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Cidades

Após reencontrar irmão, mulher ajuda 10 mil desaparecidos

Desde que encontrou o irmão debilitado nas ruas de Florianópolis, catarinense tem se dedicado a criar um banco de dados de desaparecidos

27 jul 2015 - 09h32
(atualizado às 14h36)
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"Onde está Jorge Gustavo?". Durante 10 anos, todos os dias, a catarinense Amanda Boldeke, de 62 anos, repetiu a pergunta em hospitais, institutos médicos legais, delegacias, prisões, esquinas. Nada.

Percorreu, entre 1997 e 2007, três Estados do país à procura do irmão, depressivo, que, aos 50 anos de idade, saiu de casa e nunca mais voltou. Nenhuma pista. Decidiu criar uma comunidade no finado Orkut, com o nome de Jorge. O espaço começou a receber denúncias de outros desaparecimentos - sobre Jorge, no entanto, nada.

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"Eu imaginava coisas terríveis. Não podia ver pessoas na rua que ia lá ver se era ele." Numa manhã ensolarada de 2007, o telefone toca: "Era um comerciante do Mato Grosso do Sul perguntando se eu conhecia algum Jorge Gustavo. Ele o encontrou na rua, deu banho e roupas, achou meu número na lista telefônica e deu uma passagem para ele me encontrar", conta.

Dez anos mais velho, quase irreconhecível, Jorge havia se tornado um andarilho, tinha o corpo debilitado e estava quase cego. O reencontro aconteceu na rodoviária de Florianópolis.

Amanda Boldeke e o irmão, Jorge Gustavo
Amanda Boldeke e o irmão, Jorge Gustavo
Foto: Arquivo Pessoal / Divulgação

"Eu olhava, olhava, e não o reconhecia", lembra. "Aí vi um senhor sentado num canto, encolhidinho, com um boné vermelho na cabeça... era ele. Que taquicardia. Desculpe, mas não vou conseguir explicar para você o tamanho da emoção."

A esta altura, já "sem esperança" e crente que o irmão tinha morrido, Amanda havia mudado o nome do grupo no Orkut para "Desaparecidos do Brasil", por conta das outras denúncias. Após o reencontro com Jorge, a odisseia de uma década de buscas parecia enfim ter terminado (Jorge se recuperou e mora com ela até hoje). Mas não.

"Eu já estava tão envolvida com o trabalho, com as pessoas. Você vivencia a tristeza e a dor de quem está procurando alguém, não dá para se afastar sem mais nem menos... Aí não teve mais volta."

Buscas

A comunidade "Desaparecidos do Brasil" se transformou, em 2007, no site. Desde então, Amanda dedica a vida a alimentar este banco de dados de desaparecidos, ajudar esclarecer estes casos e apoiar familiares de pessoas que sumiram sem deixar vestígios.

"Eu deixo muito de mim de lado, porque a cada momento que eu abro o e-mail eu tenho ali um pedido de ajuda", diz. "É ruim não ter tempo para a família. Mas se eu não gostasse, não faria. É algo que me emociona, me traz tristezas e alegrias. Faço de coração mesmo, não teria dinheiro que pagasse."

Com recursos próprios e raras doações, de lá para cá, Amanda já conseguiu dar visibilidade às buscas mais de 10 mil famílias em todo o Brasil. Imprime cartazes, telefona para delegacias e hospitais, cobra o Governo Federal e criou uma rede de colaboradores que compartilham as imagens e informações sobre desaparecidos nas ruas e redes sociais.

Amanda recebe entre 150 e 200 pedidos mensais de ajuda sobre novos desaparecimentos. Um em cada cinco se refere a idosos.

"É um número tão grande, tão impressionante, que cheguei a fazer uma página no Facebook especificamente para idosos. Todos os dias algum desaparece, geralmente em consequência da doença de Alzheimer. Por isso é difícil identificar onde estão ou se foram recolhidos", diz.

Amanda Boldeke e o irmão, Jorge Gustavo
Amanda Boldeke e o irmão, Jorge Gustavo
Foto: Arquivo Pessoal / Divulgação

As crianças representam percentual ainda maior: 22 a cada 100 casos. "Poucas delas simplesmente se perdem. Costumam ser raptadas, quando não por pedófilos, por quadrilhas ligadas ao tráfico de órgãos, à prostituição, ao trabalho escravo e à adoção internacional irregular", explica Amanda.

Seu trabalho também inclui o caminho inverso: ajudar crianças que foram afastadas de suas famílias a reencontrarem seus parentes de sangue. "No Brasil, sabemos, as adoções nem sempre são legais. Muitas mães dão os bebezinhos sem imaginar que a criança vai querer conhecer sua história depois. A gente faz a busca, às vezes a mãe fica superfeliz, às vezes não."

Ela explica: "Muitas destas mulheres que abandonaram crianças no passado hoje constituíram família, têm filhos, às vezes netos. Elas simplesmente não querem expor este passado, preferem deixá-lo escondido, e escolhem continuar renegando estes filhos."

O que fazer?

Procurado pela BBC Brasil, o Ministério da Justiça informou que a Secretaria Nacional de Segurança Pública "está integrando os boletins de ocorrência nas Polícias Civis dos Estados" e que, "com o tempo, teremos todos os estados do Brasil alimentando a rede e com informações precisas sobre pessoas desaparecidas".

"Assim que for concluída e realizada efetivamente a integração de todos os registros, teremos um levantamento mais atualizado da quantidade de dados de desaparecidos no País, assim como de casos solucionados", prossegue o ministério.

A reportagem questionou a lentidão do processo, que foi iniciado em 2012, com a promulgação de uma lei. Três anos depois, apenas três estados - Sergipe, Santa Catarina e Espírito Santo - alimentam o banco de dados. A pasta não respondeu, entretanto, não respondeu aos questionamentos.

Mãe de quatro filhos, avó de cinco netos, a catarinense comemora sucesso em 80% dos casos que recebe.

"Se a pessoa está ativa, tem CPF, é difícil, mas normalmente encontramos, porque dá para falar com as delegacias e rastrear", diz.

O problema é quando a pessoa perde ou deixa de usar o documento. "Nesses casos, a chance de estarem sem memória, terem sido enterrados como indigentes ou sido vítimas de algum crime infelizmente é grande."

O primeiro passo em caso de desaparecimento na família, explica Amanda, é o registro de um boletim de ocorrência (BO). À BBC Brasil, porta-vozes do Ministério da Justiça informaram que não é preciso aguardar 24 ou 48 horas para procurar ajuda. "Isso é mito", diz a pasta.

"A gente sempre orienta a fazer o BO, os casos precisam entrar nas estatísticas", diz Amanda. "Depois disso, nós fazemos um 'cartão' com as informações dos desaparecidos e orientamos a família a procurar nos hospitais com a foto, ir nos IMLs, jornais, rádios. Tudo tem que ser feito o quanto antes."

Ela lamenta a falta de apoio do poder público. "Fico decepcionada, porque os órgãos públicos, que teriam obrigação de fazer tudo isso que fazemos, realmente se omitem."

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