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Chacina de Costa Barros: ‘Não deve haver zonas nem limites para direitos humanos’

5 dez 2015 - 14h20
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Tenho guardada no meu computador uma foto de um grupo de rapazes curtindo o delicioso frescor da água que um chafariz derramava sobre suas cabeças.

Na foto também podem ser vistos outros jovens tomando banho no chafariz com imensa euforia, enquanto outros aproveitam o sol deitados sobre concreto escaldante.

Foto tirada em 2012 por Sarah Robbins: "O que vi me encheu de esperança"
Foto tirada em 2012 por Sarah Robbins: "O que vi me encheu de esperança"
Foto: BBC / BBC News Brasil

Tirei esta foto em julho de 2012, no Parque Madureira, pouco mais de um mês após ter desembarcado no Rio vinda dos Estados Unidos.

Confesso que o que vi me encheu de esperança e aquele momento, aquela imagem, me fizeram deixar de lado boa parte do meu ceticismo.

Tinha ido ao parque para comprovar pessoalmente os benefícios que diziam que os Jogos Olímpicos de 2016 levariam às áreas carentes, cumprindo a promessa de transformar a cidade.

Pude constatar a enorme transformação que havia sido feita. Uma área que estava abandonada havia sido transformada em um excelente espaço público, em um lindo espaço urbano, que a quatro anos da Olimpíada já era usado pelos moradores.

Para mim aquilo era uma mostra de que a cidade poderia vir a ser realmente um lugar de todos e para todos.

Barbárie

No último sábado, como fazem centenas de outros jovens, Roberto de Souza, de 16 anos, foi ao Parque Madureira com quatro amigos.

Tinham resolvido comemorar o primeiro salário ganho por Roberto no seu novo emprego.

Eram movidos pela felicidade de poder gastar o que haviam recebido em troca de seu próprio suor, em trabalho honesto e decente, um dos maiores símbolos de cidadania. Tinham a alegria de ser participantes ativos de uma sociedade.

Em Madureira, eles se divertiram no parque, uma das grandes promessas de inclusão do Rio, sem ter a menor ideia de que acabariam sendo vítimas da barbárie que ainda é a norma para muitos moradores da cidade.

Legítimos e indefesos

Estarrecido, o Rio de Janeiro tomou conhecimento da morte bárbara dos cinco rapazes. O carro em que viajavam de volta para casa foi atingido por cerca de cem balas de fuzil disparadas por soldados da Polícia Militar que os confundiram com assaltantes perigosos.

Os detalhes tornam muito pior uma história que por si só já é revoltante: a mãe de um dos meninos disse que foi impedida pelos PMs de socorrer o filho que agonizava.

Ela disse que um dos policiais teria apontado uma arma para ela e dito que atiraria se ela insistisse em se aproximar do filho fatalmente ferido.

Testemunhas dizem que os policiais tentaram forjar a cena do crime para que parecesse que os tiros haviam sido disparados em legítima defesa.

Vidas curtas

Não é novidade que o Rio é uma das cidades mais violentas do mundo. Mas as estatísticas mostram que dentre as milhares de vítimas de todos os anos, o número de jovens negros mortos ainda é extremamente elevado.

A mesma história se repete tantas vezes. E, especialmente neste ano, um grande número de crianças tem sido vítima.

Quando amigos meus vêm me visitar e me pedem para levá-los ao Cristo Redentor, eu peço a eles que, além de apreciar a vista estupenda, aproveitem a posição topográfica privilegiada para perceber as marcantes divisões da cidade.

É interessante ver como a linda paisagem ao mesmo tempo define e divide a cidade. Como aproxima e afasta os ricos dos pobres.

“Não deixem de olhar para trás e vocês verão a imensa Zona Norte, separada da famosa Zona Sul pela maior floresta urbana do mundo,” eu sempre digo a eles.

Zona de exclusão

O Parque Madureira foi concebido, desenhado e construído, e posteriormente expandido, como parte das promessas de inserir os moradores da Zona Norte na chamada Cidade Olímpica.

Mas uma cidade em que os projetos de inclusão se limitam à criação de espaços físicos só consegue atingir uma parte de sua meta.

Além de poderem usufruir destes lugares, seus moradores têm que poder ir à praia sem ser revistados e ir à escola sem ser atingidos por uma bala perdida.

Na inauguração dos anéis olímpicos no Parque de Madureira, dançarinos de charme chamaram atenção divertindo-se com seus passos
Na inauguração dos anéis olímpicos no Parque de Madureira, dançarinos de charme chamaram atenção divertindo-se com seus passos
Foto: Divulgação/BBC Brasil / BBC News Brasil

Não deve haver zonas nem limites para os direitos humanos. Eles não podem ficar restritos apenas a certas áreas.

O Rio passa por uma grave crise de segurança pública.

O programa de pacificação de comunidades, que na verdade abrange apenas uma parte da cidade, está em decadência.

Poderosas quadrilhas de traficantes de drogas, fortemente armadas, tentam a todo custo recuperar o território perdido.

É frequente a morte de policiais em combate. Alguns são brutalmente torturados antes de serem cruelmente assassinados.

Todos que conheço, incluindo minha mãe, têm uma história terrível para contar sobre assaltos. Muitos chegaram a ser ameaçados por facas ou por armas de fogo.

Ao comentar a questão de segurança, é comum os cariocas se referirem ao Rio como uma cidade em pé de Guerra. Uma guerra civil não declarada. “A Síria é aqui”, já ouvi de parentes de vítimas dessa violência urbana.

Abandono

Os policias envolvidos no incidente da semana passada foram presos. De acordo com a 39ª DP (Pavuna), os policiais militares Thiago Resende Viana Barbosa, Marcio Darcy Alves dos Santos e Antonio Carlos Gonçalves Filho foram presos em flagrante por homicídio doloso e fraude processual, e o policial Fabio Pizza Oliveira da Silva por fraude processual.

Mas famílias como as de Roberto e seus amigos se sentem abandonadas, desamparadas pelo sistema judiciário.

Um bom exemplo desse abandono é o caso de Eduardo de Jesus, um menino de 10 anos morto em abril em frente à casa em que morava por tiros disparados por policiais.

Um dos PMs tentou colocar uma arma junto ao corpo de Eduardo para incriminar o rapaz.

O chamado “auto de resistência”, base para a alegação de legítima defesa, é usado com tanta frequência pela polícia do Rio que não causou surpresa o fato de um representante da Anistia Internacional ter chamado a força policial de “gatilho feliz”, aqueles que “acusam suas vítimas pelas próprias mortes”.

Os policias que mataram o jovem Eduardo foram recentemente inocentados por sua morte.

A família de Eduardo resolveu sair do Rio. Segundo os familiares do menino, um dos motivos foi o temor causado pela intimidação feita por policiais.

Cidade Olímpica para todos

Neste ano, foi instalada em Madureira uma enorme escultura de ferro.

Os cinco aros olímpicos podem ser vistos exatamente acima do chafariz em que as crianças se banhavam felizes e despreocupadas quando tirei aquela fotografia.

Penso que não cabe apenas à polícia e à prefeitura dar um significado maior a esse monumento para fazer do Rio uma verdadeira Cidade Olímpica. O público tem que estar presente.

Toda vez que há um massacre como o de Roberto e seus amigos, vemos no Facebook uma explosão de indignação, com posts que externam toda a revolta da população.

Mas, em geral, esses protestos têm vida curta, e por serem tão frequentes, as execuções acabam não ganhando da grande mídia o espaço e destaque que merecem.

É comum vermos notícias de violência semelhantes serem lidas com uma certa monotonia pelos apresentadores de telejornal, como sendo apenas mais uma notícia triste do mesmo tipo.

Não é raro ouvir gente concordando com a afirmação de policiais de que “bandido bom é bandido morto”.

Não se deve e não se pode ficar indiferente diante destas cenas de horror, pois é exatamente isso que elas são.

Futuro

As crianças do Rio, incluindo as minhas, uma nascida e ambas criadas aqui, merecem ter um futuro melhor. Afinal, todas estas vidas são valiosas.

Todas as manhãs, quando ouço o noticiário pelo rádio, sinto um nó em minha garganta ao saber quem, como e por que motivo foi morto.

Chorei quando ouvi o relato de uma companheira de trabalho de que seu primo havia sido assassinado a tiros e seu corpo deixado estendido na rua até a chegada de fotógrafos para fazer o registro.

Ela disse que sua filha de 15 anos voltava da escola quando tudo aconteceu. “Mãe, eu fiquei calma”, disse a filha, segundo ela. Até quando alguém vai querer ficar num lugar desses?

Não é suficiente que uma cidade tenha em seu mapa locais maravilhosos, dignos de um cartão-postal.

Até que toda ruela, todo beco, seja um lugar seguro para se cruzar, até podermos visitar nossas avós com segurança, até que os Robertos e Eduardos não tenham mais suas vidas precocemente interrompidas por uma violência sem sentido, o sonho de uma cidade integrada não passará de uma promessa frágil.

Berço do samba

O bairro de Madureira é considerado por muitos o berço do samba.

Grandes escolas de samba como Portela e Império Serrano são frutos do bairro e têm suas sedes lá.

Agora, o bairro é também morada final de Roberto e seus amigos.

Eles foram enterrados num cemitério não muito distante do parque.

Seu momento de liberdade não durou muito.

Parentes e amigos dos meninos mortos organizaram em sua homenagem uma reunião.

Eles exigem que a justiça seja feita e que os culpados paguem pelo crime cometido. O encontro deveria ter sido chamado de Evento Teste para a Olimpíada.

Afinal, os sonhos são simples. Não me roube, não me mate.

Estes são os desejos das nossas crianças, a próxima geração de cariocas.

Nossa obrigação é garantir que esses sonhos não sejam impossíveis, que a geografia não defina vida ou morte.

Que o samba da Portela para o Carnaval fale sobre exemplos concretos de democracia e inclusão social.

#NovoCartaoPostal? Ainda não. Mas Rio, saiba que é possível.

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