PUBLICIDADE

'Meu filho acha que os carros vão passar por cima dele': perigo e mortes rondam ciclistas em rodovias

18 jun 2015 - 17h11
Compartilhar
Exibir comentários

Paula Adamo Idoeta

Ciclista na parte final da rodovia dos Imigrantes (Foto: BBC Brasil)
Ciclista na parte final da rodovia dos Imigrantes (Foto: BBC Brasil)
Foto: BBC Mundo / Copyright

Da BBC Brasil em São Paulo

Para muitos que vivem em regiões próximas a rodovias, há poucas opções eficientes de transporte além da bicicleta

Ao lado do trânsito carregado na véspera do feriado de Tiradentes, o pintor José Cassemiro passava lentamente de bicicleta pelo acostamento da rodovia Rio-Santos, próximo ao litoral paulista. Na garupa estavam os filhos Brenda, 3, e Bryan, 5, que ele havia acabado de buscar na escola.

Atrás dele, alguns carros tentavam ganhar tempo trafegando pelo acostamento. Por volta do quilômetro 232 da rodovia, na altura de Bertioga, a bicicleta de Cassemiro foi atropelada por um dos carros.

José diz que foi atingido quando ainda estava no acostamento; o motorista do veículo argumentou que o próprio ciclista tentou cruzar a via, não viu que vinha um carro atrás e provocou o choque.

Com um trauma grave na cabeça, Brenda foi atendida por voluntários e pelo SAMU ainda na pista da Rio-Santos e hospitalizada. Mas a menina morreu quatro dias depois, de traumatismo crânio-encefálico.

José fraturou a clavícula e se recupera em casa, ainda sem poder trabalhar.

Bryan também bateu a cabeça, mas depois de duas semanas de febre voltou à escola. Agora é levado pela mãe, Paula Soraia dos Santos Cassemiro, mas não há alternativas: ela continua precisando atravessar a pista da Rio-Santos de bicicleta para chegar à escola, todos os dias, assim como outras pessoas da região que moram de um lado da rodovia e têm de se deslocar ao outro.

Atropelamento na Rio-Santos deixou Bryan, 5, com ferimentos leves, mas sua irmã Brenda, 3, não resistiu a trauma na cabeça

Segundo ela, não há linhas de ônibus próximas que façam o trajeto.

"Não é só a gente", diz Soraia à BBC Brasil. "Tem muita mãe que tem filho do outro lado da escola e corre risco todo dia. Tem uns carros que param e outros não. Se não param, você espera diminuir (o tráfego) e atravessa correndo. E é a única escola perto daqui e o único trajeto."

Ela diz que, por causa dos acidentes, foi construída uma passagem para pedestres por baixo da pista, mas poucos se arriscam a atravessá-la, principalmente à noite.

"É péssima. É suja, escura, fica muito pessoal de rua, usuário de droga, dá medo de ser assaltado. Não tem segurança então não resolve nada. E no verão enche de água pela chuva. Não tem jeito: temos que atravessar a pista (da estrada)."

Vida 'partida'

O perigo e a tragédia enfrentados pela família Cassemiro se repetem em outras rodovias que cruzam trechos urbanos pelo Brasil, muitas vezes à margem das discussões sobre segurança e ciclovias já em curso dentro de algumas cidades do país.

Nas estradas, muitos dos deslocamentos são feitos por pessoas de baixa renda, que moram e trabalham perto de uma das margens da via e têm poucas opções de transporte.

"Com a construção dessas rodovias, a vida das pessoas (dessas comunidades) é partida ao meio e elas têm de cruzar a via para ir da casa à padaria, com carros trafegando a 120 km/h, sem que o Estado garanta sua segurança mínima. E hoje não há discussão sistemática nesse sentido", diz à BBC Brasil Daniel Guth, do grupo Ciclocidade, que defende que parte dos pedágios pagos em vias sob concessão sejam revertidos também em benefícios a ciclistas, e não só a motoristas.

'Ciclistas têm direito e obrigação de usar o acostamento, e raramente motoristas pensam no risco' quando trafegam na via, diz ativista

São três perfis de ciclistas nessas vias, explica William Cruz, ativista do grupo Vá De Bike: os atletas, em geral bem equipados; os cicloturistas, que são raros; e principalmente "pessoas que moram perto da rodovia e usam a bicicleta porque precisam, porque são mal servidas de transporte".

"Pelo Código de Trânsito, elas têm o direito e a obrigação de usar o acostamento, e raramente motoristas pensam (no risco a pedestres e ciclistas) quando decidem trafegar pelo acostamento. Além disso, algumas concessionárias retiram essas pistas laterais para aumentar a velocidade dos veículos."

Mortes

A Polícia Rodoviária Federal informa que, apenas em rodovias federais, foram registrados no Brasil 2.108 acidentes envolvendo bicicletas em 2014, que resultaram em 276 mortes.

E, nos dois primeiros meses de 2015, houve 264 acidentes com bicicletas nas vias federais, com 33 mortes – praticamente uma a cada dois dias.

Segundo dados do Sistema Único de Saúde, morreram no Brasil 1.348 ciclistas em 2013 (número mais atualizado disponível), mas não há informações sobre quantas dessas mortes ocorreram dentro das cidades ou em rodovias.

O caseiro Aloisio Rodrigues, 39, transita na rodovia Raposo Tavares (Grande São Paulo) quase diariamente desde a adolescência. Ele tem de cruzar a via para chegar ao emprego, num condomínio de casas.

Aloisio Rodrigues tem de cruzar a Raposo Tavares (Grande S. Paulo) para chegar ao trabalho

"Um colega meu morreu alguns anos atrás, depois que o carro bateu nele de lado e o jogou ao acostamento", disse à BBC Brasil enquanto trafegava por uma calçada de concreto ao lado da pista de veículos, num trecho que considera seguro para ciclistas.

"Seria bom se tivesse mais (calçadas) do lado porque fica perigoso", diz, preparando-se para enfrentar os 20 minutos finais de sua pedalada – agora, lado a lado com os carros e ônibus.

E, de volta ao litoral paulista, nos trechos finais das rodovias Imigrantes e Rio-Santos, as bicicletas são um meio de transporte comum para os moradores dos bairros próximos à estrada.

"Tem ônibus (perto de casa), mas é muito fora de mão e às vezes eu espero uma hora e meia por ele. Se eu não puder pedalar, prefiro ir a pé", diz o montador de móveis Edivanio Belo, 43, morador de São Vicente, que pedala diariamente, há seis anos, pelo acostamento da Imigrantes.

O jeito, então, é ser cuidadoso: "Estou acostumado com a rodovia e sou prudente. Só atravesso no semáforo e na passagem de pedestres. Já vi um ciclista ser pego ao atravessar fora da faixa."

O pescador Renato Agostinho, 63, foi atropelado na via seis anos atrás, durante seu trajeto de bicicleta entre Cubatão e Praia Grande. "Voltava do serviço quando um carro saiu da pista e me jogou no canal. Ele nem parou. Fui a pé até o hospital com o joelho machucado, que ainda é travado."

O trecho final da Imigrantes passa por obras e há previsão da construção de uma ciclovia dos dois lados, segundo o Departamento de Estradas e Rodagem (DER) e a Ecovias, concessionária do sistema Anchieta-Imigrantes.

A Ecovias não restringe a circulação de bicicletas na rodovia, mas diz que, seguindo resolução do Conselho Nacional de Trânsito, instala placas proibindo o tráfego de veículos não-motorizados em "trechos não propícios, como em túneis, onde não existe acostamento".

O órgão e a concessionária afirma também realizar ações preventivas, como distribuição de adesivos refletivos para bicicletas e orientação a ciclistas e pedestres vistos em trechos perigosos na rodovia.

Iniciativas

Em rodovias por todo o país, há registros de diversos acidentes graves tendo ciclistas como vítimas. Em fevereiro, um ciclista de 45 anos morreu ao ser atingido por um carro que capotou na PB-177, interior da Paraíba. Em março, um motociclista se chocou contra um ciclista que supostamente tentava atravessar a BR-316, na região metropolitana de Belém (PA).

No mundo, a dianteira para tornar as rodovias mais eficientes e seguras para ciclistas - e, ao mesmo tempo, substituir viagens feitas de carro - tem sido dos países do norte da Europa. A Dinamarca, por exemplo, anunciou a criação de vias expressas exclusivas de até 20km ininterruptos para bicicletas, ligando o centro de Copenhague a áreas afastadas.

Mesmo no Brasil, algumas rodovias conseguiram se tornar mais seguras aos ciclistas, segundo iniciativas citadas pelo Ciclocidade.

Edivânio Belo diz que a alternativa a pedalar é ruim: 'Ônibus é fora de mão e às vezes demora uma hora e meia'

Em Goiás, a rodovia dos Romeiros (GO-060) foi reformada em 2012 e ganhou uma ciclovia de quase 15km, num trecho de ligação entre municípios. A BR-101, em Santa Catarina, também tem trechos de ciclovia na região de Camboriú.

Em São Paulo, onde se concentra a maior malha viária do país, o DER diz que novos projetos rodoviários e reformas em rodovias devem levar cada vez mais em conta as demandas dos ciclistas.

"Tem aumentado (a presença) de ciclistas esportistas e romeiros (nas rodovias), exigindo que a engenharia nacional reveja suas obras para contemplar isso", diz à BBC Brasil Rubens Cahin, diretor de planejamento do DER paulista. "Essas normas vão contemplar acostamento compatível ou, quando possível, ciclovias, para manter os ciclistas o mais distante possível das faixas de rolamento (dos veículos)."

Ele cita a própria Rio-Santos, que passará por processo de duplicação em alguns trechos a partir do segundo semestre de 2016. "Em diversos pontos há previsão de ciclovias; em outros, faremos contornos para afastar a rodovia do (perímetro) urbano", diz Cahin.

O grupo Ciclocidade, por sua vez, diz que ainda é incipiente o diálogo sobre ciclismo com o governo paulista e com as concessionárias e participa da articulação de uma frente parlamentar voltada ao tema na Assembleia Legislativa paulista.

A Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR) afirma que "o tema precisa ser melhor regulamentado pelos órgãos de trânsito - o ambiente de uma rodovia é de alta velocidade e, por isso, oferece insegurança ao trânsito de bicicletas. Importante notar que os contratos de concessão de rodovias não estabelecem uma estrutura técnica e operacional para viabilizar o uso sistemático e seguro das bicicletas".

Educação

Outro debate diz respeito ao papel dos motoristas.

Cahin, do DER, faz críticas ao mau uso do acostamento por parte dos motoristas. "Há falta de educação. Muitas vezes o DER tem dificuldade em oferecer socorro nas vias porque alguns abusados estão ocupando o acostamento. Fazemos muito policiamento, mas a educação é chave."

Renato Agostinho diz que já foi atropelado durante pedalada em via expressa na Baixada Santista

Para José Aurélio Ramalho, diretor-presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária, "o motorista é ensinado a pensar que se cruzar um sinal vermelho será multado".

"Está errado: você pode, na verdade, matar alguém. É preciso introduzir o convívio (como ensinamento) nas autoescolas, e não apenas (avaliar) a habilidade motriz do condutor. E, em rodovias, tudo acontece em situação mais crítica, em alta velocidade".

Ramalho diz, também, que o poder público de regiões próximas a rodovias tem de incentivar o uso, por parte dos ciclistas, de coletes refletivos e luzes. "É algo comum em países desenvolvidos, para os ciclistas verem e serem vistos."

Mas Guth, do Ciclocidade, argumenta que a responsabilidade sobre a segurança dos ciclistas precisa recair sobre os "mais fortes", ou seja, os veículos motorizados.

"Usar equipamentos de segurança não é ruim, mas não pode ser o foco, porque assim você acaba jogando a culpa no ciclista. Até porque em rodovias, por causa da alta velocidade, esses equipamentos muitas vezes são praticamente inócuos", diz. "Colocar a responsabilidade pela segurança sobre o ciclista é ir contra as próprias estatísticas."

Sobre o quilômetro 232 da Rio-Santos, onde a família Cassemiro foi atingida em abril, o DER diz que esse trecho está inserido no projeto de revitalização da via e que o trânsito dos moradores entre os dois lados será facilitado.

A própria família Cassemiro já viveu - e observou - outros acidentes no mesmo trecho. "Meu pai foi atropelado há 15 anos no mesmo lugar", conta Soraia. "Teve gente que perdeu a perna em acidente lá na virada do ano. E não tem nada de transporte público (por aqui), o ponto de ônibus é muito longe. Estou pensando em me mudar de casa."

Enquanto isso, seu primogênito Bryan tenta superar as sequelas psicológicas do acidente. "Ele ficou com trauma. No começo, toda vez que ele via um carro ficava com medo dizendo que o carro ia passar por cima dele. Aos poucos acalmou. Mas tudo o que vê, faz ele se lembrar da irmã. Ele não se esquece da irmã."

BBC News Brasil BBC News Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização escrita da BBC News Brasil.
Compartilhar
TAGS
Publicidade
Publicidade