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Um mês após tragédia, feridas continuam abertas em Angra

31 jan 2010 - 09h13
(atualizado às 11h50)
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Luís Bulcão Pinheiro
Direto de Angra dos Reis

As vozes da conversa animada vinda de uma roda de 20 pessoas reunidas em um trapiche é o único som a quebrar o silêncio do fim de tarde na Enseada do Bananal, em Angra dos Reis. Os turistas do grupo formado por famílias de São Paulo são os únicos visitantes remanescentes na praia onde ocorreram 32 das 53 mortes causadas pelos deslizamentos de terra que devastaram a região na madrugada do primeiro dia de 2010.

Deslizamentos que ocasionaram a morte de 53 pessoas completam um mês
Deslizamentos que ocasionaram a morte de 53 pessoas completam um mês
Foto: Luis Pinheiro / Especial para Terra

A 35 metros dali, as luzes dos fundos da pousada Satiko se acendem. A família de Renato Hadama se prepara para passar mais uma noite envolta em dúvidas. Fora o refeitório quebrado pelas equipes de resgate do Corpo de Bombeiros e da Defesa Civil que usaram o local como base para a busca de sobreviventes e de corpos, a pousada está intacta. Porém, ao lado da casa, a praia está tomada por enormes pedras e montes de barro misturados com o entulho das casas varridas pela corrente de lama que desceu o morro no dia da enxurrada.

A Satiko é vizinha da área da tragédia e seus donos não sabem se vão poder reabrir as portas. Não sabem se vão poder continuar morando ali e não sabem sequer se poderiam estar no local hoje. "O que mais queremos agora é saber se a gente vai poder trabalhar aqui ou não", disse Hadama. "Para nós, o verão está perdido. Agora só pensamos no futuro. Queremos saber se vai dar para continuar tocando a vida por aqui".

Todos se conhecem na pequena comunidade do Bananal. Entre as vítimas, estavam 12 moradores. O único corpo ainda não encontrado é o de Roseli de Brito. Desde o dia 27, os bombeiros não foram mais vistos no local para dar seguimento às buscas. "A Roseli brincava dizendo que quando morresse ninguém ia achar ela. Foi o que aconteceu", conta Jonatan Silva.

Na momento da tragédia, Jonatan, 19 anos, estava na Pousada do Preto, localizada no centro da praia. Tinha acabado de sair de um bar onde conversava com amigos e os irmãos Leonardo e Leandro. Quando começou a ouvir gritos e pedidos de socorro vindos das casas vizinhas, pegou uma lancha e foi ajudar. Conseguiu trazer 30 pessoas que estavam na pousada Sankay - localizada na ponta da praia, onde três pessoas, entre elas a filha dos donos da pousada, Yumi Faraci, morreram.

Leonardo e Leandro não estavam entre os que se salvaram. Seus corpos foram retirados da lama pelos bombeiros nos dias seguintes. Com Roseli, os irmãos faziam parte da família que perdeu oito pessoas na tragédia. Apenas o tio, conhecido como Batista, foi resgatado com vida. Está em um hospital em Niterói (RJ). Segundo Jonatan e seu amigo Paulo Ricardo, que o visitam com frequência, ele tem dificuldades para caminhar e ainda não pode deixar o hospital.

Jonatan, que mora e trabalha no Bananal, prefere olhar para frente. Ele diz que a vida tem que seguir. Sobre os escombros, ele mostra o estrago causado pela força da natureza. Mas afirma que espera ver o lugar limpo novamente. Bonito como sempre foi.

O futuro de Angra
A Enseada do Bananal, assim como toda a Ilha Grande, depende essencialmente do turismo. Além das famílias que gerenciam as pousadas, todas descendentes de japoneses, muitos dos moradores trabalham nas hospedagens ou em barcos que fazem o traslado para o continente. Das seis pousadas, apenas a Sankay confirmou que não vai voltar a funcionar.

A Satiko ainda aguarda liberação. As demais, Pousada do Preto, Casa Nova, Três Coqueiros e Okinawa estão funcionando desde o dia 21. No entanto, apenas a Pousada do Preto recebeu hóspedes após a tragédia. Em um gesto de apoio, o grupo de 20 turistas paulistas chegou na manhã do dia 22 de janeiro. Três dias depois, chegou um grupo de 40 pessoas vindas de Brasília. Antes de ir embora, no dia 28, eles formaram um grande círculo em frente à pousada e fizeram uma oração em homenagem às vítimas.

"Os turistas podem vir. Está tudo funcionando normalmente", afirma Kioshi Nakamashi, o Preto. "A pousada não corre risco". Com os quartos vazios, as demais hospedagens sofrem com a falta de perspectiva. Estavam todos de casa cheia na virada do ano. Após a tragédia, os hóspedes tiveram que ir embora e as demais reservas foram canceladas.

Ninguém confirmou presença mesmo após o fim da interdição. "Tenho até medo de atender o telefone. Pode ser mais um cliente cancelando. Já não temos ninguém para o Carnaval. Pode ser que não tenhamos ninguém para a Semana Santa", afirma Patrícia Hadama, dona da pousada Três Coqueiros, que fica do lado oposto ao deslizamento.

"É uma pena que esteja assim", diz Cláudio Uehara da sala vazia de sua pousada, a Okinawa. "A mídia veio aqui. Só mostrou a tragédia. Mas isso foi apenas uma pequena parte da praia. Deste lado continua sendo o paraíso que sempre foi. E agora, como nós ficamos?"

Os pousadeiros também têm dúvidas sobre o tipo de ajuda que virá para que eles possam superar as perdas deste ano. Até agora, lhes foi oferecida a possibilidade de fazer empréstimos. "Gostaríamos de ter o IPTU abatido. Não sabemos como vai ficar. Ainda não tivemos confirmação sobre isso", disse Sigueko Hadama, da pousada Casa Nova.

Uma das pioneiras da comunidade de descendentes japoneses que colonizou o Bananal, Fomiko Hadama mostra a foto de seu neto. Ela o criou desde a infância. Wellington Hadama, 24 anos, morreu no deslizamento. Ele estava acompanhado de amigos na parte do morro que desabou.

Abraçando a esposa, Paulo Hadama olha para a praia vazia: "Se estivesse tudo normal, essa praia aí estaria cheia de gente nas areias, na água, jogando bola, brincando. O que nós precisamos para poder retomar a vida é que eles voltem. Olha que lindo é este lugar".

Angra, um paraíso ferido
A noite cai. A lua cheia ilumina a água límpida e calma que banha a enseada. Há exatamente um mês, a mesma lua cheia se escondeu atrás das pesadas nuvens que, em apenas 12 horas, descarregaram 142 mm de água sobre Angra, o esperado para um mês inteiro. Angra é um paraíso ferido. Em diversas ilhas e na cidade, rasgões nas encostas expõem a brutalidade da tragédia. Ao todo, 53 pessoas morreram. Pelo menos 14 eram crianças. Segundo a Defesa Civil do município, mais de quatro mil pessoas continuam desalojadas, em casas de amigos ou de parentes.

Ao amanhecer, o barco Sankay I aponta a proa para o Cais da Santa Luzia, no centro de Angra. Os marinheiros Jaime Lima e Marco de Carvalho conduzem a embarcação para uma de suas últimas viagens entre o Bananal e o continente. Juntamente a outros 14 empregados da pousada Sankay, eles cumprem o último dia de aviso prévio. Nos 30 primeiros dias do ano, eles ajudaram na desinstalação da hospedagem, que não voltará a abrir. O barco também vai parar. O último serviço foi levar um cortejo até a Ponta Grossa, na Ilha Grande, onde as cinzas da filha dos donos da pousada, Yumi Faraci, que morreu na tragédia, foram jogadas no mar no último sábado.

"Isso aí era para estar cheio", lamenta Jaime manejando o leme ao se aproximar do porto. "Nessa época do ano, é difícil fazer a aproximação. Temos que desviar das lanchas e dos barcos que saem a todo o momento. Agora não tem ninguém, está vazio".

A cidade inteira padece com o baixo número de turistas. Sem o movimento intenso do verão, taxistas ficam parados nos pontos, não fazem nem perto do número de corridas que fariam em um janeiro normal. Lojistas estão com as vendas baixas. Donos de pousadas e hotéis reclamam de cancelamento de reservas e da falta de hóspedes.

Todos os serviços funcionam em Angra. No entanto, a meta da prefeitura, que calcula uma entrada de recursos na economia local trazida por turistas de R$ 2,9 milhões por dia, certamente ficará abalada. Segundo a Turisangra, fundação de turismo ligada à prefeitura, ainda não foram feitos cálculos de quanto o município já perdeu com a queda no movimento após o Ano-Novo.

"Nem falamos mais em tragédia", diz Beto Carmona, da Turisangra. "Agora só pensamos no futuro. Angra continua pronta e recebendo turistas".

A reconstrução
Apesar dos esforços, a encosta coberta pelos destroços no Morro da Carioca, onde 21 pessoas morreram, ainda paira sobre o centro de Angra. De uma hora para a outra, a casa de Diego Theodoro da Conceição, 22 anos, virou a mais alta do morro. As que estavam acima e ao lado da dele ou foram carregadas pela enxurrada ou foram demolidas.

Hoje a única a habitar a casa é a cadela da família. Diego vai lá todos os dias. Dá alimento e atenção. Também fica de olho na casa. Ele conta que logo após os deslizamentos houve ocorrências de saque. Diego e sua família aguardam uma solução dos órgãos públicos para poder começar a reconstrução. As telhas estão quebradas e o piso está danificado. Do alto da laje, com vista panorâmica para a cidade, ele lembra os momentos da tragédia.

"Era meia noite e meia. Fui buscar minha namorada, que fica para o lado do outro morro. Ao descer, já tive que desviar o caminho. As escadarias estavam cobertas de lama. Quando retornei, o pessoal da defesa civil já estava na minha casa. Eu e o meu padrasto tentamos ajudar desobstruindo o caminho com marreta e pá. Tentamos de tudo. Então começamos a retirar as pessoas. Em algumas partes tinha lama até os joelhos. Muita gente não quis sair. Eram pessoas muito pobres. Uma criançada que vivia aqui na frente de casa. Muitos morreram".

Adriana de Oliveira, há mais de 30 anos moradora do Morro da Carioca, afirmou que nunca viu aquele local como área de risco. Na madrugada do dia primeiro, ela estava em casa com 12 pessoas de sua família, entre elas sua mãe, Maria, e seu filho, Ronald, de 3 anos, quando começou a gritaria. Eles achavam que os barulhos fortes eram trovões. Adriana teve que descer correndo com seu filho no colo quando os alertas de desabamento chegaram. A família retornou para casa apenas no dia 10.

"Qualquer chuvinha mais forte nos deixa com muito medo", conta Adriana. "Não conseguimos mais dormir direito em dia de chuva. O Ronald ficou traumatizado. Fica perguntando o tempo todo".

Adriana vestia a camisa do Bloco da Carioca, um dos 14 dos 39 blocos que desistiram de participar do Carnaval de Angra este ano. Ainda assim, a prefeitura prepara uma grande festa. A procissão de barcos, que anualmente ocorre no dia 1º de janeiro e este ano não foi realizada devido às chuvas, foi remarcada para o Carnaval. Ainda não há previsão de quantos embarcações vão participar. Mas a Turisangra considera uma boa oportunidade para a retomada do turismo na região. Afinal, todos em Angra parecem concordar. As feridas da tragédia só vão cicatrizar com o retorno dos turistas.

Fonte: Especial para Terra
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