus durante o governo Vargas (1930 - 1945). "A meta é criar uma espaço de referência sobre as relações históricas do Brasil tanto com judeus, quanto com os nazistas", diz Simon.

Talheres e suásticas

Diferente de vários museus mundo afora, o valor da maioria das peças que serão expostas é simbólico, não financeiro, afirmam os curadores.

Os ambientes iluminados por vitrais amarelos de 1929 trarão, por exemplo, garfos e facas de prata decorados com suásticas talhadas. Eles eram usados diariamente no mais sanguinário dos campos de concentração - Auschwitz, na Polônia, cuja desocupação completa 70 anos nesta terça-feira.

Células ilustradas com estrelas de Davi eram usadas como moeda de troca no campo de concentração Theresienstadt

"O conjunto de talheres era restrito aos oficiais nazistas, não a judeus ou outros prisioneiros. São objetos que trazem uma imagem tremenda da diferença entre um lado e outro nos campos de concentração", explica a pesquisadora Rozenchan.

O trajeto entre Auschwitz e o centro paulistano se deu graças a uma judia húngara que trabalhava na cozinha do campo de concentração mais famoso do nazismo.

"Ela cozinhava para os oficiais e num gesto último escondeu estas peças, que nos foram cedidas por sua neta", diz a professora.

Bilhetinhos e dinheiro

Diário escrito entre 1941 e 1942 narra cotidiano de adolescente judia em meio ao nazismo

Um caderninho simples e amarelado de 28 páginas se destaca na coleção, que conta com doações dos museus judaicos de Nova York, Berlim e Jerusalém: trata-se do diário da pré-adolescente alemã Lore Dublon, escrito entre março de 1941 e janeiro de 1942.

"Era uma mocinha de 13 anos que foi com os pais da cidade alemã de Erfurt para a Bélgica, tentando escapar do regime", conta Simon. "Como Anne Frank [cujo diário escrito durante o nazismo virou best-seller e filme], ela descrevia ali seu dia a dia, guardava bilhetinhos de amigos e entradas de cinema. Teve um namoradinho que 'sumiu': ela não entendia que ele tinha ido para um campo de concentração", afirma.

Antes de chegar às mãos de um engenheiro em São Paulo, o diário foi recuperado por um tio da menina, que o enviou para parentes que viviam no Uruguai. Perdido por mais de seis décadas, o texto não dá pistas sobre o destino de Lore e seus parentes.

Os curadores respondem: "Lore e sua família foram exterminados em Auschwitz".

Tão amareladas quanto o caderno estão as células ilustradas com estrelas de Davi (nos valores de 1, 2, 5, 10, 20, 50 e 100), usadas como moeda de troca no antigo campo de concentração Theresienstadt, na atual República Tcheca.

"Este campo foi uma tentativa de camuflar o regime, transformá-lo num pseudoparaíso", avalia a professora Rozenchan. "As pessoas na prática tinham todo o seu dinheiro confiscado e trocado por estas notas que compravam nada, não serviam para nada", diz.

Pobres e negros

Iniciada em 2011, a construção do Museu Judaico tinha fim previsto para este ano - o que não se previu foi a dificuldade em fincar novos pilares no solo alagado da região, por cujo subsolo passa um rio canalizado.

"Precisamos refazer as fundações e isso nos tomou muito tempo", afirma o presidente do museu, que recebeu doação de R$ 1 milhão do governo de São Paulo via lei Rouanet. "Este é um dos melhores projetos de museus não só do país, mas talvez do mundo", disse o governador Geraldo Alckmin, que esteve por lá.

A direção espera receber público entre 50 e 70 mil pessoas por ano após a inauguração, cuja obra envolve pelo menos 200 homens.

"Não queremos um espaço fechado pela comunidade, mas frequentado por todo mundo", diz o presidente.

"Quem serão estas pessoas?", pergunta a reportagem.

"Alunos de escolas públicas, por exemplo", responde Simon, em frente ao pesado altar de madeira recém-restaurado. "Pobres e negros no Brasil são como os judeus: sempre foram discriminados."

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