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E se Rachel Dolezal fosse brasileira?

18 jun 2015 - 18h11
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João Fellet - @joaofellet

Da BBC Brasil em Washington

Militantes e acadêmicos dizem que diferenças entre Brasil e EUA em temas raciais dariam outro rumo para caso de ativista americana acusada de 'se passar por negra'

Acusada de tentar "se passar por negra", a ativista americana Rachel Dolezal tem protagonizado um acirrado debate sobre raça e identidade nos Estados Unidos.

Mas e se ela fosse brasileira e o episódio tivesse ocorrido no Brasil?

A BBC Brasil fez a pergunta a militantes do movimento negro brasileiro e a acadêmicos que estudam as relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos.

Todos os entrevistados avaliam que o caso teria outros contornos no Brasil. Mas pesquisadores apontam que, outrora radicalmente distintas, as percepções sobre raça nas duas nações estão se aproximando à medida que os americanos se tornam mais miscigenados e que os negros brasileiros buscam nos Estados Unidos inspiração em sua luta por visibilidade e políticas públicas.

"Transracial"

Dolezal deixou na segunda-feira a presidência do escritório da NAACP (uma das maiores organizações do movimento negro americano) em Spokane, no Estado de Washington, após seus pais afirmarem em entrevista que ela é branca.

Dolezal tem quatro irmãos adotivos negros, foi casada com um negro e estudou em uma universidade de ampla maioria negra. Na terça-feira, ela disse se identificar como "negra" e "transracial".

Para muitos, Dolezal agiu como impostora e oportunista, quebrando a confiança de quem ela dizia representar. Outros ─ entre os quais a atriz Whoopy Goldberg e o ex-jogador de basquete Kareem Abdul-Jabbar, ambos negros ─ elogiaram Dolezal por sua militância em favor dos afro-americanos e defenderam sua decisão de se identificar como negra.

Ativista americana Rachel Dolezal tem protagonizado um acirrado debate sobre raça e identidade nos Estados Unidos

Fenótipo X genótipo

Douglar Belchior, professor e militante do movimento negro brasileiro, diz que Dolezal dificilmente seria considerada negra no Brasil por causa de seu "fenótipo" (traços físicos).

Nos Estados Unidos, apesar de sua pele clara e olhos azuis, ela pôde se identificar como negra porque muitos ainda seguem padrões dos tempos da segregação oficial. Segundo a "regra da uma gota", que vigorava naquela época, um único antepassado africano ─ não importa o quão distante ─ já basta para que uma pessoa seja considerada negra. A regra buscava criar uma rígida hierarquia racial, com barreiras legais e informais à ascensão dos negros.

Já no Brasil, diz Belchior, o que torna alguém negro são suas características corporais, "independentemente da origem ou ancestralidade".

"O que determina o sujeito ser vítima do racismo no Brasil é trazer marcas físicas ─ e quanto mais marcas físicas africanas traz no corpo, mais ele sofre."

Como não seria vista como negra, Belchior diz que Dolezal não teria espaço na cúpula do movimento negro brasileiro ─ logo, contestações à sua identidade não teriam grande repercussão no país.

A militante negra e estudante de arquitetura Stephanie Ribeiro descreve sua experiência pessoal ao argumentar que, no Brasil, a aparência pesa mais que o DNA na classificação racial. Ribeiro diz ter uma avó "branca de olho azul" que emigrou da Itália, mas que isso não a livra de ser discriminada.

"Quando estou na rua e alguém me xinga ou fala do meu cabelo, ninguém pede a minha árvore genealógica".

Em maio, Ribeiro liderou um movimento nas redes sociais que fez a companhia teatral Os Fofos Encenam suspender a apresentação de uma peça em São Paulo em que um ator aparecia com o rosto pintado de preto. Segundo ela, a peça fazia uso do "blackface", técnica historicamente usada para ridicularizar negros e considera racista pelo movimento negro.

Para Ribeiro, Dolezal falhou ao buscar um "protagonismo" na luta dos americanos negros. Segundo ela, a americana e brasileiros brancos podem apoiar as bandeiras negras, mas a liderança do movimento deverá ser sempre dos negros.

O pesquisador Vinicius Guilherme Rodrigues Vieira, que leciona Relações Internacionais na FGV-SP e é coeditor de um livro que compara as relações raciais nos EUA e Brasil, cita ainda a influência do Estado na construção da identidade negra no Brasil.

"Os militantes costumam dizer que, no Brasil, quem decide se alguém é negro é a polícia."

Ícones negros

A crítica à violência policial contra negros é um dos principais pontos de conexão entre os movimentos negros no Brasil e nos Estados Unidos.

Douglas Belchior diz que líderes negros americanos ─ entre os quais Martin Luther King (1929-1968) e Malcom X (1925-1965) ─ são "um espelho" para militantes brasileiros e fizeram com que afro-americanos se tornassem ícones na "rebeldia, artes, cultura, poesia e música" nos Estados Unidos.

"(Comparado à) maneira como os Estados Unidos tratam a história da resistência negra, a resistência à escravidão, a produção artística e cinematográfica, o Brasil ainda deixa muito a desejar."

Para o DJ Boima Tucker, que cresceu nos Estados Unidos e mora no Rio de Janeiro, o Brasil vive um "despertar da identidade negra". O fenômeno, que segundo Tucker talvez reflita influências americanas, se expressa por exemplo no crescente número de pessoas com cabelos "afro" em bailes de charme no Rio, ele diz.

"O Brasil está no meio de uma transição."

Segundo ele, se o caso Dolezal fosse transposto para o Brasil, a ativista também seria criticada por militantes negros brasileiros, mas talvez não com a mesma intensidade.

Filho de uma americana branca e um serra-leonês negro, Tucker se identifica nos Estados Unidos como "negro", decisão que ele atribui a "questões de solidariedade".

Ele diz que definir sua raça no Brasil "é mais complicado".

"Sou primeiro um 'gringo' (risos), porque aqui a nacionalidade se sobrepõe à raça, mas me sinto parte da diáspora africana e tenho uma conexão especial com brasileiros que também fazem parte dela."

Tucker diz que, enquanto no Brasil traços culturais africanos foram incorporados e apropriados por brasileiros de todas as raças, nos Estados Unidos negros e brancos "têm culturas separadas".

Ele se espantou ao ver que um prato africano que comia na garagem de sua casa nos Estados Unidos, o acarajé, era não só servido nas ruas brasileiras como considerado parte da culinária nacional. "Você não vê esse tipo de coisa nos Estados Unidos."

Caminhos convergentes?

Embora tradicionalmente brasileiros e americanos encarem o tema racial de forma muito distinta, pesquisadores apontam que processos em curso nos dois países têm aproximado as duas perspectivas.

Professor de Sociologia da Universidade da Califórnia em Santa Barbara e autor de "Raça e Multirracialidade no Brasil e nos Estados Unidos: caminhos convergentes?", Reginald Daniel diz que mudanças demográficas nos Estados Unidos geradas pela imigração e por casamentos multirraciais têm tornado as definições raciais menos rígidas no país. Segundo o Censo americano, essas transformações farão com que, em 2044, brancos não-hispânicos se tornem minoria nos Estados Unidos.

Desde 2000, o Censo americano permite que as pessoas selecionem mais de uma raça em seus formulários (as categorias atuais são "negro", "índio americano/nativo do Alaska", "asiático" e "havaiano nativo/outro ilhéu do Pacífico"; os termos "latino" e "hispânico" são tratados como "etnias" e não entram no questionário racial).

"Vai ficar cada fez mais difícil definir o que as pessoas são conforme elas abraçarem três, quatro raças diferentes", diz Daniel. "Está se criando uma dinâmica racial mais fluida, que por muito tempo foi tida como uma característica brasileira."

Paralelamente, segundo o professor, os brasileiros vêm adotando padrões raciais mais rígidos, apesar da intensa miscigenação que houve na formação do país.

O professor cita uma definição do ensaísta Afrânio Coutinho (1911-2000) sobre essa característica da população nacional. "Ele dizia que, no Brasil, todos são claramente mulatos ou mulatos claros".

A mistura, segundo o professor, alimentou por várias décadas o mito de que o Brasil era uma "democracia racial", onde as diferenças sociais derivariam de questões de classe, e não de raça.

O professor diz, porém, que essa percepção foi desafiada conforme negros brasileiros "passaram a enfatizar a divisão binária entre brancos e negros para despertar a consciência e mobilizar a oposição contra a discriminação racial".

Como os ativistas americanos, eles passaram a pressionar o governo pela adoção de cotas nas universidades e de outras políticas que compensassem a discriminação histórica. E para ampliar sua visibilidade e fortalecer seus pleitos, diz ele, o grupo passou a identificar como negros não só os brasileiros que se classificam como "pretos" nos formulários oficiais, mas também os que se dizem "pardos".

O termo, que não é definido pelo governo, é descrito no dicionário Aulete como a "cor fosca entre o branco e o preto, ou entre o amarelo e o marrom", ou ainda como "pessoa mulata". Na Pnad de 2013, 45% dos brasileiros se disseram "pardos", 46,2%, "brancos", 8%, "pretos", 0,5%, "amarelos" e 0,3% "indígenas".

Considerando "pretos" e "pardos" como "negros", tem-se que o grupo compõe a maioria da população brasileira (53%).

Pretos e pardos

Pretos e pardos são maioria da população, segundo o IBGE

Embora avalie que o movimento negro tenha se fortalecido politicamente ao englobar os "pardos" em sua classificação ─ que passou a ser adotada inclusive por órgãos do governo ─, Daniel diz que a decisão dá ao sistema racial brasileiro uma rigidez que não lhe é natural.

Ele afirma ainda considerar "problemática" a disseminação pelo movimento negro brasileiro do termo "afrodescendente". "Se passam a usar o termo e a considerar como negros quem tem africanos em sua genealogia, quase todos os brancos brasileiros também passam a pertencer à categoria."

Para Vinicius Guilherme Rodrigues Vieira, da FGV, as políticas de ação afirmativa poderão fazer com que, "talvez daqui a uns anos, não tenhamos mais a distinção entre pretos e pardos no Brasil".

Com a consolidação das políticas de cotas para negros, diz Vieira, pode-se estimular "que pretos e pardos convirjam para essa categoria." Ele diz que, do ponto de vista do movimento negro, a transformação "pode ser muito positiva e criar mais canais de ascensão".

Por outro lado, Vieira afirma que há riscos de que pessoas hoje tidas como pardas e que não se enquadram em políticas compensatórias passem a ocupar espaços de candidatos de pele mais escura, que por serem mais discriminados deveriam ser os principais alvos dessas ações.

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