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'Igreja segue normas morais da antiguidade', diz padre excomungado

Padre Beto conta sua rotina após afastamento, diz que pretende lançar um livro e revela assédio de partidos políticos

5 mai 2013 - 11h56
(atualizado às 11h56)
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<p>Padre Beto retorna a choperia de Bauru, cenário de vídeo polêmico</p>
Padre Beto retorna a choperia de Bauru, cenário de vídeo polêmico
Foto: Talita Zaparolli / Especial para Terra

Para muitos fiéis, o real pecado de Roberto Francisco Daniel, o padre Beto, agora excomungado pela Igreja Católica, foi ter dito em voz alta o que muitos pensam, mas não ousam falar. A convite do Terra, padre Beto voltou à choperia em Bauru (SP) onde um de seus vídeos mais polêmicos foi gravado para um bate-papo.

No vídeo divulgado em seu site, o religioso opinava sobre temas como homossexualidade e infidelidade, e contestava a postura conservadora da Igreja. Dono de uma personalidade marcante, padre Beto já não esconde o que viveu dentro da instituição ao longo de 14 anos. Ele entende que pregava normas morais ultrapassadas, que, apesar do ocorrido, continua acreditando veementemente em Jesus Cristos. Também afirma que, embora a Igreja condene a homossexualidade, ela está impregnada entre os religiosos.

Durante quase três horas de entrevista, entre um chopp e outro, padre Beto era assediado por quem passava em frente à choperia. O celular, com pedidos de entrevistas, não parava de tocar. Ele revela que continuará morando em Bauru e atuando como professor universitário, e fala sobre pretensões políticas. Conta que tinha casamentos agendados até 2015, e seu afastamento gerou desespero em muitas noivas.

Nascido em uma família tradicional católica da cidade, Beto é formado em Radialismo, Direito, História e Teologia, e tem doutorado em Ética. O ex-sacerdote se dedica agora apenas às suas funções de radialista e cronista, e diz não receber salário da Igreja.

Excomunhão

Após um pedido público da diocese local para que ele se retratasse e retirasse da internet todos os vídeos que incomodavam os católicos mais conservadores, padre Beto anunciou o afastamento de suas funções. Ao comunicar oficialmente o bispo dom frei Caetano Ferrari, foi surpreendido e condenado à pena máxima da Igreja Católica: a excomunhão. O bispo alega que o padre traiu o compromisso com a Igreja, à qual jurou servir no dia de sua ordenação sacerdotal.

SP: padre que apoia gays anuncia afastamento da Igreja:

Padre Beto não pode mais realizar celebrações como batizados e casamentos em nome da Igreja, e fica impedido de receber qualquer tipo de sacramento. O caso agora tramita no Vaticano e virá da Santa Sé a decisão de acatar e confirmar a excomunhão aplicada pelo bispo local ou de revogá-la.

Confira como foi o bate-papo com padre Beto:

Padre declara apoio a gays e causa polêmica na Igreja:

Terra - O senhor se lembra do exato momento em que decidiu ser padre?

Beto -

Não me lembro. Foi um processo, vários fatores foram me ajudando. Primeiro a morte de uma pessoa muito querida na família que me fez refletir “poxa, um dia vou morrer”. E aí o que eu quero? Pode ser a qualquer momento. Qual o sentido da minha passagem neste mundo? Foi a morte da minha avó materna. Era uma pessoa que era cega, paralítica. Ela vivia numa cama, mas era uma pessoa de uma sabedoria incrível. E qualquer pessoa da família, da grande família, que estivesse com problemas, até vizinhos mesmo que quisessem algum aconselhamento, procuravam a avó Dolores. Ela tinha uma paciência muito grande, um bom senso incrível. A reflexão sobre a morte... Depois, no meu curso de História, fui muito influenciado do Marx, Karl Marx. Apesar da crítica à religião de Marx, que é uma crítica interessante, boa, não pode ser rejeitada para a própria religião. Mas Marx fala muito sobre o sujeito da história, o ser sujeito da história. Contribuir para a transformação e isso também foi me questionando muito. E a ligação com Deus. Sempre me tocou muito fundo. Com os retiros espirituais, eu me senti cada vez mais próximo dessa vocação, chamado para essa vocação. E aí, com 27 anos, eu entrei para o seminário.

Onde fica esse seminário?

Em Marília, na Faculdade João Paulo Segundo. Mas eu não cheguei a ir para lá, porque eu já tinha dois cursos superiores. A princípio gostaria de ter ser jesuíta. Mas quando eu estava propenso a ir para os jesuítas, o bispo de Bauru [dom Cândido Padim] estava para se tornar emérito, iria se aposentar. E estava chegando um bispo novo, que era jesuíta, dom Aloísio Leal Pena. Ele soube sobre a minha pessoa, como eu era atuante na Igreja, e ele me chamou pra conversar. Na conversa ele me propôs ser padre diocesano. E essa conversa me convenceu. Ele até brincou comigo dizendo: “Olha, se você decidir ser padre diocesano, como bispo, vou ficar muito feliz, como jesuíta, vou ficar frustrado. Se você decidir ser jesuíta, como jesuíta, vou ficar feliz e, como bispo, frustrado”. Aí, então, decidi ser diocesano, mas com uma condição: estudar em São Paulo ou em Belo Horizonte. Mas existe uma ética entre os bispos daqui, de mandar os seminaristas para Marília. Então, dom Aloísio pediu um tempo para pensar. Daí, ele me ofereceu uma bolsa de estudos para Roma. E eu acabei aceitando. Fiquei em Bauru, mesmo, para fazer adaptação de matérias, só, que eu precisaria para Filosofia, e estava propenso a ir para Roma, até comecei um curso de italiano. Nesse meio tempo, ele se encontrou, em Cochabamba, na Bolívia, no encontro latino-americano de jovens, com o bispo auxiliar de Munique, na Alemanha, e pediu para ele uma bolsa de estudos. E um mês depois veio a resposta positiva, e eu achei mais interessante a Alemanha, porque eu estudaria em uma universidade estadual, e não numa universidade da Igreja, é uma língua totalmente diferente e seria uma experiência totalmente diferente. Aí, eu estava embarcando em 1991 para um mundo totalmente desconhecido. Fui com a cara e a coragem, porque não falava nada de alemão.

O senhor conheceu o papa emérito Bento XVI lá?

Ele não era o Papa ainda. O Ratzinger foi cardeal de Munique, depois ele foi transferido para Roma por João Paulo II. Eu estava na diocese dele. Não só conheci ele, mas eu morei no seminário que ele morou, que era o Georgiano. É um seminário muito tradicional na Alemanha. Um dia, ele foi fazer uma visita e celebrou uma missa na Catedral de Munique. Eles pediram dois seminaristas para serem acólitos [conhecidos como coroinhas], e é claro que eu me ofereci. E, aí, nós nos conhecemos na sacristia. Ele é uma pessoa muito simples, muito humilde, uma pessoa que não tinha formalidade nenhuma. Tive uma boa impressão dele apesar de todo o conservadorismo.

Sua família também tem sido assediada pela imprensa?

Não, porque minha família é muito pequena. Meu pai já faleceu, minha mãe estava internada, porque quebrou o colo do fêmur, então ela ficou isolada de tudo isso. Meu irmão mora em Maceió, e, apesar de ter saído na imprensa de lá, ele não é conhecido lá como “irmão do padre Beto”. E meu único sobrinho mora na Itália, em Florença.

Em algum momento o senhor pensou em desistir, não se formar padre?

Eu tive várias oportunidades de não ser padre. Quando eu decidi ser padre, o dono do Liceu Noroeste me ofereceu a coordenação-geral, que era uma boa oportunidade. Eu estava terminando Direito. Com o curso de Direito, eu poderia ter prestado um concurso para juiz, promotor. Quando dom Aloísio me enviou para a Alemanha, ele estava enviando um seminarista. Ele foi muito criticado por isso. Na minha ordenação sacerdotal, ele disse isso publicamente. “Quando eu enviei o Beto para a Alemanha, eu fui muito criticado. Muitos disseram assim: ‘esse cara não vai ficar’." Foi o que aconteceu com um amigo indiano. Ele foi pra lá, se formou em Teologia e acabou se casando. Então, eu tive várias oportunidades de não ser padre, mas é minha vocação.

O bispo Ferrari afirmou à imprensa que tentou, por diversas vezes, conversar com o senhor por conta de algumas atitudes que não agradavam. Essas conversas aconteceram?

Não. Existiram, sim, mas não foram várias vezes. A primeira vez que nós conversamos, eu que tomei a iniciativa. Por quê? Porque eu fiquei sabendo que alguém ou um grupo de padres tinha ido a Franca [SP, diocese onde o bispo trabalhava] descrever a diocese [de Bauru] e tinha feito “a minha caveira” pra ele. Então ele já tinha chegado à diocese de Bauru com uma má impressão minha. Ele já tinha sido nomeado. Depois da posse dele, eu fiquei esperando ele me chamar. E ele não me chamou. Resolvi marcar uma conversa com ele e me apresentar, e fui. Ele foi receptivo. Depois disso, nós tivemos, nesses quatro anos, talvez umas duas conversas, no máximo.

O que a diocese dá a entender é que a sua atenção foi chamada algumas vezes.

De jeito nenhum. Isso não é verdade. Fazia muito tempo que eu não via dom Caetano.

Em qual ocasião ele chamou a sua atenção?

A última vez que ele chamou a minha atenção foi sobre uma discussão que eu tive no Facebook sobre a Campanha da Fraternidade, com o coordenador do Conselho de Leigos. Que foi uma discussão que surgiu de uma coisa muito infeliz. A Campanha da Fraternidade era sobre saúde e vida. Quando terminou a campanha, uma pessoa que trabalha na área da saúde postou no meu perfil: “eu gostaria de saber o que a Campanha da Fraternidade trouxe de concreto para a saúde”. Criticando a campanha. Eu achei a crítica conveniente, aí, eu curti, e pensei: "ela veio pra quê? Nós continuamos com um sistema de saúde ruim, faltando postos..." No dia seguinte, eu encontro uma carta enorme do presidente do Conselho dos Leigos me criticando por ter postado aquilo. Quer dizer, ele não entendeu que o post não era meu. Aí, eu vesti a camisa, mesmo o post não sendo meu. E, aí, ele [o bispo] me chamou para conversar sobre isso. Até disse para ele ficar tranquilo, que não teria mais discussões como essa, que ele poderia me esquecer, pois eu iria ficar “no meu canto”. Desde então não conversamos mais. Isso foi em agosto do ano passado.

Quando a polêmica ganhou corpo? Foi a partir do vídeo gravado nesta choperia?

Essa é a grande questão. Porque esse vídeo que eu gravei aqui foi feito em janeiro deste ano. Esse vídeo não foi colocado num grande portal, ele foi colocado num portal pequeno, modesto. Depois disso, eu coloquei vários outros vídeos no ar. Alguém pinçou esse vídeo e passou para pessoas conservadoras, de outras dioceses, movimentos conservadores. Alguém fez isso. E daí virou uma “bola de neve”. Alguém fez isso de má fé.

O senhor suspeita de alguém?

Eu tenho. Não é uma pessoa próxima a mim, graças a Deus. É alguém do clero, que pode ter feito isso intencionalmente.

O que esse vídeo tem que causou toda essa celeuma?

Nada que não seja óbvio e mesmo que não seja para muitas pessoas, são reflexões somente. O que o bispo me chamou, não só a questão da homossexualidade, mas do adultério. Porque eu falo claramente no vídeo que uma pessoa que for casada e tiver uma relação extraconjugal com outra pessoa, mas o seu cônjuge souber e tiver o consentimento, isso não é uma traição, isso não é infidelidade. Eu estou citando, na verdade, a Regina Navarro Lins. Se você ler o livro A cama na varanda, ela tem uma frase fantástica, eu acho. Ela diz assim, "um casal que vai a uma casa de swing e volta para casa junto é um casal extremamente fiel". A maior prova de fidelidade de um casal é essa. O casal sabe distinguir muito bem prazer sexual e compromisso, cumplicidade, companheirismo. E não é só na área sexual. Um casal pode trair o outro de outras formas. Por exemplo, se eu fosse casado e tivesse um dinheiro no banco junto com a minha esposa e emprestasse boa parte do nosso dinheiro para uma pessoa sem que ela consinta, eu estou sendo infiel com a minha esposa.

O senhor diz que não é infidelidade, mas é pecado na visão da Igreja? 

Claro. Por isso eu coloco no vídeo muito claro, que a postura da Igreja é essa. Mas nós temos que ver que “será que é pecado mesmo?” Será que é pecado uma pessoa ter uma relação sexual? O que é uma relação sexual? Uma relação sexual é uma necessidade biológica. Setenta e dois por cento dos casos de câncer de próstata é a inatividade sexual. É uma questão de saúde. O sexo é extremamente valorizado, mas não deveria ser. Ele é uma atividade biológica que todo mundo tem e que poderia ser vivenciada sem traumas, sem drama, sem trama, sem estratégia, sem mitificação. Nós mitificamos muito a genitália, e aí vem a noção de pecado. Isso veio do estoicismo. São Paulo tem influência histórica, e para o estoicismo a razão humana é o que nos faz ser gente, ser humano. O resto tem que ser disciplinado, domesticado e até eliminado. Por isso que Paulo toca nessas questões. O Cristo não fala nada sobre sexo, absolutamente nada, não toca nessa questão.

A homossexualidade está muito explícita hoje. O senhor acredita que essa questão, que foi tocada no vídeo, pesou mais?

Acho que sim. Um dia nós tivemos uma segunda conversa, quando ele [o bispo] falou sobre a questão dos leigos, o bispo me disse assim: “união homossexual nem pensar”. Respondi que ele poderia pensar assim, mas que estaria fechando os olhos para uma realidade, a Igreja vai ter que abrir para essa realidade uma hora ou outra. “Não, isso é inaceitável”, ele respondeu. Eles queriam que eu tirasse os vídeos da internet, principalmente o que tratava da sexualidade, e eu tratei da homossexualidade. A Igreja continua com normas morais da antiguidade. Isso é ir contra séculos da humanidade e ir contra o conhecimento humano.

A homossexualidade é uma realidade entre os padres? Existem padres homossexuais?

Claro que tem. Tenho muitos colegas padres homossexuais, e não são poucos, não. Não se fala abertamente. A gente acaba sabendo de histórias, de relações. E tem, é claro, o homossexual que é afeminado. Existe o homossexual não-afeminado e os que são afeminados, com traços mais femininos. É claro que tem heterossexuais que tem um jeito mais feminino, que foram criados assim. Mas é inegável que tem padres homossexuais que são afeminados.

Os bispos não enxergam isso ou não querem enxergar?

Não querem enxergar. Claro que eles sabem.

O senhor se sente um herege?

De jeito nenhum. Eu me sinto em sintonia com Deus de uma forma profunda.

O senhor continua acreditando em Deus?

Nossa! Totalmente.

O senhor tem algum contato com os movimentos LGBT?

Não tenho nenhum contato com eles. E tenho até algumas restrições. Por exemplo, no início, a parada da diversidade foi legítima. Hoje, ela virou um show e até denigre o homossexual. Nunca estive numa parada da diversidade, mas me disseram que o pessoal chega quase a transar em meio às pessoas. Então, isso denigre o homossexual. É como eu ver um casal heterossexual, aqui numa outra mesa, se amassando. Não é por aí. Eu não sou moralista, mas é uma coisa que incomoda. Vai para um motel e tenha relações amorosas à vontade. O Caetano [Veloso] disse uma coisa muito interessante, que ele admira muito o Ney Matogrosso, porque ele é uma pessoa que não deixa que as pessoas entrem na sua intimidade. Isso é verdade.

O que o senhor acha sobre as pessoas terem necessidade de saber sobre a sexualidade do outro?

Isso é problema de cada um, ninguém precisa saber. Eu aprendi isso na Alemanha. Aquele é um país muito interessante. Quando a Alemanha era nazista, a individualidade foi eliminada. O Estado nazista estava presente em todos os lugares. E o alemão, como indivíduo, ficou anulado. Hoje, nós temos uma Alemanha onde a individualidade é muito respeitada. Tanto é que lá você pode fazer nudismo tranquilamente. Existe um parque em Munique, tal qual o Central Park de Nova York, e lá existe a prática do nudismo. E é no centro da cidade. Eu também vou, tiro a roupa e fico lá lendo o meu livro. Lá eu posso fazer isso por quê? Porque passam pessoas que não estão nem aí com o meu corpo. Então não existe uma cultura erótica, entendeu? A pessoa está fazendo nudismo não porque ela quer mostrar o corpo, mas porque quer tomar sol.

Qual a vantagem do nudismo?

É uma sensação de liberdade muito grande. E você toma sol, é um bronzeado total. Eles não têm esse culto do corpo, todo mundo tira a roupa numa boa: crianças, jovens, adultos.

A Igreja Católica tem passado por recentes e frequentes denúncias de pedofilia. O senhor acredita que esses padres devem ser rigorosamente punidos, como o senhor foi?

Com certeza. O pedófilo é uma distorção sexual, porque tem prazer em ter sexo com a criança. Para ele a criança é um objeto, não é uma outra pessoa.

Mas esses não estão sendo punidos.

Estão sendo punidos pela justiça civil, mas não pela Igreja.

O senhor é a favor ou contra o volto de celibato?

Sou a favor do celibato opcional e até já comentei isso em homilia. Eu vejo vantagens no celibato, como também vejo vantagem em ter padres casados. Acho que as duas coisas deveriam existir. Como não se poderia generalizar com o celibato, também não se poderia generalizar com o casamento. As duas coisas são importantes. O celibato me dá uma vantagem de que eu tenho muito mais disponibilidade. Num velório de uma jovem de 22 anos que morreu caminhando na avenida Getúlio Vargas, por exemplo, eu fui sair de lá era umas 4h da manhã. A família estava desestruturada, e aí tem que ter alguém forte ali para “segurar as pontas”. Imagina se eu fosse casado e tivesse filhos? Depois de um dia todo de trabalho, eles iam querer atenção. É complicado, mas eu acho que tem padre que poderia estar bem casado.

Ao seu ver, o senhor infringiu nenhum dogma, doutrina ou norma moral da Igreja?

Não, nada. Fala-se muito em dogma, mas se você for pesquisar na internet quais são os dogmas da Igreja Católica eu não infringi nenhum. Eu apenas refleti sobre normas morais. Ponto final. 

Outros padres procuraram o senhor depois da decisão da diocese de excomungá-lo?

Não recebi nenhum contato depois da excomunhão. Até entendo, mas recrimino. Eu não teria essa atitude. Ou você é homem ou você não é. Eles têm uma fraqueza, a dependência financeira. Eles têm um medo danado de sofrer o que eu estou sofrendo. Pra mim não significa nada, porque eu não recebo salário da Igreja. O que eu recebia era espórtula. O que é espórtula? A cada missa celebrada eu recebo R$ 70. As coletas das minhas missas rendiam, em média, R$ 2 mil à Igreja. Um pároco ganha três salários mínimos, no mínimo, e livres. Têm plano de saúde, alimentação, casa, faxineira, casa, gasolina, telefone, tudo por conta da paróquia. Eu não, eu recebo das minhas aulas, tenho que cumprir horários. Pároco, não. Depois da missa que ele celebra, se ele não quiser fazer nada, ele não faz nada. Se ele quiser ficar o dia inteiro no Facebook, ele vai ficar o dia inteiro. Ninguém vai reclamar. Eu tenho que pagar imposto de renda, os outros impostos, tenho que fazer compras, o condomínio acabou de chegar, tenho que pagar meu carro, a gasolina. Tenho que pagar tudo.

Por que o senhor não tem essa mordomia?

Porque eu não quis ser pároco. Isso foi uma opção minha. Mas eu poderia ser vigário, que tem todos os benefícios, mas é subordinado ao pároco. Quem me tirou de ser vigário foi o bispo atual.

O senhor tem uma mágoa dele?

Não. Eu acho que “o santo não bateu”, mas isso porque fizeram “minha caveira” e ele já veio com um pé atrás. Em relação a dom Caetano, sobre a minha pessoa, eu acho que ele já veio com uma ideia formada e ficou. Ele resolveu se aliar a determinados padres da diocese que dariam apoio para ele e sossego ao invés de comprar minha briga. Tem certos padres que têm restrição à minha pessoa, talvez gostariam de ser tão livres como eu sou, e não são. Por exemplo, sentar numa choperia assim e tomar um chope normalmente com as pessoas. Então, eles não são tão livres como eu sou, e sentem inveja.

O senhor voltaria atrás em alguma declaração dada em seus vídeos?

Absolutamente nada. De jeito nenhum. Não retiro nada.

Dom Caetano declarou à imprensa que o senhor é como um “filho rebelde”.

Nunca me senti filho dele. Eu só tive um pai na vida, e esse pai foi muito homem. Sabe aquela pessoa que a palavra valia? Não precisava assinar papel. Ele tinha os princípios dele.

O senhor teve uma infância confortável?

Meu pai era mecanógrafo, ou seja, mecânico de máquinas de escrever e calcular. Então, até o momento em que a mecânica estava no auge, meu pai estava bem, era top. A infância eu tive confortável, mas isso eu não senti. Tipo pegar o carro e ir para o Paraguai, para Brasília. Naquela época, era uma aventura. Meus pais tiveram condições, e eu vivi isso na infância. Mas depois, quando chegou a eletrônica, meu pai começou a cair financeiramente, foi na minha adolescência. Quando chegou a computação, ele já estava se aposentando. Nesse período todo, nós passamos muita necessidade. Às vezes, nós queríamos comprar algo igual a que um colega tinha, mas não tinha como. Aos 10, 12 anos eu aprendi a comer o que tinha na mesa. Era jiló, era arroz com ovo, com carne moída. Era isso o que tinha para comer. Teve uma época que eu pintava muito, gostava de pintar. Meu pai até me levou para um ateliê de pintura, uma coisa inimaginável. Eu fiz aulas por algum tempo e, quando a situação financeira piorou, eu vendia os quadros para ajudar em casa. Eu vendi muitos quadros.

O senhor é contra a política assistencialista da Igreja Católica?

Sim. E não só assistencialista ao que ela chama de caridade, mas em relação aos seminaristas. Eu percebi isso na Alemanha. Hoje, num seminário do Brasil, o seminarista tem tudo. Aqui, você entra no seminário, você tem uma lavadeira que vai lavar a sua roupa. No almoço e na janta, você tem uma panela enorme de arroz, uma enorme de feijão, uma enorme de macarrão, uma carne que pode ser um frango, salada. E o seminarista faz o que? Ele tira o que ele quiser. Eu fui para a Alemanha e a primeira coisa que eu aprendi era onde estava a máquina de lavar e onde estava a tábua de passar. No almoço, tem as quantidades já separadas. Já ficava na mesa uma porção de salada, depois vinha uma sopa, uma carne para cada um, batata e um legume. E só. E depois um doce ou fruta para sobremesa. E acabou, não tem que repetir.

A história do senhor se assemelha à do filósofo e teólogo Giordano Bruno, que foi condenado à morte na fogueira pela inquisição romana.

Claro que se assemelha. Qualquer excomunhão se assemelha a Giordano Bruno. Eu fui condenado do quê? De pensar livremente. Essa foi minha desobediência. O que Giordano Bruno fazia? Pensava livremente. E hoje eu lembro como eu senti emoção quando eu estive na praça Campo de Fiori, em Roma, onde ele foi queimado vivo. E os italianos fizeram questão de, no meio da praça, construir um monumento de Giordano Bruno, onde ele foi queimado vivo. Ele foi uma pessoa que soube pensar e usou o pensamento de uma forma muito livre.

Se a Santa Sé reverter a excomunhão, o senhor aceitaria um pedido de desculpas?

Desde que a Igreja dissesse: “Volte que nós vamos te valorizar, te explorar”. Eu quero ser explorado pela Igreja. Sabe por quem eu estou sendo explorado? Pelas instituições de ensino privadas. Tudo bem, ótimo.

Como o senhor avalia as atitudes do deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP)?

É um absurdo. É uma aberração. Eu tento ser coerente pra caramba. Tento ver a realidade. O Feliciano é uma pessoa que tem uma visão fundamentalista. Ou se utiliza de uma visão fundamentalista. Não sei qual é a formação que ele teve. Eu ralei para ter um doutorado na Alemanha. Esse Feliciano eu nem sei o que ele fez, em termos de formação teológica, e ele já fica aí assumindo um cargo que seria defender os direitos humanos? É uma pessoa totalmente desumana. Porque ele é racista, homofóbico. Deve ver a mulher como sub-raça.

O senhor pretende contar sua história em livro?

Eu pretendo. Aliás, uma jornalista já sugeriu o título do livro, que é o título da carta que o bispo me deu, “Advertência e censura”. Hoje a editora Nobel me ligou, que é a editora onde eu tenho meus livros publicados, para que a gente possa fazer alguma coisa.

Com essa história toda, quem saiu perdendo? O senhor ou a Igreja Católica?

Quem perde é a Igreja Católica, e isso não só em Bauru. Porque, modéstia à parte, minha missa era uma das que mais arrebatava fiéis.

Hoje em dia, há uma pulverização de igrejas evangélicas. Isso demonstra a decadência da Igreja Católica? 

Com certeza. Porque as pessoas estão em busca de alguma coisa. Estão em busca de uma palavra, estão carentes. Eu acho que a tendência neste País seja o crescimento das pessoas que até acreditam em Deus, mas não frequentam uma religião, os não-praticantes. Vai chegar num momento em que o brasileiro vai cansar de ouvir “Jesus te ama”, “Jesus vai te salvar”, “Deus é fiel”, enfim.

O senhor pretende entrar para a política partidária? Já recebeu algum convite?

Já tive dois convites de filiação, um eu posso falar, que é o PTB, e o outro eu não posso falar, porque a direção do partido pediu sigilo. Eu tive também dois convites do Psol, que não foram convites de filiação, mas foram convites para eventos, e eu aceitei. Um foi do deputado federal Jean Wyllys (RJ). Dia 14, vai ter um congresso em Brasília sobre religião e homossexualidade, e eu estarei nesse congresso. E outro foi do Carlos Giannazi, que é deputado estadual. Ele quer organizar uma sessão de repúdio na Assembleia Legislativa pelo que aconteceu comigo.

O senhor tem proximidade com algum partido?

Dos partidos que estão aí, talvez os únicos sejam o Psol e o PV. Mais o Psol do que o PV. No momento, como estão as coisas, candidatura para prefeito ou vereador está descartado. Teria que ser ou deputado estadual ou federal.

O senhor aceitaria um convite para concorrer a um desses cargos?

Então, eu não sei. Por enquanto, eu não sei se eu me vejo como um deputado. Eu acho uma estrutura muito engessada. Eu me vejo como teólogo, como palestrante, como pessoa que provoca discussão, polêmica, que faz com que as pessoas pensem, reflitam. E um deputado não faz isso.

Ao decidir convocar a imprensa e anunciar seu afastamento da Igreja, o senhor conversou com alguém? Alguém influenciou nessa decisão? 

Eu conversei com duas pessoas que eu acho que tenho que dar satisfação: minha mãe e meu irmão. Meu irmão disse assim pra mim: “Beto, se você tomar essa decisão e voltar atrás, você vai me envergonhar”. Minha mãe falou assim: “Beto, eu não te criei para abaixar a cabeça”. Foram essas duas frases que bastaram. Minha mãe está revoltadíssima com o que aconteceu.

O senhor pretende criar uma nova Igreja?

Se eu criasse uma Igreja nova - que eu não vou criar -, eu criaria - já que eu fui banido por causa dessa questão da moral sexual -, eu criaria a Igreja do Orgasmo Divino. (Risos) “Venha para o workshop de Kamasutra.” (Risos)

Se hoje o senhor estivesse de frente com dom Caetano, o que diria?

Primeiro: "Nunca mais me chame de filho". Segundo: "Não faça mais papel de ridículo. O senhor está sendo ridículo no fim da vida. Isso é muito triste". Não ofenderia. Diria isso.

O senhor disse que teve uma vida comum como universitário, o senhor já teve relações com mulheres?

Você tem que perguntar pra mim como um aluno meu do Ensino Médio: "O senhor entrou virgem para o seminário?" Não entrei virgem para o seminário, claro. Tive várias relações sexuais com mulheres.

Chegou a namorar, pensar em casar?

Não, o meu namoro nunca chegou a passar de seis meses, um ano.

O senhor prega muito sobre o amor. O senhor já amou?

Eu acho que já amei umas duas ou três vezes. De querer bem, amor mesmo. Meninas que eu queria ter um projeto de vida.

Não deram certo? 

Apenas acabou, não foi pra frente.

E agora, deixando de ser padre, o senhor pensa em se relacionar novamente?

Não pretendo ter vida a dois. Como eu vejo a relação sexual como uma necessidade biológica, pode até ser que eu tenha relação sexual. Pretendo me manter no celibato. Se a excomunhão realmente acontecer, for definitiva, aí eu tô livre. Mas eu não pretendo ter uma vida a dois. Acho que não sirvo para isso. Aos 47 anos, não me sinto preparado para reaprender a viver a dois. Eu tenho uma vida muito boa sozinho. Até teria relações com alguém, mas ela no apartamento dela e eu no meu. Não gostaria de me vincular a alguém.

Qual foi o momento mais difícil para o senhor enquanto padre?

Foi um suicídio. O rapaz era esquizofrênico e ele cismou que havia um complô contra ele. Ele criou a imagem que a esposa, o psiquiatra e a psicóloga estavam armando um complô para controlá-lo. A única pessoa confiável para ele seria o padre. No caso eu, porque ele frequentava as minhas missas. E ele colecionada armas. Então ele se trancou dentro de um apartamento com duas pistolas carregadas e ameaçou se matar. O prédio foi cercado por policiais, Samu. E aí me chamaram. O único mediador, porta-voz que ele ouvia, era eu. Eu tive que ficar das 14h até as 3h tentando convencê-lo a não se matar. Eu tinha um colete à prova de balas. Ficava em frente a uma porta fechada tentando negociar. O prédio foi evacuado e num determinado momento o médico mandou parar de negociar, disse para nós esperarmos ele querer fazer isso [se render]. Ele chegou a abrir a porta e eu ia entrar, mas um policial não autorizou. Já de madrugada, quando estávamos no apartamento do lado, aguardando, até que ouvimos o disparo.

O senhor é fã de música?

Gosto de música clássica, de Bach. Johann Sebastian Bach eu gosto, mas eu curto rock. Steve Vai, que é um guitarrista que eu curto demais. Além deles, Martinália, Martinho da Vila, Ney Matogrosso. Adorei essa nova fase do Caetano [Veloso]. Raul Seixas: as letras, a postura dele, gosto muito de Raul. Até já me chamaram de satanista por curtir Raul. Também gosto de Legião Urbana, Casuarina. Estou com um CD do Ney Matogrosso no carro, Inclassificáveis, que é sensacional. Tem uma música que é quase o meu “hino nacional”, chama-se Sea, que é de um uruguaio, Drexler. A música diz para não ter nostalgia, porque a vida passa mesmo. É uma música deliciosa.

Como o senhor avalia a TV hoje?

A TV aberta é um grande desperdício. Ela poderia ter coisas muito melhores, mas tem coisas boas. O CQC eu sempre gostei. O dissidente do CQC, o Danilo Gentili, eu também gosto. Gosto do programa do Jô, da Marília Gabriela, o Roberto D’Ávila.

O senhor gosta de algum livro em especial?

A cama na varanda, da Regina Navarro Lins. Ela fala do poliamor, discute a história sexual humana.

Fonte: Especial para Terra
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