Discurso multiculturalista se baseia no racismo do século 19, diz Magnoli
No mês passado, apublicação do livro "Uma Gota de Sangue", do geógrafo DemétrioMagnoli reacendeu o debate sobre as políticas afirmativas que sebaseiam em critérios de cor ou raça. Doutor pela Universidade deSão Paulo (USP) e participante do Grupo de Análises de ConjunturaInternacional da mesma universidade, Demétrio costuma criar impactoe chamar a atenção da mídia.
Emseu oitavo livro, ele defende que as políticas afirmativas guardamrelação com a ideologia racista que justificou o imperialismoeuropeu e branco na África e na Ásia, no século 19 e que apolítica é um passo atrás em relação à Declaração dosDireitos Humanos.
Àépoca do lançamento do livro, Demétrio Magnoli concedeu a seguinteentrevista.AgênciaBrasil: Oque é política de raça e como esse assunto entra no livro? DemétrioMagnoli: ABr:
Magnoli:
Não.Evidentemente, o filho do ministro Joaquim Barbosa únicoministro negro no Supremo Tribunal Federal não tem muitos problemas para estudar nem para ter oportunidades navida, e ele tem pele escura. Enquanto que o filho de um trabalhadorque ganhe um salário mínimo, com a cor de pele mais clara, tem umasérie de desvantagens e de dificuldades na vida. Quando se toma araça como critério você passa a nomear as pessoas a partir da corda pele e produz fantasias políticas que estão baseadas na cor dapele. É o que faz, por exemplo, a Universidade de Brasília. Na UnB,com suas cotas raciais, o filho do ministro Joaquim Barbosa precisater menos pontos no vestibular para ser aprovado do que o filho de umtrabalhador, de cor da pele mais clara e que ganha salario mínimo,precisaria.ABr:
Mas a desigualdade recai mais sobre os negros?Magnoli:
Issoé justificado com médias estatísticas, mas é claro que as médiasestatísticas não disputam vestibular. Quem concorre no vestibularsão pessoas reais. O mito da raça serve para criar grandesconjuntos que serão definidos, no caso do Brasil, pela cor da pele.Essas médias estãose referindo às pessoas que nem terminaram o ensino médio e que nemestão disputando o vestibular. Quando se faz política de cotas nasuniversidades o que se faz é dizer que a disputa de pessoas daclasse média baixa, que disputam as últimas vagas nos vestibulares,se definirá pelo critério de cor da pele. O que se faz é pegar essas pessoas - das mesmas escolas, dos mesmos bairros, da mesma origemfamiliar - e traçar uma fronteira racial, que é uma fronteiraimaginária e inventada. Esse tipo de política repousa sobre os mesmosfundamentos criados no século 19 pelo racismo científico. Ou seja,o multiculturalismo, que é um fenômeno pós-moderno, tem raízes naexpansão imperial europeia naquele século.ABr:
Osenhor fala em mito das raças, mas nós não temos no Brasil outromito, o da democracia racial?Magnoli:
Umaparte importante do meu livro está voltada para desvendar anarrativa racialista que você repete de maneira tão óbvia. Naverdade não se inventou com Gilberto Freyre CasaGrande e Senzala ou com Sérgio Buarque de Holanda Raízesdo Brasil ,nenhuma ideia de democracia racial. O que o Brasil tem de diferente éque no final do século 19, quando em outros países, notadamente nosEstados Unidos, oparadigma da divisão das pessoas em raça estava se tornandodominante, há no Brasil um choque intelectual muitogrande entre um pensamento que se baseia na raça e outro pensamento anti-racista, que começa muito antes de Gilberto Freyre e vemcom o movimento sanitarista no Brasil. Quando os sanitaristas diziam:''não há nenhum problema com o brasileiro pelo fato de ele sermiscigenado''. Os racistas diziam: ''o problema do Brasil é amiscigenação'', ''a miscigenação significa degradação'', ''oproblema dos brasileiros é que eles são miscigenados e por issoficam doentes''. E aí aparecem os sanitaristas e dizem: ''não, não épor isso que eles ficam doentes. Eles ficam doentes por causa domosquito damalária ,então vamos combater o mosquito''.Os sanitaristas eramrevolucionários num mundo que acreditava que o problema era amiscigenação e não o mosquito. É a partir desse choqueintelectual que o Brasil vai, no início do século 20, desenvolver aideia de que a mestiçagem é positiva. Uma ideia que hoje osracialistas abominam. Eles são tão atraídos pelo mito racial queabominam a ideia de que a mestiçagem é positiva. Todo o brasileiro é mestiço porque o Brasil rejeitou o mito da raçae portanto adotou um processo de mestiçagem cultural onde todos osbrasileiros, mesmo os de pele alva, citando aqui Gilberto Freyre, temno seu sangue ou na sua alma uma parte da África. Isso faz doBrasil um país diferenciado, não porque ele seja uma democraciaracial, mas porque ao longo do século 20 não fez lei de raça. Issosepara o Brasil dos Estados Unidos. Ao não fazer lei de raças, aspessoas jamais reconheceram no Brasil uma identidade baseada nocritério de raça. ABr:
Magnoli:
Emprimeiro lugar, os Estados Unidos não têm uma elite negra por tertido uma política afirmativa de base racial. Os Estados Unidos têmuma elite negra por causa do funcionamento da economia americana.Essa elite negra começou a surgir nos anos 1950 e 1960, bem antes daentrada em vigor das políticas afirmativas. Não há nenhum elementoque evidencie que as políticas afirmativas mudaram em alguma coisaesse processo econômico e a produção de uma elite negra. Atribuira vitória eleitoral de Barack Obama, um homem que já se posicionoucontra preferências às políticas raciais, é um tipo defalsificação histórica bem grande. Eu contesto a legitimidade doobjetivo de se ter uma elite negra. Eu contesto a legitimidade de seter uma elite que se define em termos raciais. O que aconteceu nosEstados Unidos, nas últimas décadas, foi o aumento da distânciasocial e econômica entre a elite e os mais pobres.Isso é um fenômeno dramático. Ao mesmo tempo que faziam políticasde preferência racial, os mais pobres ficavam mais distantes dosmais ricos nos Estados Unidos.