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Polícia

Da Matta: atropelador foi cavalo usando cavalos de potência

2 mar 2011 - 16h43
(atualizado às 16h43)
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Hermano Freitas

O automóvel é considerado pelo cidadão brasileiro uma couraça de proteção contra os semelhantes. Neste contexto, em que a máquina é um instrumento de realização pessoal que distingue quem tem e quem não tem, o pedestre e o ciclista que atravessa vias públicas é visto pelo motorista como um ser inferior, sem os mesmos direitos que o motorista e que, portanto, pode e até deve ser desrespeitado - e até ter o espaço que ocupa (indevidamente, para o motorista) invadido.

Esta é a análise que um dos mais importantes antropólogos do País faz sobre o atropelamento de mais de dez ciclistas - deixando oito em estado grave - na última sexta-feira em Porto Alegre pelo funcionário do Banco Central Ricardo Neis.

Professor de antropologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e consultor de trânsito, com participação em pesquisas do setor e publicação de clássicos como "Carnavais, Malandros e Herói", Roberto Da Matta publicou o livro "Fé em Deus e pé na tábua - Ou como e por que o trânsito enlouquece no Brasil", no qual analisa o fenômeno da brutalização humana potencializada pelo automóvel no País.

"Atravessar a faixa de segurança, no sinal vermelho, se torna um insulto para o motorista." Confira os principais trechos da entrevista:

Terra - No caso específico do atropelamento dos ciclistas, o que o senhor acha que ocorreu?

Roberto da Matta - Aquilo foi um sujeito, que é um cavalo, soltando os cem cavalos (a potência de um Golf é de 99 cv) que tinha em cima da multidão de ciclistas. Ele próprio declarou que estava irritado com a calma deles (os ciclistas). Deve ter passado pela cabeça do motorista algo como "estes caras, em bicicletas, eles só podem estar de brincadeira comigo, me atrasando, eu que tenho um carro e meus compromissos". E aí tocou por cima, com a proteção que o carro lhe dá.

T- Por que as pessoas se tornam mais agressivas no trânsito do Brasil?

Da Matta- É uma coisa antiga, da sociologia do automóvel, uma teoria da brutalidade no trânsito. O trânsito virou no Brasil um cenário de grande violência, em grande parte por conta da popularização do carro, que muito tempo foi visto como um bem móvel de cunho aristocrático. Você tem um automóvel, que é uma realização do sonho burguês, e mesmo que não seja burguês sente-se realizado. E sente-se também protegido do outro, do pedestre, que é alguém inferior, sem a mesma proteção, sem a separação do resto do mundo que você, que está dentro do seu automóvel.

T- Qual a origem de encarar o pedestre e o ciclista não como um igual, mas como um ser inferior?

Da Matta - Trata-se de uma contradição cultural. O trânsito é um meio em que todos são iguais e devem respeitar as mesmas regras, mas ao mesmo tempo você quer se sentir diferente, personaliza seu carro, coloca adesivo de "a inveja é uma m..." e aí precisa ser igual ao outro. Quer dizer, precisa ser igualitário em um ambiente que não é igualitário. O brasileiro tem um desconforto natural, próprio da cultura, com a igualdade. Ele se sente melhor com a desigualdade, mesmo que seja ele o inferior, porque aí sabe como agir com quem é superior.

T- E a agressão, como surge o momento em que o motorista agride o outro?

Da Matta -Aquilo que é um direito do pedestre, de atravessar a faixa de segurança, se torna um insulto. Ele, o motorista, pensa "ele só pode estar me sacaneando, atravessando a faixa no sinal vermelho". E toca por cima. Tem também a nossa origem cultural, a herança portuguesa da aristocracia, de se achar superior ao outro, com o carro servindo para este diferencial.

Fonte: Terra
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