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Tragédia em Santa Maria

Especialistas discutem o que poderia ter evitado a tragédia no RS

28 jan 2013 - 06h34
(atualizado às 07h27)
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Negligência, superlotação, falta de fiscalização, estrutura deficiente e uso de pirotecnia. Essas são algumas das hipóteses que, somadas, teriam contribuído para a tragédia da madrugada do último domingo na boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Famosa por abrigar festas universitárias, a boate era ponto de encontro de estudantes e tinha capacidade máxima para 2 mil pessoas.

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Este é o segundo incêndio mais fatal da história do Brasil. A pior tragédia deste tipo ocorreu em 1961 no Grande Circo Brasileiro, em Niterói, quando 503 pessoas perderam a vida. A BBC Brasil conversou com especialistas que elencaram possíveis fatos que poderiam ter culminado na tragédia, a partir da análise de depoimentos de testemunhas e autoridades locais. Confira.

Possível negligência

Um dos proprietários da boate Kiss confirmou, em depoimento à Polícia Civil, que o alvará de funcionamento da casa noturna estava vencido desde dezembro do ano passado. Além disso, segundo o coronel nacional de Defesa Civil, Humberto Viana, o local funcionava também sem o Plano de Prevenção e Proteção contra Incêndio (PPCI), que havia expirado em agosto de 2012. Entretanto, o estabelecimento estava liberado para operar até nova perícia.

Emitido pela Prefeitura com base em pareceres dados por outros órgãos, o alvará é uma licença que autoriza que determinada atividade seja exercida em determinado local. Já o PPCI, segundo definição da própria Brigada Militar do Rio Grande do Sul, é "um processo pelo qual todo o proprietário ou responsável por prédios com instalações comerciais, industriais, de diversões públicas e edifícios residenciais com mais de uma economia e mais de um pavimento deve possuir".

O documento é expedido pelo Corpo de Bombeiros a partir de uma inspeção. Na vistoria, o órgão verifica se o estabelecimento cumpre as normas vigentes de acordo com a atividade exercida no local, como a existência de extintores de incêndio e saídas e iluminação de emergência.

Especialistas ouvidos pela BBC Brasil consideram que, apesar de a casa noturna já ter obtido a permissão de funcionamento no passado, uma vez que os documentos são necessários para a abertura de qualquer estabelecimento comercial, a manutenção das atividades de um local com licenças vencidas aumenta o risco para os usuários.

"Houve relatos, por exemplo, de que os extintores não funcionaram. Em tragédias como essas, sempre há situações muito óbvias que acabam negligenciadas", afirmou à BBC Brasil Carlos Wengrover, engenheiro e coordenador do comitê brasileiro de segurança contra incêndio no Rio Grande do Sul. "É preciso saber se a casa cumpriu à risca as normas determinadas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), como, por exemplo, a existência de iluminação de emergência", acrescenta Wengrover.

Possível superlotação

A boate Kiss informava ter capacidade máxima para receber 2 mil pessoas. Não se sabe ao certo quantas pessoas estavam no interior do estabelecimento no momento do incêndio. No entanto, a pedido da BBC Brasil, especialistas calcularam em 1,3 mil pessoas a lotação máxima da casa, com base em seus 650 metros quadrados de área.

O cálculo leva em conta até duas pessoas por metro quadrado, número limite para locais como casas noturnas, conforme previsto nas normas da ABNT, que regem a normalização técnica no país. "A lotação de um estabelecimento dependerá de sua área útil e de sua finalidade. Isso é verificado pelos bombeiros mediante inspeção", explicou Ivan Ricardo Fernandes, engenheiro civil e capitão do Corpo de Bombeiros do Paraná.

"Antes disso, entretanto, o proprietário precisa ter contratado um engenheiro a quem caberá, como responsável técnico, definir a capacidade máxima do local com base, entre outras coisas, nas normas de segurança contra incêndio", acrescentou.

Possível falta de fiscalização

Para especialistas, tanto a Prefeitura quanto os bombeiros podem ter falhado ao não verificar, por meio de vistorias, se a casa noturna de Santa Maria se adequava às normas determinadas pela legislação.

"O que mais vemos nessas tragédias é o não cumprimento das normas. Prefeitura e bombeiros precisam atuar em conjunto com um trabalho de fiscalização profunda", disse à BBC Brasil Luiz Antonio Cosenza, presidente da Comissão de Análises e Prevenção de Acidentes do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro (Crea-RJ).

Segundo Cosenza, as vistorias ajudam a reduzir o número de acidentes. Somente no ano passado, lembrou ele, cerca de 90% de todos os acidentes relacionados à construção civil no Rio de Janeiro foram causados por falta de manutenção.

"Cabe aos órgãos responsáveis interditar o local em caso de descumprimento da lei, assim como responsabilizar o proprietário e o locatário por qualquer risco que o estabelecimento possa apresentar", disse Cosenza. "Se realmente só havia uma saída de emergência, por que este estabelecimento estava funcionando?", questionou Fernandes.

Eles, entretanto, alertaram para o baixo efetivo tanto da Prefeitura como do Corpo de Bombeiros - órgãos responsáveis pela fiscalização deste tipo de estabelecimento - o que dificultaria a fiscalização diária. "Tanto bombeiros quanto Prefeitura padecem com a falta de pessoal. Isso invabiliza o trabalho dos órgãos responsáveis pela prevenção de acidentes", afirmou Fernandes.

Possíveis deficiências estruturais

Em entrevista à BBC Brasil, o ex-bancário Alberto Tessmer, que presenciou o incêndio e ajudou no resgate das vítimas, afirmou que só havia uma única área de escape na boate, a mesma pela qual o público entrava na casa noturna. Além disso, segundo ele, não havia "qualquer sinal" de iluminação de emergência - que, em caso de incidentes, servem para indicar a rota de fuga mais rápida.

Tessmer acrescentou ainda que muitas pessoas teriam confundido a aparência de uma porta dentro da casa noturna, que dava acesso aos banheiros, a de uma possível saída de emergência. Para especialistas, a hipótese pode fazer sentido, uma vez que, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, o capitão Edi Paulo Garcia, da Brigada Militar, contou ter tirado cerca de "180 corpos de vítimas" dos banheiros.

Segundo Fernandes, do Corpo de Bombeiros do Paraná, tais circunstâncias evidenciam a precariedade de estrutura da casa noturna. "Considerando a área útil e a atividade do local, seriam necessárias pelo menos duas saídas de emergência, que, juntas, deveriam somar 7 metros de largura", explicou Fernandes.

"Além disso, ainda segundo as normas da ABNT, a distância máxima a ser percorrida até a área de escape deveria ser de 30 metros", acrescentou. Segundo relatos de testemunhas, a única porta de saída media em torno de 2 metros de largura por 2 metros de altura.

Uso de pirotecnia

Segundo relatos de testemunhas, um dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava na madrugada do último domingo, acendeu um sinalizador em meio a performance. As faíscas teriam atingido o isolamento acústico do teto e desencadeado rapidamente o incêndio, que não pôde ser controlado.

A pirotecnia era comum nas apresentações do grupo. No site de compartilhamento de vídeos YouTube, por exemplo, apresentações antigas da banda revelam o uso dos fogos de artifício semelhantes aos que foram usados na boate Kiss. "No entanto, os donos da casa noturna nem os organizadores da festa deveriam ter dado permissão à essa prática, uma vez que, consideradas as características do espaço, ela é proibida e pode causar grandes riscos", disse Wengrover.

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