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Goiânia, 25 anos depois: 'perguntam até se brilhamos', diz vítima

13 set 2012 - 07h32
(atualizado às 17h04)
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Mirelle Irene
Direto de Goiânia

O tempo não foi um aliado das vítimas do césio 137. Após 25 anos do maior acidente radioativo do Brasil, as pessoas que tiveram contato direto ou indireto com a cápsula contaminada ainda sofrem. Vivem marcadas pela expectativa sempre presente de desenvolver doenças decorrentes à exposição ou pelo estigma perante à sociedade, nunca superado. "A gente sofre preconceito até hoje. As pessoas sempre perguntam se o fato de se estar perto de nós, ou se ao nos tocar, não estaríamos contaminando elas, se não é perigoso. Ou até mesmo se é verdade que nós brilhamos à noite. Perguntas desse tipo", afirmou Odesson Alves Ferreira, 57 anos, presidente da Associação das Vítimas do Césio 137.

Odesson Alves Ferreira, 57 anos, teve um dedo amputado após o acidente
Odesson Alves Ferreira, 57 anos, teve um dedo amputado após o acidente
Foto: Mirelle Irene / Especial para Terra

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Por causa disso, quem foi exposto ao material ou teve contato com contaminados prefere não falar sobre o assunto. "Quando vão ao hospital, por exemplo, muitas, ao invés de contar suas histórias, se calam, porque têm medo de falar", disse o presidente da associação.

Odesson disse que teve cerca de 50 pessoas da sua família envolvidas direta ou indiretamente no acidente. Ele é irmão de Devair Ferreira, dono do ferro-velho onde a cápsula foi aberta. No ano do acidente, Devair perdeu a cunhada Maria Gabriela e a sobrinha Leide, filha de outro irmão, Ivo Ferreira. Todos em decorrência da contaminação radioativa. Ele próprio teve sequelas nas mãos, ao manusear fragmentos de césio durante uma visita à casa de Devair. Ficou três meses confinado com outras vítimas para tratamento. Teve um dedo amputado na mão direita e um outro dedo atrofiado na mão esquerda. Seus dois filhos, com 12 e 14 anos na época, também foram afetados pela radiação.

Caminhoneiro e motorista de ônibus aposentado aos 32 anos por causa das sequelas nas mãos, Odesson diz que o preconceito o impediu de voltar a trabalhar. "Quando voltei na empresa que trabalhava, para tentar ocupar outra função, o médico da empresa não quis nem pegar o documento do INSS que eu levava. Aí eu percebi que a coisa era grave", disse. Odesson lembra que, antes do acidente, era fã de filme de ficção científica. "Mas jamais achei que aconteceria comigo. E não foi ficção, foi uma dura realidade."

Problemas psicológicos

Odesson acredita que o acidente provocou um problema social por ter afetado psicologicamente as vítimas. Para ele, muitas delas, mesmo que não tenham falecido de doenças diretamente relacionadas à exposição ao césio, acabaram consumidas pela tragédia. "Nós não podemos fazer nexo causal, porque, infelizmente a ciência não nos garante isso. No atestado de óbito do Devair, por exemplo, consta como causa da morte cirrose hepática. Mas o que levou ele a beber quatro garrafas de cachaça por dia? Ele mesmo dizia que tinha provocado o acidente, se sentia culpado por aquilo. Ele se suicidou. Temos outras vítimas que tentaram suicídio, mais de duas vezes", relatou. Odesson lembrou também do outro irmão: "O Ivo morreu de efizema pulmonar, mas algo o levou a fumar seis maços de cigarro por dia. Ele se sentia culpado por levar fragmentos do césio e entregar para a filha", afirmou.

O presidente da associação disse que a dificuldade de comprovar mortes ou doenças em decorrência da contaminação agrava a situação das vítimas. Mas, para ele, não há como ignorar a herança do césio. "Um dos indícios é a ocorrência de cinco ou seis doenças ao mesmo tempo, ou desencadeamento de doenças precoces. Dentro do grupo tem gente que desenvolve osteosporose e pressão alta com 20 anos. Isso não é normal", apontou.

A associação que Odesson comanda foi criada em 13 de dezembro de 1987, por moradores da rua 57, onde a cápsula de césio 137 começou a ser desmontada. "O pessoal vinha e tirava mesas, cadeiras e outros móveis da casa deles e jogavam fora e eles não conseguiam ter acesso às autoridades para serem ressarcidas. A saída foi criar uma instituição para ter força jurídica", disse.

Hoje, a associação tem 1.194 inscritos, aceitos sob alguns critérios, como comprovação de que foi vítima direta ou indireta do acidente, ou ter morado em uma das localidades afetadas, ou, ainda, ser descendente de vítima direta. Mesmo sem ter sede própria, a associação provê assistência jurídica e outros serviços aos afetados. "Nosso maior desafio é garantir a assistência integral. Eu já nem luto por indenização, mas se a associação decidir, vamos lutar por isso também", destacou. Segundo ele, só os parentes das quatro pessoas que morreram comprovadamente por contaminação direta com o césio receberam indenização do Estado. "No caso do meu irmão Ivo, deu para ele comprar na época uma carroça e uma égua", disse. Nos cálculos da associação, 960 pessoas ainda tentam receber indenização nos últimos 25 anos. "Isso em um universo de 1.600 que foram afetadas direta ou indiretamente", contou.

Odesson, atualmente, dá palestras pelo Brasil sobre o acidente radiológico de Goiânia, mas acredita que há muito despreparo ainda sobre o tema. "O Brasil não está preparado para outro acidente, a Cnem (Comissão Nacional de Energia Nuclear) nunca fez outro treinamento e nem oficina para discutir o que foi feito em Goiânia. Muitos técnicos que atuaram na época já se aposentaram. Tudo está caindo no esquecimento", lamenta. Por fim, questionado de quem seria a culpa do acidente, Odesson culpa a negligência dos donos do IGR, a clínica onde a cápsula foi abandonada, a vigilância sanitária e o Cnem. "Quem foi o mais culpado eu não sei, mas eu condenaria os três."

Os detalhes da tragédia

No dia 13 de setembro de 1987, no Centro de Goiânia, dois catadores de lixo descobrem um aparelho de radioterapia abandonado. Com a intenção de vender o metal, a dupla leva até um ferro-velho localizado na rua 57 do Setor Aeroporto. O dono do estabelecimento, Devair Alves Ferreira, compra o material e, naquele noite, abre a cápsula e encontra um pó que emitia um brilho azul. Maravilhado com a coloração, ele leva para dentro de casa e mostra para a cunhada, Maria Gabriela Ferreira, e para o restante da família. Sem ter noção do que tinha nas mãos, ele passou dias mostrando para amigos, vizinhos e parentes, o seu achado. Alguns até levaram porções do pó para casa, como o seu irmão Ivo. Nesse meio tempo, Devair e sua família começam a apresentar os sintomas da radiação, como tonturas, náuseas e vômitos.

Alertada por vizinhos, a cunhada de Devair desconfiou que os problemas de saúde tinham origem na cápsula. De ônibus, ela levou o material até a Vigilância Sanitária. Os doentes, que já apresentavam queimaduras, eram tratados no Hospital de Doenças Tropicais. Somente no dia 29 de setembro foi constatado que o produto levado por Maria Gabriela era radioativo e se tratava do césio 137, uma substância que não existe na natureza e é resultado da queima do Urânio 235 dentro de um reator nuclear.

A Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) foi acionada. O pânico se espalhou por Goiânia. A Cnen monitorou os níveis de radioatividade de mais de 110 mil pessoas, no Estádio Olímpico. Encontrou radiação em 271 delas, sendo que 120 tinham rastros em roupas.

No dia 1º de outubro daquele ano, 14 pessoas, em estado grave, foram levadas para o Hospital Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. Poucas semanas depois, quatro delas morreram. A primeira foi Leide das Neves Ferreira, 6 anos, a sobrinha do dono do ferro-velho e que se tornou o maior símbolo da tragédia. No mesmo dia, Maria Gabriela Ferreira, 37 anos, perdia a vida também. Morreram ainda outros dois jovens, Israel Batista dos Santos, 22 anos, e Admilson Alves de Souza, 18 anos. Os quatro foram os únicos mortos segundo dados oficiais. A Associação das Vítimas do Césio 137, no entanto, aponta que nesses 25 anos 104 pessoas tenham morrido e cerca 1,6 mil tenham sido afetadas de forma direta.

Os responsáveis pela tragédia foram condenados por homicídio culposo, ou seja, sem intenção de matar e cumpriram penas brandas. Em fevereiro de 1996, quase dez anos depois do acidente, os médicos Carlos Bezerril, Criseide Castro Dourado e Orlando Alves Teixeira e o físico hospitalar Flamarion Barbosa Goulart foram senteciados a três anos e dois meses de prisão em regime aberto. Os médicos e o físico tiveram que prestar serviços à comunidade.

A decisão foi do Tribunal Regional Federal de Brasília, que modificou as penas impostas pela Justiça de Goiânia. Em 1992, todos os envolvidos tinham recebido penas mais brandas, mas um recurso impetrado junto ao TRF alterou toda a situação.

Sócios na Clínica de Radiologia de Goiânia, Carlos, Criseide e Orlando foram considerados os principais responsáveis pelo acidente. Eles deixaram, na sede da clínica, uma bomba radioativa. Com a retirada de telhas, portas e janelas, o prédio ficou desprotegido e a bomba acabou chamando a atenção de catadores.

O ferro-velho e outras residências da região foram destruídas, assim como os pertences das famílias envolvidas, gerando toneladas de rejeitos radioativos. Um depósito foi construído em Abadia de Goiás, cidade ao lado de Goiânia. Em 1987, quando os rejeitos foram levados para lá, Abadia de Goiás ainda não era um município.

Fonte: Especial para Terra
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