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Analista: é possível julgar torturadores mesmo com anistia

Peter Kornbluh, especialista do National Security Archive, dedicado a revelar segredos do governo americano, é uma das maiores autoridades do mundo sobre as ditaduras na América Latina

2 abr 2014 - 14h13
(atualizado em 29/4/2014 às 17h38)
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Não é preciso revogar a anistia para julgar os crimes cometidos pela ditadura, afirma o pesquisador Peter Kornbluh, colaborador da Comissão Nacional da Verdade e uma das maiores autoridades mundiais sobre as relações entre os Estados Unidos e as ditaduras na América Latina durante a Guerra Fria. Para marcar os 50 anos do golpe de 1964, ele e seus colaboradores divulgaram em 1º de abril um relatório secreto dos EUA nos anos 70 descrevendo a tortura em Osasco e fornecido à comissão.

Kornbluh é analista sênior do National Security Archive (NSA), uma instituição sem fins lucrativos ligada à Universidade George Washington e dedicada a revelar documentos que esclareçam as ações do governo americano. Como diretor dos projetos de documentação do NSA sobre o Chile e Cuba, ele já obteve importantes revelações sobre o papel dos EUA nas ditaduras latino-americanas, como gravações mostrando o então assessor de Segurança Nacional e depois Secretário de Estado no governo Nixon, Henry Kissinger, incitando um golpe no Chile pouco depois da eleição de Salvador Allende, em 1970.

Leia um trecho do relatório
"O interrogatório de prisioneiros políticos geralmente é acompanhado de tortura, ou seja, o pau de arara, choques elétricos, fome, etc. Um candidato do MDB para vereador em São Paulo que foi preso depois das eleições municipais de novembro e detido durante seis semanas num centro militar de interrogatório (OBAN) nos relatou após ser libertado que cerca de 60 prisioneiros políticos eram mantidos no centro de interrogação, mais ou menos sua capacidade, durante a maior parte do período em que ele esteve lá. Muitos estavam claramente envolvidos em atividades subversivas mas outros aparentavam apenas serem idealistas políticos contrários ao regime. Ele mesmo não sofreu abusos, já que é um político legítimo e, como um homem rico, não é 'torturável'."
Leia o relatório completo (em inglês)

Kornbluh enxerga uma certa ironia poética em casos como o do Brasil, onde os militares ainda se recusam a colaborar e entregar documentos enquanto o farto material americano, devido ao apoio do país às ditaduras, ajuda a preencher a lacuna criada pela resistência interna. “É preciso dar crédito ao governo americano, que já a partir de 75 começou a liberar documentos”, diz ele. O documento revelado ontem é um exemplo disso, pois fornece um relato direto das violações dos direitos humanos pelo regime militar em 1973.

<a data-cke-saved-href="http://www.terra.com.br/noticias/infograficos/desaparecidos-da-ditadura/" href="http://www.terra.com.br/noticias/infograficos/desaparecidos-da-ditadura/">Desaparecidos da ditadura</a>

“Acredito que teremos alguns documentos úteis para o relatório final deles. Há muitos documentos nos arquivos secretos americanos que ajudariam imensamente a esclarecer crimes contra os direitos humanos, suas vítimas e os torturadores”, diz. 

Com base na sua experiência monitorando a revisão dos crimes das ditaduras na América Latina, Kornbluh admite que o Brasil iniciou o processo tarde, mas afirma que outros países não precisaram rever suas leis da anistia para julgar torturadores e reconhecer os crimes do estado. “Outros países que criaram comissões da verdade para rever o passado, Chile e Argentina, fizeram isso com suas anistias existindo. A Argentina acabou revogando sua anistia. O Chile nunca fez isso, mas conseguiu levar à justiça e aprisionar dezenas dos principais assessores de Augusto Pinochet e seus principais generais”.

Há muito foco no Brasil sobre a lei da anistia, diz Kornbluh, e debate intenso sobre a posição que a Comissão da Verdade deveria adotar sobre a mesma."Especiali“Mas os exemplos de outros países mostram que a anistia pode ser revogada e, mesmo com a anistia, as engrenagens da Justiça podem seguir adiante. Isso significa enfrentar a resistência dos militares tentando bloquear a responsabilização por essas atrocidades, significa solucionar a questão dos documentos secretos ainda desaparecidos, bem como o paradeiro de tantas vítimas. Significa vontade política e coragem da atual liderança brasileira."

Conscientização

Em 2004, para marcar os 40 anos do golpe, o pesquisador divulgou gravações em que o presidente Lyndon Johnson mandava fornecer todo apoio aos militares brasileiros. Sua atenção agora é voltada para o período em que Kennedy lidou com a turbulência no Brasil e como sua posição evoluiu gradualmente para o apoio total ao golpe. Kornbluh realizará apresentação sobre o tema em 3 de abril na Universidade de Wisconsin. Além desse evento, a Universidade Brown e a Universidade de Michigan também preparam seminários nos EUA sobre os 50 anos do golpe.

“Vamos ressaltar alguns documentos que já foram desclassificados mas não receberam muita atenção, e outros que obtivemos recentemente com várias bibliotecas presidenciais. Apresentaremos uma boa compilação de uns 15 documentos e duas fitas com gravações do presidente Kennedy que nunca tinham sido transcritas”, diz Kornbluh. “Se fala muito sobre Lyndon Johnson, ou os três ou quatro dias antes do golpe, mas há registros históricos muito ricos sobre os anos anteriores que lentamente têm sido revelados”, diz.

O objetivo do NSA com suas compilações e revelações de documentos, além de ajudar a construir uma história mais transparente, também é conscientizar o público americano sobre como as decisões do seu governo afetaram outros países. “Nosso objetivo é fornecer a estudantes, a imprensa e o público americano em geral uma visão de como isso começou e terminou. Como muitos outros acontecimentos históricos, especialmente entre os EUA e a América Latina, os americanos lembram muito pouco disso. A maioria dos EUA e a comunidade internacional está focada na realização da Copa do Mundo no Brasil e não na história do golpe e no papel dos EUA”.

A conspiração americana para o golpe começou em 1962, diz Kornbluh. O governo Kennedy apresentou a possibilidade do golpe para os militares brasileiros e também certificou-se de seu interesse em derrubar o governo eleito. Mas entre 62 e 64 as condições não estava perfeitas para o golpe, e o governo Kennedy tentou dialogar com Jânio Quadros e João Goulart. A reunião do primeiro com o diplomata americano Adolf Berle foi fria e Quadros depois embarcou numa aproximação maior com países contrários aos EUA. Já a reunião entre Robert Kennedy e João Goulart foi mais amigável, mas Jango não cedeu aos pedidos do irmão do presidente americano para diminuir a influência da esquerda no seu governo.

A partir de 13 de março de 64, com a crescente turbulência econômica e política e as tentativas de Goulart de fortalecer seu poder para emitir decretos, entre outras medidas, as condições finalmente ficaram “propícias” para o golpe, diz Kornbluh. Os EUA já tinham reduzido gradualmente os aportes financeiro para equilibrar a a balança de pagamentos do governo Goulart, que passaram a ser concentrados em Estados governados pela oposição.

“A última coisa que o governo Kennedy queria era um golpe malsucedido, que só revelaria os responsáveis e fortaleceria ainda mais o poder de Jango. Na reunião com Jango, Kennedy exigiu a demissão de assessores considerados comunistas, esse ou aquele comandante militar considerado muito contrário aos EUA. Também foi pedido que o Brasil parasse de expropriar empresas americanas ou indenizasse elas apropriadamente. Eles queriam posições menos antiamericanas do governo brasileiro. Claro que isso não funcionou do jeito que os EUA queriam”, diz Kornbluh.

Fonte: Especial para Terra
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