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Programa LGBT registra avanço de homofobia em São Paulo

Prefeitura contabilizou 116 casos em dois meses contra os 240 casos gerais em todo o ano de 2014; ação lançada hoje quer coletar denúncias

29 jun 2015 - 18h38
(atualizado às 19h47)
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Aline Martes tem 37 anos e é travesti desde os 16. Parou de frequentar a escola quando ainda cursava a quarta série do ensino fundamental. “Na sala de aula, eu não sabia se prestava atenção na professora ou no ‘montinho’ que se criava e que, depois, vinha para cima de mim me agredir ou me xingar. Hoje isso tem até um nome bonito e sonoro, ‘bullying’, mas essas agressões me fizeram desistir de ir para a escola. Preferia ir escondida à casa de uma amiga só para não ter que passar por aquela situação todo dia”.

Athena Joy tem 27 anos e é transformista. Ela conta que sofreu violência psicológica da própria família, durante anos, e violência física de quem sequer conhecia. “Eu estava na fase de transformação para quem sou hoje. Um sujeito me xingou na rua de ‘viado safado’, eu xinguei de volta e ele quase desfigurou meu rosto com socos”, diz.

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O casal Luana Neves, 19 anos, e Tamires Martins, de 18 anos, encontrou uma maneira de se blindar contra a chacota na rua quando andam de mãos dadas: “Cortei meu cabelo bem curto, um corte masculino, porque quando nós duas tínhamos cabelo comprido, era demais da conta: nos ofendiam, nos mediam de cima a baixo, e uma vez um sujeito me agrediu porque achava errado ver duas mulheres juntas”, conta Tamires.

“Na sala de aula, eu não sabia se prestava atenção na professora ou no ‘montinho’ que se criava e que, depois, vinha para cima de mim me agredir ou me xingar", conta a travesti Aline Martes, de 37 anos
“Na sala de aula, eu não sabia se prestava atenção na professora ou no ‘montinho’ que se criava e que, depois, vinha para cima de mim me agredir ou me xingar", conta a travesti Aline Martes, de 37 anos
Foto: Janaina Garcia / Terra

Apesar de as histórias terem nuances diferentes, as quatro personagens convergem em um ponto: São Paulo, e mesmo o Brasil, ainda são lugares onde a homofobia não foi dissipada das situações mais corriqueiras do cotidiano – dentro e fora de casa –, nem da tentativa de conquistar espaços no mercado de trabalho. No caso da capital paulista, a percepção de quem recebe esse tipo de relato, pelo poder público, é de que ele está aumentando.

Com a promessa de combater situações como essas, a prefeitura de São Paulo lançou nesta segunda-feira um serviço itinerante que, por meio de uma van e equipes de atendimento especializado, pretende dar assistência a vítimas de homofobia na cidade. Batizado de Unidade Móvel de Cidadania LGBT, o programa, vinculado à secretaria municipal de Direitos Humanos e Cidadania, vai oferecer apoio psicológico e jurídico às vítimas, além de testes rápidos de detecção de HIV.

Travesti: "Tentam empurrar violência para baixo do tapete":
O casal Luana Neves, de 19 anos (à esquerda), e Tamires Martins, de 18: "Quando nós duas tínhamos cabelo comprido era demais da conta: nos ofendiam na rua, nos mediam de cima a baixo, e uma vez um sujeito me agrediu porque achava errado ver duas mulheres juntas”, relata Tamires
O casal Luana Neves, de 19 anos (à esquerda), e Tamires Martins, de 18: "Quando nós duas tínhamos cabelo comprido era demais da conta: nos ofendiam na rua, nos mediam de cima a baixo, e uma vez um sujeito me agrediu porque achava errado ver duas mulheres juntas”, relata Tamires
Foto: Janaina Garcia / Terra

“Fizemos uma primeira experiência de atendimento itinerante com mulheres vítimas de violência e recolhemos muitas informações importantes sobre violência doméstica; agora, faremos o mesmo com a comunidade LGBT e os casos de homofobia – sobretudo em pontos específicos e onde o risco e a vulnerabilidade são maiores”, afirmou o prefeito Fernando Haddad (PT).

O petista ainda se disse favorável a leis mais rígidas no combate à homofobia – promessa de campanha, por exemplo, da então candidata à reeleição Dilma Rousseff (PT). “É inaceitável alguém sofrer violência pelo fato de ser mulher, negro, ter uma religião a, b ou c, ou determinada orientação sexual. Não podemos conviver com isso, ainda mais quando o mundo inteiro está caminhando para celebrar a diversidade”, avaliou. “Somos 12 milhões [de habitantes em São Paulo]; temos que lidar com a diversidade de maneira madura”, concluiu o prefeito.

Em uma fase inicial, a van LGBT atenderá no Largo do Arouche, de quinta-feira a domingo, das 18h às 23h. Aos sábados, o veículo estará na rua Augusta, próximo ao cruzamento com a rua Peixoto Gomide. Os dois locais são considerados redutos LGBT na capital paulista.

A unidade móvel da prefeitura terá equipes que coletarão denúncias de homofobia e encaminharão as vítimas para assistência jurídica e psicológica
A unidade móvel da prefeitura terá equipes que coletarão denúncias de homofobia e encaminharão as vítimas para assistência jurídica e psicológica
Foto: Janaina Garcia / Terra

Em dois meses, órgão recebeu mais casos de homofobia que em todo 2014

De acordo com o coordenador de Políticas LGBT da Secretaria de Direitos Humanos, Alessandro Melchior, a pasta vem observando, nos últimos meses, avanço dos relatos de homofobia que chegam até ela.

“Recebemos durante todo o ano passado 240 casos no nosso atendimento geral – não apenas relatos de homofobia, mas outros inerentes à vulnerabilidade. Só em abril e maio deste ano, contabilizamos 116 situações só de homofobia – de violência a preconceito, e a maior parte, infelizmente, de violência psicológica na escola e na família”, comentou Melchior. Sobre as situações de agressão física relatadas, o coordenador afirmou que elas se concentram, principalmente, na região da avenida Paulista. “Ali é o centro da vida noturna de São Paulo, e também local onde a diversidade é muito grande, mas nem todos conseguem ainda, infelizmente, conviver com essa pluralidade”, opinou.

O prefeito Fernando Haddad e o secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Eduardo Suplicy, no lançamento da unidade móvel de atendimento contra homofobia
O prefeito Fernando Haddad e o secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Eduardo Suplicy, no lançamento da unidade móvel de atendimento contra homofobia
Foto: Leon Rodrigues/Secom Prefeitura de SP / Divulgação

No próximo semestre, a secretaria abrirá um centro de cidadania para abrigar LGBTs em situação de rua. Em uma primeira etapa, antecipou Melchior, serão 30 vagas. A unidade está sendo preparada no Bom Retiro, na região central. Já as unidades móveis de atendimento, como a lançada hoje, deverão ser mais quatro até o final de 2016.

Recepcionista no programa municipal de proteção à comunidade LGBT, o TransCidadania, a travesti Aline acredita que o caminho até o fim da homofobia é longo – ela que, além das situações de agressão na escola, ainda pré-adolescente, já apanhou também no centro da cidade.

"Um sujeito me xingou na rua de ‘viado safado’, eu xinguei de volta e ele quase desfigurou meu rosto com socos”, diz a transformista Athena Joy, de 27 anos
"Um sujeito me xingou na rua de ‘viado safado’, eu xinguei de volta e ele quase desfigurou meu rosto com socos”, diz a transformista Athena Joy, de 27 anos
Foto: Janaina Garcia / Terra

“Só saí da prostituição, há seis meses, por conta da bolsa que recebo no programa – são R$ 820 que, juntando com o salário de um companheiro mecânico com quem vivo há nove anos, pagamos nossas contas. Mas se você rodar por lojas, empresas e fábricas, nunca vai encontrar uma trans trabalhando porque as pessoas não querem empregá-las. Temos capacidade de trabalho como qualquer outro ser humano”, desabafou.

Para a assistente de telemarketing Tamires, o combate à homofobia precisa ter como exemplo também a classe política. “É um absurdo e uma completa idiotice usarem Deus para ditar o que pode e que não pode ser feito – eles precisam mais de Deus que nós, pois julgam, enquanto nós procuramos colocar Deus em todas as nossas decisões”, disse Tamires. A estudante Luana, sua companheira há quase dois anos, concorda. “Os políticos deveriam praticar mais o [ensinamento do] ‘amai o próximo como a ti mesmo’ – não haveria homofobia se fizessem isso”, completou a jovem.

O secretário de Direitos Humanos da Prefeitura de SP, o ex-senador Eduardo Suplicy, participou do lançamento da iniciativa na prefeitura
O secretário de Direitos Humanos da Prefeitura de SP, o ex-senador Eduardo Suplicy, participou do lançamento da iniciativa na prefeitura
Foto: Janaina Garcia / Terra
Fonte: Terra
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