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Polícia

Após 1 ano, receptores dos órgãos de Eloá relatam nova vida

17 out 2009 - 13h47
(atualizado em 18/10/2009 às 01h37)
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Mariana Lanza
Direto de São Paulo

"Minha vida nunca foi normal. Eu nunca tive infância, não conseguia brincar, fazer nada". Maria Augusta Silva dos Anjos guarda na memória os momentos difíceis que passou durante seus primeiros 39 anos de vida. As limitações da paraense eram resultado de uma cardiopatia complexa em que apenas um lado de seu coração funcionava. Hoje, a realidade dela é outra. Há um ano - e por coincidência no dia do seu aniversário - Maria Augusta recebeu o coração da adolescente Eloá Cristina Pimentel, 15 anos, assassinada há exatamente um ano pelo ex-namorado Lindemberg Fernandes Alves, que tinha 22, depois de ter sido mantida refém na própria casa por mais de cem horas. "Agora estou vivendo de verdade. Faço planos, caminhadas, subo e desço escadas", diz ela.

Maria Augusta mudou-se para a capital paulista em 2007 para estar mais perto de seus médicos e, enquanto aguardava o transplante, precisou da ajuda dos familiares para se manter. Ela sentia muita falta de ar, dor no peito e passou praticamente dois anos dentro de um apartamento em São Paulo. "Não podia fazer nada, nem trabalhar. Ficava em casa mesmo. Tinha limitações para tudo", conta.

Assim que os médicos decretaram a morte cerebral de Eloá, na madrugada do dia 19 de outubro de 2008, Ana Cristina Pimentel transformou a dor pela perda da filha em esperança para outras pessoas. Emerson Gentil Dardis foi uma delas. Na época com 25 anos, ele teve uma reviravolta na vida após o drama vivido pela humilde família do ABC Paulista.

Diabético desde os 12 anos de idade e habituado a fazer sessões de hemodiálise três vezes por semana, com quatro horas de duração cada uma, o mecânico estava na lista de espera por transplantes de rim e pâncreas. "Na hora que meu amigo falou que a mãe da Eloá ia doar os órgãos dela, eu pensei: 'podia vir para mim'", fala Emerson, que estava em uma lanchonete com amigos quando recebeu a ligação emocionada de sua mãe, lhe pedindo que voltasse logo para casa.

Antes de passar pela cirurgia, ele tinha necessidade diária de insulina, dieta para diabético e para insuficiência renal, restrição de ingestão de líquidos, dependência de hemodiálise e ficou cego do olho direito. "Eu ainda tomo remédio de rejeição, mas antes tomava vários medicamentos. Agora também posso viajar sem a preocupação de ter que voltar na segunda para a hemodiálise", diz.

Vítima de um problema hereditário de visão, Lívia Amodio Novais, 29 anos, ganhou uma das córneas de Eloá. Já os pulmões foram transplantados em uma paciente, na época com 18 anos, do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas (Incor) e, aos 12, uma menina ganhou o fígado da adolescente. "A paciente tinha hepatite autoimune. Neste caso, o sistema de defesa deixa de reconhecer como próprios alguns tecidos, desencadeia uma inflamação crônica e a destruição progressiva das células do fígado", diz Paulo Celso Massarollo, chefe da Equipe de Transplantes da Santa Casa de São Paulo.

Gratidão

Um ano após tantas mudanças, os receptores dos órgãos de Eloá fazem planos e não esquecem o gesto nobre da família da jovem, com a qual ainda mantêm contato. "Ela (Ana Cristina Pimentel, mãe de Eloá) teve uma atitude maravilhosa, porque estava sofrendo pelo que aconteceu e ainda pensou em ajudar alguém a viver melhor", diz Emerson. "Falar desse último ano é uma coisa boa, porque me ajudou. Mas para ela é ruim, pois foi um caso que quase acabou com a vida dela", completa ele, que sonha em formar uma família. "Eloá foi um anjo que Deus trouxe na Terra para nos beneficiar", fala Maria Augusta.

Aproveitando a vida saudável, o mecânico e a paraense não deixarão o próximo dia 20 passar batido. "Vai ser uma comemoração minha de um ano de vida nova, mesmo se minha família não fizer festa", diz Emerson. Já Maria Augusta planejou uma viagem à terra natal para comemorar com os familiares.

Transplantes
De acordo com dados do Ministério da Saúde, subiu 24,3% o número de transplantes de órgãos realizados no Brasil, com doador falecido, no primeiro semestre deste ano em relação ao mesmo período do ano passado (Em 2009, foram realizados 2099 e, em 2008, ocorreram 1688). E o caso de Eloá pode ter colaborado com esse crescimento. "Houve um aumento significativo do número de familiares que autorizam o transplante dos órgãos de seus parentes após a morte dela", diz a médica nefrologista Irene Noronha, responsável pelo transplante duplo de rim-pâncreas de Emerson Gentil Dardis, na Beneficência Portuguesa.

O maior empecilho para a doação de órgãos no País, segundo Massarollo, é que "muitas pessoas infelizmente morrem e poderiam ser potenciais doadoras, mas por algumas questões de organização de sistema seus parentes sequer são consultados sobre isso. Acho que perdemos mais oportunidades de transplantar órgãos por conta de atitudes médicas que não são ideais do que propriamente devido à recusa dos familiares".

No entanto, ainda de acordo com o chefe da Equipe de Transplantes da Santa Casa, isso varia de local para local. "Em São Paulo, aparentemente isso tem melhorado muito. Este ano a Secretaria de Saúde está tendo um grande aumento de doadores provavelmente porque conseguiu minimizar esse tipo de problema."

Relembre o caso

A estudante Eloá Cristina Pimentel, então com 15 anos, foi refém pelo ex-namorado por 100 horas no apartamento em que morava com a família, num conjunto habitacional na periferia de Santo André, região do Grande ABC paulista. Inconformado com o fim do namoro, o motoboy Lindemberg Alves, 22 anos, invadiu o apartamento no dia 13 de oububro de 2008. Ele chegou a manter quatro reféns, mas no mesmo dia libertou dois adolescentes que estavam no local. No dia seguinte, libertou Nayara. No entanto, como parte das estratégias de negociação, a adolescente voltou ao apartamento na manhã do dia 16, sendo feita refém novamente.

O sequestro terminou no dia 17 de outubro, quando o Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate) explodiu a porta e deteve Lindemberg. As amigas Nayara e Elóa deixaram o apartamento feridas por disparos feitos pela arma usada por Lindemberg. Na noite do dia 18, foi diagnosticada a morte cerebral de Eloá.

O governador de SP José Serra e Maria Augusta, que recebeu o coração de Eloá
O governador de SP José Serra e Maria Augusta, que recebeu o coração de Eloá
Foto: Raphael Falavigna / Redação Terra
Fonte: Redação Terra
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