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GO: vítimas da radiação serão monitoradas por até 100 anos

13 set 2012 - 07h50
(atualizado às 14h44)
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Mirelle Irene
Direto de Goiânia

A maioria das vítimas do césio 137, seus filhos e até netos, deverão ser monitoradas por um período que pode chegar até 100 anos após a tragédia. As pessoas que tiveram maior exposição à radioatividade devem pelo menos uma vez por ano se consultar com especialistas, segundo o diretor técnico do Centro de Assistência aos Radioacidentados (Cara), José Ferreira Silva. O médico de 54 anos trabalha há 24 no acompanhamento das consequências do acidente com radioatividade de Goiânia.

Ferreira observa fotos do acidente na sede do Centro de Atendimento aos Radioacidentados
Ferreira observa fotos do acidente na sede do Centro de Atendimento aos Radioacidentados
Foto: Mirelle Irene / Especial para Terra

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"Os exames buscam, preventivamente, sinais precoces de possíveis doenças que possam ocorrer", explicou o médico, destacando o câncer como um dos principais inimigos. "Na época do acidente, a preocupação inicial era a Síndrome Aguda da Radiação, típica de quem se expõe à radiação, uma doença grave, que pode afetar muitos órgãos e tem mortalidade muito alta. No caso de Goiânia, o trabalho médico foi muito bem feito na época, e tivemos só quatro óbitos", disse Ferreira. Outros pacientes, como aqueles que sofreram queimaduras, foram submetidos a amputações de membros, ou tem conviver com outras sequelas permanentes.

Segundo Ferreira, 1.015 vítimas do césio são atendidas no Cara. Elas foram divididas em três grupos, de acordo com o grau de radiação a que foram submetidas. No Grupo 1, estão aqueles que estiveram expostos de médias a altas doses e tiveram um contato muito próximo com a cápsula de césio. "Destes, 20 ficaram internados e quatro morreram na época do acidente. Outra morreu na primeira década após o acidente e outra na segunda década, mas não diretamente por causa da radiação", descreveu o médico. Neste grupo, as pessoas dependem de ajuda do Estado, porque suas sequelas não as permitem trabalhar. São atualmente 50 vítimas, além de seus filhos (35) e um neto.

No Grupo 2, são 44 pessoas que receberam doses menores de radiação e seus filhos (34). O Grupo 3 soma 851 pacientes, a maioria de trabalhadores do Estado que prestaram algum tipo de apoio na tragédia e que apresentam grau zero de contaminação.

Câncer generalizado é descartado

Ferreira desmistifica uma das maiores preocupações da população de Goiânia, a de que o acidente com o césio possa ter criado condições propícias ao aparecimento de câncer em alta escala. "A ciência tem demonstrado que populações expostas a médias e altas doses, com o passar dos anos, apresentam um índice maior de câncer. Em Hiroshima e Nagazaki (alvos de bombas atômicas na Segunda Guerra Mundial), casos de leucemia aumentaram 50 vezes mais", disse o diretor técnico do Cara. Mas, segundo ele, em Goiânia, isso não aconteceu, porque o poder da cápsula era pequeno, em comparação a estas outras tragédias, e para os padrões populacionais da capital goiana. "Era uma cápsula que já estava aposentada, e de baixa potência", esclareceu. Segundo o médico, só as cerca de 20 pessoas que, há 25 anos, manusearam a cápsula receberam altas doses.

Ferreira explica que nos primeiros seis meses após o acidente foi feita uma triagem com cerca de 1 mil pessoas, num raio de 50 metros de onde a cápsula foi aberta. "Isso mostrou que a população está livre inclusive de médias doses", apontou.

A equipe de oito médicos do Cara é multidisciplinar e conta com clínicos, oncologistas, cardiologistas, pediatras, urologistas, ginecologistas e dermatologistas. Segundo o diretor técnico, na época do acidente com o césio, os médicos de Goiás e do Brasil não sabiam como lidar com o problema, não havia especialistas em tratamento de radiação. Ele próprio teve que buscar formação no Japão, na cidade de Hiroshima. "Hoje, nosso aprendizado é quase todo com o exemplo japonês. Achávamos, por exemplo, que haveria um aumento na frequência de má-formação congênita nas crianças. Mas, ainda bem, isso não aconteceu. Não temos isso aqui. Em Hiroshima e Nagazaki há crianças mal formadas, mas que foram expostas dentro do útero."

Para Ferreira, o acidente de Goiânia despertou as autoridades para a necessidade de se preparar. "Ficou claro que você pode ter um acidente radioativo em qualquer parte do mundo. Despertou uma necessidade de vigiar estas fontes de radiação", disse. Segundo ele, o acompanhamento médico das vítimas de Goiânia é uma fonte importante também para a pesquisa. "Procuramos documentar tudo", assinalou.

Os detalhes da tragédia

No dia 13 de setembro de 1987, no Centro de Goiânia, dois catadores de lixo descobrem um aparelho de radioterapia abandonado. Com a intenção de vender o mental, a dupla leva até um ferro-velho localizado na rua 57 do Setor Aeroporto. O dono do estabelecimento, Devair Alves Ferreira, compra o material e, naquele noite, Devair abre a cápsula e encontra um pó que emitia um brilho azul. Maravilhado com a coloração, ele leva para dentro de casa e mostra para cunhada, Maria Gabriela Ferreira, e para o restante da família. Sem ter noção do que tinha nas mãos, ele passou dias mostrando para amigos, vizinhos e parentes, o seu achado. Alguns até levaram porções do pó para casa, como o seu irmão Ivo. Neste meio tempo, Devair e sua família começam a apresentar os sitomas da radiação, como tonturas, náuseas e vômitos. Alertado por vizinhos, a cunhada de Devair desconfiou que os problemas de saúde tinham origem na cápsula. De ônibus, ela levou o material até a Vigilância Sanitária. Os doentes, que já apresentavam queimaduras, eram tratados no Hospital de Doenças Tropicais. Somente no dia 29 de setembro foi constatado que o produto levado por Maria Gabriela era radioativo e se tratava do césio 137, uma substância que não existe na natureza e é resultado da queima do Urânio 235 dentro de um reator nuclear.

A Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) foi acionada. O pânico se espalhou por Goiânia. A Cnen monitorou os níveis de radioatividade de mais de 110 mil pessoas, no Estádio Olímpico. Encontrou radiação em 271 delas, sendo que 120 tinham rastros em roupas.No dia 1º de outubro daquele ano, 14 pessoas, em estado grave, foram levadas para o Hospital Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. Poucas semanas depois, quatro delas morreram. A primeira foi Leide das Neves Ferreira, de 6 anos, a sobrinha do dono do ferro-velho e que se tornou o maior símbolo da tragédia. No mesmo dia, Maria Gabriela Ferreira, 37 anos, perdia a vida também. Morreram ainda outros dois jovens, Israel batista dos Santos, 22 anos, e Admilson Alves de Souza, 18 anos. Os quatro mortos foram os únicos mortos segundo dados oficiais. A Associação das Vítimas do Césio 137, no entanto, aponta que nesses 25 anos 104 pessoas tenham morrido e cerca 1.600 tenham sido afetadas de forma direta.

Os responsáveis pela tragédia foram condenados por homicídio culposo, ou seja, sem intenção de matar e cumpriram penas brandas. Em fevereiro de 1996, quase dez anos depois do acidente, os médicos Carlos Bezerril, Criseide Castro Dourado e Orlando Alves Teixeira e o físico hospitalar Flamarion Barbosa Goulart foram senteciados há três anos e dois meses de prisão em regime aberto. Os médicos e o físico tiveram que prestar serviços à comunidade.

A decisão foi do Tribunal Regional Federal de Brasília que modificou as penas impostas pela Justiça de Goiânia. Em 1992, todos os envolvidos tinham recebido penas mais brandas, mas um recurso impetrado junto ao TRF alterou toda a situação.

Sócios na Clínica de Radiologia de Goiânia, Carlos, Criseide e Orlando foram considerados os principais responsáveis pelo acidente. Eles deixaram, na sede da clínica, uma bomba radioativa. Com a retirada de telhas, portas e janelas, o prédio ficou desprotegido e a bomba acabou chamando a atenção de catadores.

O ferro-velho e outras residências da região foram destruídas, assim como os pertences das famílias envolvidas, gerando toneladas de rejeitos radioativos. Um depósito foi construído em Abadia de Goiás, cidade ao lado de Goiânia. Em 1987, quando os rejeitos foram levados para lá, Abadia de Goiás ainda não era município.

Fonte: Especial para Terra
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