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Em abrigo no Acre, haitianos continuam com uma vida difícil

Dominicanos também enfrentam dias de viagem para ingressar no Brasil. Todos estão unidos por um objetivo comum, o trabalho

23 set 2014 - 17h44
(atualizado às 18h29)
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<p>Centenas de imigrantes convivem numa chácara, disponibilizada pelo governo do Acre, que funciona como abrigo em Rio Branco</p>
Centenas de imigrantes convivem numa chácara, disponibilizada pelo governo do Acre, que funciona como abrigo em Rio Branco
Foto: Jardel Angelim / Especial para Terra

Eles chegam cansados, cheios de bagagens e histórias para contar. Na lembrança, só resta a vida difícil que tentam tratar como efemeridade. No pensamento, a família que ficou somente na saudade. Tímidos e, na maioria das vezes, arredios, demonstram em todos os gestos as adversidades de uma história conturbada. Olhos inexpressivos expõem as memórias de quem viu a tragédia de perto.

Esse é o retrato de dezenas de haitianos que enfrentaram tenebrosos dias de viagem para ingressar no Brasil, através da fronteira de Brasileia, distante 240 km da capital. É assim que acontece corriqueiramente em um abrigo de Rio Branco, no Acre. A aventura é longa e apresenta riscos. Os imigrantes precisam passar por infortúnios durante todo o percurso até o destino final.

Do Haiti eles passam pela República Dominicana, Panamá, Equador e Peru, até chegar ao Brasil. Mas a rota torna-se um pesadelo. Os “coiotes” arrancam tudo o que podem dos desventurados cidadãos que não apresentam riscos ou malícia para entender a cadeia alimentar que vive o submundo da ilegalidade. A previsão de um gasto simples se contrapõe com os exageros. Cada haitiano gasta, em média, 10 mil reais para atravessar todas as fronteiras, dinheiro que juntam a duras penas por muito tempo.

Desde 12 de janeiro de 2010, quando o Haiti foi devastado por um terremoto que destruiu o país e deixou milhares de mortos, feridos e desabrigados, os seus habitantes ficaram desamparados. Reféns de uma terra desolada, a tragédia virou um alento para quem estava cansado do estilo de vida que levava. Em dezembro do mesmo ano, houve a notícia dos primeiros haitianos aportando ao Acre. Era o início de um longo ciclo.

Recomeço

Com um celular na mão e fones de ouvido, o haitiano Jean Pablo anda sem rumo pelas ruas do abrigo. Há 11 dias no Acre, espera o último documento que falta - a carteira de trabalho - para poder partir para São Paulo, onde pretende arrumar um emprego. Desconfiado com a reportagem, quer saber o motivo das perguntas. “Não quero dar informações sobre minha vida a qualquer pessoa”, esbraveja em espanhol, sua terceira língua. Enjoado, não deixa nem ser fotografado e não revela, sequer, a idade. 

<p>No Haiti, grande parte da população fala três idiomas, o Crioulo, o Francês e o espanhol</p>
No Haiti, grande parte da população fala três idiomas, o Crioulo, o Francês e o espanhol
Foto: Jardel Angelim / Especial para Terra

Como profissão diz que é ajudante de obras e que, em seu país, um jovem não tem muitas alternativas. Por isso, arriscou tudo e veio sozinho para o Brasil tentar a sorte. Deixou para trás a mãe e cinco irmãos. “Todos estavam vindo para cá e eu decidi mudar de vida”, almeja Pablo, que pretende trabalhar e juntar dinheiro para trazer os seus familiares para perto e acabar de vez com o sofrimento, a fim de terem “uma história diferente”.

Assim como Pablo, centenas de imigrantes convivem numa chácara, disponibilizada pelo governo do Acre, que funciona como abrigo em Rio Branco. O local é uma evolução do primeiro alojamento que recebia os haitianos, ainda em Brasileia. Agora, eles têm refeição três vezes ao dia, campo de futebol, e um espaço mais amplo, embora as salas já estejam abarrotadas de bagagens e colchões. O local totalmente arborizado fica em um bairro distante do centro da capital.

Enquanto aguardam regularizar a situação no Brasil, eles passam o dia inteiro no abrigo. Separados por grupos ou sozinhos, o que os une é a vontade de vencer. Entediado, bem próximo ao campo de futebol estava Exantus Ronél, 32, embaixo de uma árvore, imóvel, ao lado do amigo que fez durante sua estadia no Acre, Zves Costumé. Calados durante horas, essa é a rotina de cada um deles, enquanto não chega o momento de se aventurarem em terras mais prósperas.

Sob uma alta temperatura, comum no Acre, Rónel não deixa os costumes pessoais. Só usa calça comprida, mesmo que seja com sandálias. Há 15 dias no estado, acredita que aqui a vida vai melhorar. E para isso ele tem muita fé em Deus, uma vez que é evangélico e faz questão de dizer que confia na providência divina. “O meu Senhor vai me dar provisão para que eu consiga trabalho”, garante.

Com a esperança de melhorias, Rónel só não está acostumado com a saudade dos três filhos e da esposa que deixou em sua terra. “Para que eles não passassem necessidades deixei um pouco de dinheiro, mas já está acabando e eu continuo aqui (sem trabalhar)”, lamenta com voz mansa e engasgada de um choro que não quer se permitir. “Eu me sinto mal, passo o dia sentado e minha família precisando de dinheiro, é muito triste”, desabafa.

Mesmo quando arrumar um serviço que garanta condições mais favoráveis, Rónel não quer trazer os filhos para o Brasil. “Eles têm que estudar lá (no Haiti), e precisam aprender todas as línguas do nosso país”, planeja.  No Haiti, grande parte da população fala três idiomas, o Crioulo, o Francês e o espanhol. Assim como os outros imigrantes, o contato com os familiares ocorre por meio da internet e de telefone.

Dominicanos 

Diferente dos seus conterrâneos, Santo Paulino Toribio, 43, é uma alegria. Simpático e sorridente, fala que aqui as coisas são diferentes. “No Brasil, as leis são severas, no meu país é uma bagunça”. Gosta de conversar e diz que vai aprender o português em um mês. Atento a tudo ao seu redor, ele observa uma conversa em português e chama os amigos para ouvir o diálogo. “Olha ele perguntou sobre a vida no Haiti. Tá vendo? É fácil de entender a língua deles”, cochicha.

<p>No Brasil, as leis são severas, no meu país é uma bagunça, diz Santo Paulino Toribio</p>
No Brasil, as leis são severas, no meu país é uma bagunça, diz Santo Paulino Toribio
Foto: Jardel Angelim / Especial para Terra

Paulino é da República Dominicana e veio para o Brasil encorajado pela imigração dos haitianos na última década. Apesar de ser de outro país, tem o mesmo objetivo, arrumar um trabalho, assim como os seus conterrâneos que também estão no abrigo. O dominicano saiu das soleiras de sua parentela sem a aprovação de todos. “Eles diziam que não era para eu sair de lá, que era muito perigoso. E também porque lá eu estava trabalhando como motorista”, comenta.

Sem saber se foi obra do destino, Paulino sofreu bastante para entrar no Brasil. Quando chegou em Porto Maldonado, no Peru, os seus recursos acabaram. Teve que ligar para casa e ouvir boas reclamações. “Nós não falamos para você não ir?” era a alegação do outro lado da linha. A família pediu que ele voltasse, mas, “teimoso”, insistiu em continuar.

Enquanto esperava a mobilização conjunta no lar que deixou para trás, a fim de conseguir dinheiro, Paulino passou fome e continuava a ser extorquido pelos “coiotes”. Deu tudo o que tinha, só o que não queria perder era a dignidade. No Brasil, ele sabia que as coisas iam mudar. “Aqui eu tenho um amigo que mora em Santa Catarina e já conseguiu um emprego de motorista pra mim”, conta aliviado e com a certeza de que o abrigo onde está só servirá de passagem.

Fonte: Especial para Terra
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