PUBLICIDADE

"É uma tortura eterna", diz fotógrafo que perdeu olho em SP

Sérgio Silva ficou cego do olho esquerdo ao ser atingido por uma bala de borracha da PM em protesto de 2013; audiência pública que debateu direito de manifestação teve ausência de secretário e comandante da polícia

18 nov 2014 - 20h02
(atualizado às 20h38)
Compartilhar
Exibir comentários
<p>Sérgio Andrade da Silva, 33 anos, ficou cego do olho esquerdo graças a um tiro de bala de borracha supostamente disparado por um policial militar</p>
Sérgio Andrade da Silva, 33 anos, ficou cego do olho esquerdo graças a um tiro de bala de borracha supostamente disparado por um policial militar
Foto: Janaina Garcia / Terra

“Eu não estava com uma arma na mão, eu estava com uma câmera. O policial apontou a arma dele para onde eu estava e tirou minha visão. Isso é uma tortura eterna que vou carregar pelo resto da vida”.

O desabafo é do fotógrafo Sérgio Andrade da Silva, de 33 anos, cego do olho esquerdo graças a um tiro de bala de borracha supostamente disparado por um policial militar. Freelancer, pai de uma menina de oito anos, Silva cobria a quarta manifestação pela redução das tarifas de transporte coletivo, no centro de São Paulo, quando foi baleado no rosto. Até hoje, um ano e cinco meses depois, a corporação não respondeu se algum policial, e qual, foi responsável pelo disparo, nem se foi submetido a algum tipo de munição. 

Fotógrafo cego pela PM põe assessor do governo em saia-justa:

Outros manifestantes depois de Silva ainda seriam atingidos pelo armamento meses depois – no protesto de 7 de setembro do mesmo ano, por exemplo, a bala de borracha cegaria o estudante Vítor Lourenço, de 17 anos – assim como já o fizera com o também fotógrafo Alex Silveira, em 2000, quando ele cobria uma manifestação de professores da rede pública na avenida Paulista.

Casos como esses foram novamente levados a debate, nesta terça-feira, em uma audiência pública em São Paulo sobre a ação da PM em manifestações e o direito a elas garantido pela Constituição. Convidados para o evento – organizado e sediado pelo Ministério Público Federal (MPF) –, nem o comandante-geral da PM, coronel Benedito Meira, nem o secretário estadual de Segurança Pública, Fernando Grella, compareceram. O chefe do Ministério Público estadual, o procurador de Justiça Márcio Elias Rosa, foi outra ausência. Grella mandou como representante o assessor técnico de seu gabinete, o promotor licenciado Eduardo Dias de Souza Ferreira.

<p>Nesta terça-feira, uma audiência pública foi celebrada em São Paulo, sobre a ação da PM em manifestações e o direito a elas garantido pela Constituição</p>
Nesta terça-feira, uma audiência pública foi celebrada em São Paulo, sobre a ação da PM em manifestações e o direito a elas garantido pela Constituição
Foto: Janaina Garcia / Terra

Silva entregaria ao comandante da PM um abaixo-assinado com mais de 45 mil assinaturas pelo fim do uso da bala de borracha; sem o coronel na audiência, aproveitou uma entrevista que era dada pelo assessor da SSP para fazê-lo. Segundo o fotógrafo, o compilado fora entregue em mãos ao próprio secretário, em fevereiro deste ano, sem resposta.

“Ele (Grella) havia me prometido que entregaria o abaixo-assinado para uma comissão que analisa a ação da PM nessas manifestações e me mandaria cópia do ofício desse encaminhamento, mas isso nunca aconteceu”, disse Silva.

O fotógrafo lamentou o fato de nenhum policial ter sido punido até hoje e leu, ao assessor, o manifesto que leria ao comandante da PM. “Vocês sabem muito bem quem provocou este fato. Mas por uma clara questão política, fecham seus olhos e dizem ser um caso pontual. Também dizem que não tive como provar que foi um policial militar o agente provocador dessa eterna tortura estampada em meu rosto. Mas, afinal, quem atira bala de borracha?”, indagou. “Observem a prótese ocular que uso, neste momento, e tenho certeza que entenderão a violação das normas de manuseio desse armamento”, declarou.

Protesto de junho foi o mais violento

O protesto do dia 13 de junho ficou marcado pela forte repressão policial e pelas dezenas de detidos e feridos. Na ocasião, mesmo trabalhadores que voltavam do serviço, nas imediações da avenida Paulista, e manifestantes desarmados e não envolvidos em atos de depredação foram alvos de bombas de gás e de efeito moral, além dos tiros de balas de borracha, lançados pela PM. A ação causou uma reação imediata: as manifestações seguintes mais que duplicaram a quantidade de pessoas nas ruas, e não só contra os preços da tarifa de transporte – que seriam revertidos do aumento de R$ 3,20 para os antigos R$ 3 –, mas também contra a violência policial.

Assessor da SSP diz  desconhecer número de PMs punidos

O assessor de Grella levou o documento com as assinaturas, mas não disse quais seriam os encaminhamentos da pasta a respeito. Sobre o número de policiais efetivamente punidos por abuso em manifestações, não soube precisar, mas garantiu que o Estado não é contrário aos atos e nem deve ser informado sobre a realização delas – argumento comumente usado pela PM até para coibir protestos durante a Copa do Mundo, em junho.

“Não sei precisar quantos PMs foram punidos, mas de forma alguma o Estado é contra as manifestações; isso seria se posicionar contrariamente a acordos internacionais. O Estado de direito comporta as manifestações, menos as que pregam separatismo, ódio, racismo. O direito de reunião é sagrado – poderíamos é ter explicitado o direito de manifestação, como em outros países, já que o que temos é o de reunião e em uma legislação de 1950 que precisa de uma atualização. Assim como precisa regulamentar a ação das polícias, que não têm, hoje, uma lei orgânica”, comentou. De acordo com Ferreira, foram 80 manifestações na cidade em 2012, diante de 258 ano passado e 40 este ano.

Sobre a ausência de Meira e Grella, o assessor técnico do gabinete da SSP foi lacônico: “São muitas atividades deles, nesse momento, de respostas que precisam efetivamente ser dadas”, resumiu.

Corregedoria não deu respostas, diz ouvidor das polícias

Ouvidor das polícias do Estado de São Paulo, o advogado Julio Cesar Fernandes Neves avaliou que a Corregedoria da PM, responsável por receber as denúncias de desvios de conduta e estabelecer as punições, deixou a desejar em relação não só à ação da corporação nas manifestações, mas em mortes causadas por policiais em supostos confrontos com criminosos.

“A ouvidoria não investiga, ela tem o poder é de provocar a Corregedoria. Todas as denúncias de abusos que colocamos até agora não tivemos uma finalização, uma solução”, declarou Neves, segundo o qual a PM cometeu 641 homicídios, de janeiro a setembro deste ano, em todo o Estado, nos supostos confrontos. “Isso é uma coisa absurda que não existe em um País que se diga desenvolvido e democrático”, avaliou. “Na Inglaterra, tiros disparados por policiais são muito raros, e ainda assim, são vistos e revistos pelo Estado, analisados de onde e por que saíram. Aqui, é visto quase como uma normalidade”, completou.

Omissão do Estado gera violência contínua, diz especialista

Presente à audiência pública, a cientista política Esther Solano, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), membro do Fórum Brasileiro de segurança Pública, criticou a ausência do poder público não apenas no evento, mas nas manifestações, em si, que não apenas na figura de policiais.

“Há uma ausência gritante das instituições do poder público”, declarou, para completar: “Esse tipo de atitude omissa provoca uma violência contínua, porque a PM acaba sendo o único rosto do Estado nas manifestações, sem interlocutores e mediadores do poder público”, disse a estudiosa. “Lamento a ausência do comandante da PM aqui hoje, mas lembro que a PM responde a um comando político, e quem deveria estar presente é o governador do Estado”, concluiu.

O MPF informou que a audiência, filmada, terá gravações e ata disponibilizadas a procuradores e promotores que tenham inquéritos em andamento sobre a ação da PM nas manifestações.

Fonte: Terra
Compartilhar
Publicidade
Publicidade