Justiceiros No dia 31 de janeiro de 2014, um grupo decidiu fazer (o que acreditava ser) justiça com as próprias mãos. Não foi necessário investigação, julgamento, direito a defesa nem provas. Eles prenderam um jovem que acusavam de ladrão a um poste. O grupo usou uma trava de bicicleta, que ficou à altura do pescoço do “sentenciado”. O suposto ladrão, ainda por cima, estava nu. Esse caso, ao invés de ser uma exceção, expôs uma série de ações cometidas por “justiceiros”, seja em grupo, seja isolados. Foram diversos casos - e muitos inocentes feridos e até mortos. A opinião pública, por outro lado, incendiou o debate sobre os casos - alguns criticando, outros até mesmo apoiando os “justiceiros”. O caso mais marcante é o linchamento de Fabiane Maria de Jesus, 33 anos. O assassinato - a pancadas - cometido pela massa, sem julgamento, ocorreu após um boato na internet. A polícia afirma que a história era falsa, e Fabiane nada tinha a ver com “sequestro de bebês para magia negra”. Veja a seguir outros casos de “justiceiros” que ocorreram no País nos últimos anos. 1 - O boato Crédito da foto: Facebook/Reprodução Tudo começou com um boato em maio de 2014. A página Guarujá Alerta, no Facebook, divulgou um retrato-falado de uma suposta sequestradora de crianças que usaria os jovens em rituais de magia negra. Um grupo, que viu semelhança na imagem com a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, decidiu perseguir a mulher. Fabiane foi amarrada, arrastada e agredida. O espancamento parou somente com a chegada da Polícia Militar. A vítima foi encaminhada a um hospital, mas morreu poucos dias depois. Mas era apenas um boato. Não havia uma sequestradora no Guarujá. A página chegou a esclarecer que um dia antes do linchamento que “até o momento não há nenhum registro de criança sequestrada na delegacia do Guarujá". O retrato-falado utilizado era de uma mulher procurada no Rio de Janeiro, mas a polícia afirma que não há semelhança com Fabiane. Valmir Dias Barbosa, afirmou ao ser preso por participar no crime, que mais de 100 pessoas participaram do linchamento. 2 - O adolescente e o poste Crédito da foto: Facebook/Reprodução Um dos casos mais conhecidos foi o de um adolescente preso nu a um poste pelo pescoço, com uma trava de bicicleta, no Rio de Janeiro. Ele perdeu parte de uma orelha. Os bombeiros usaram um maçarico para soltá-lo e o encaminharam a um hospital. Ele disse à polícia que cerca de 30 pessoas, em 15 motos, o cercaram. Pelo menos uma estava armada. No dia 12 de fevereiro de 2014, a polícia identificou dois suspeitos: João Victor Andrade de Moraes e Raphael Silva dos Santos Fernandes. Conforme a Polícia Civil, ambos têm antecedentes criminais por acusações como furto, ameaça, estupro e uso de drogas. Outros 14 jovens foram identificados, mas não foram reconhecidos pelo adolescente. Eles negaram participação e foram liberados após assinarem um termo circunstanciado. O adolescente, contudo, voltou a ser preso. Segundo a polícia, ele tentou assaltar dois turistas e acabou na delegacia no dia 18 de fevereiro. 3 - Em pleno Carnaval Renato Duarte Horácio, 16 anos, de Guarulhos, foi com a mãe e o irmão aproveitar o Carnaval 2014 em Gastão Vidigal, interior de São Paulo. Ele tirava fotos da festa quando dois homens, pai e avô de meninas que brincavam no local, acharam que o adolescente estava fotografando as crianças. Acusado pelos dois como pedófilo, Renato acabou na delegacia, mas o caso foi esclarecido e a polícia notou que era um engano. A história, contudo, já havia se espalhado. Fabrício Avelino de Almeida, 28 anos, que é irmão da vice-prefeita da cidade, decidiu punir o adolescente com as próprias mãos. Almeida foi à delegacia e, quando Renato saiu do prédio, correu atrás dele. O agressor teria dito: "É pedófilo? Então venha tirar a foto da minha filha, vem”. A família do adolescente e uma amiga tentaram impedir a agressão, mas não conseguiram segurar o “justiceiro”. Ele parou somente quando Renato começou a ter convulsões. O jovem morreu no hospital. O agressor foi preso em flagrante, mas foi colocado em liberdade no mesmo dia pelo juiz plantonista José Manoel Ferreira Filho, da Comarca de Votuporanga. 4 - Pênis decepado Francisco Souza de Castro, 66 anos, teve o pênis decepado, além de três dedos. Ele foi encontrado amarrado em uma estrada vicinal de Severínia, interior de São Paulo, em 5 de maio de 2014. O idoso foi levado a um hospital, mas os médicos não conseguiram fazer a religação do órgão sexual. Tudo começou quando uma menina de 3 anos, que foi levada pelos avós a uma fazenda onde o idoso trabalha como caseiro, relatou ter sido abusada por Castro. Segundo o delegado Marcelo Pupo de Paula, o Instituto Médico Legal (IML) não constatou rompimento do hímen vaginal, mas ficou constatado o crime de estupro de vulnerável pelo depoimento da criança e porque peritos constataram assadura na vulva. O caso, então, se dividiu por dois caminhos. De Paula vai investigar a agressão contra o caseiro. Segundo o delegado, o homem foi encontrado consciente e certamente viu quem era os justiceiros. A polícia suspeita que parentes da menina estariam envolvidos. Por outro lado, a Delegacia da Mulher de Severínia vai investigar o caso de estupro. A delegada Maria Tereza Vendaramel irá esperar o laudo do IML e ouvir os pais da vítima para levar o caso adiante. 5 - Execução à luz do dia Crédito da foto: Divulgação O vídeo é rápido. Mostra um rapaz sentado no chão, no meio da rua, enquanto outro está a sua frente e outro, por trás, segurando sua cabeça. Uma dupla chega de moto. Um deles desce do veículo, saca uma arma e dispara contra a cabeça do garoto sentado. A última imagem que aparece é da névoa de sangue que se forma no ar. A vítima seria Igor de Oliveira Falcão. O autor dos disparos, afirma a polícia, é Douglas Idael Pereira Ramos. Ele faria parte de uma quadrilha de justiceiros que atua em Belford Roxo (RJ), onde as imagens foram produzidas. Segundo a corporação, foram três tiros. Falcão foi “condenado” pelos justiceiros supostamente por ter feito assaltos. Os outros três participantes foram identificados pela polícia. O vídeo foi divulgado no início de fevereiro de 2014. 6 - Assalto e execução Crédito da foto: CATVE Em Curitiba, no dia 6 de maio de 2014, um suposto assaltante teria parado em um posto de combustível, poucos metros depois de efetuar um roubo a uma pessoa no viaduto do Guabirotuba. Ao presenciar a cena, um morador teria se aproximado do ladrão e fez julgamento e execução no próprio local. O homem teria dito que ali, no bairro, ninguém assaltava e fugia. Ele fez um disparo - contra a cabeça do assaltante - que morreu no local. Pouco depois, outra pessoa pegou a moto do morto e fugiu com o veículo. A polícia recebeu denúncia do assalto - mas não do assassinato. A investigação vai usar imagens de um vídeo gravado com telefone celular e que registrou parte da ação. 7 - Fuga Em maio de 2013, João Querino de Paula, 51 anos, correu a plenos pulmões por cerca de 1 quilômetro em Vila Velha (ES). O caminhoneiro, contudo, não conseguiu fugir de uma multidão enfurecida. Pedras o atingiram. Depois socos. Por fim, 15 facadas. O homem foi perseguido por atropelar e matar uma menina de 2 anos, que estava na rua, brincando. A polícia disse, baseada em depoimento de testemunhas, que o homem não teve culpa no acidente. “Às vezes, essa justiça se torna injustiça. Foi uma calamidade, uma coisa terrível. Acabou com a gente, acabou com a família toda, é uma coisa absurda”, afirmou Luiz Carlos Barbosa, cunhado do caminhoneiro. Segundo os moradores, a comunidade já pediu várias vezes providências para reduzir a velocidade dos caminhões que passam pelo local onde ocorreu o atropelamento. A prefeitura dissera não ter recebido nenhum pedido do tipo, mas que iria estudar mudanças. 8 - Acidente no baile funk Crédito da foto: Hermano Freitas/Terra Em novembro de 2011, o motorista de ônibus Edmilson da Silva passou mal e perdeu o controle do veículo que conduzia em São Paulo. O coletivo atingiu um furgão, dois carros e três motos antes de uma passageira puxar o freio de mão. No local do acidente ocorreria um baile funk e os frequentadores da festa, revoltados, perseguiram e agrediram o homem. Ele foi levado a um hospital, mas não resistiu aos ferimentos. O velório ocorreu poucos dias depois, quando o motorista faria 60 anos. "Eu só peço justiça, porque o meu marido ninguém traz de volta", disse a viúva Digeane da Silva Alves. 9 - Chibata Crédito da foto: Jornal Diário do Aço/Reprodução Por volta das 13h de 17 de abril de 2014, a polícia de Ipatinga (MG) recebeu uma ligação incomum. Segundo a denúncia, um homem estava amarrado a um poste, somente de cueca. Os policiais militares encontraram Josimar Dias de Sena, 18 anos, preso por um pedaço de pano e com ferimentos de chicote nas costas, pernas e braços. Ele foi levado a um hospital e liberado. O motivo: Sena teria feito roubos na região e um morador o teria agredido com um fio de energia. Uma terceira pessoa teria gravado o ocorrido, mas a polícia não conseguiu as imagens. Sena disse que não conhece o agressor - e nem diria quem é se o conhecesse, já que tem dívidas com o tráfico de drogas na região e temia ser morto. A Polícia Militar confirmou que o jovem já teve passagens na Justiça, mas por crimes contra o patrimônio. Como nenhum agressor - nem possível vítima do suposto ladrão - foi identificado, Sena foi caracterizado como vítima de agressões. 10 - Vítima de linchamento não é qualquer um Para a pesquisadora Ariadne Natal, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), que estudou casos de linchamento na Grande São Paulo entre 1980 e 2009, precisamos entender quem são as vítimas desses “julgamentos” de rua. Para ela, pessoas de maior poder aquisitivo, por exemplo, quase nunca são vítimas. No caso da mulher morta no Guarujá devido a um boato, a vítima teria um tipo de transtorno mental. “São pessoas cujas atitudes os outros têm dificuldades para compreender”, diz, em entrevista à Agência Brasil. “O linchamento é sempre um evento público com caráter de exemplaridade. Faz parte do processo de humilhar a vítima, expô-la sendo agredida. Como, hoje, há sempre alguém filmando, o que no passado ficaria restrito a um contexto local ganha uma maior dimensão. Essas imagens são fortes (...) A diferença no caso da Fabiane é que essas mesmas pessoas se comovem ao saber que uma pessoa inocente foi morta. Se ela de fato tivesse sequestrado uma criança, a reação seria diferente. E não deveria ser, pois estranho é o linchamento.” mais especiais de notícias