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A professora que luta para valorizar Zumbi em escola de Palmares

20 nov 2015 - 06h57
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"Lá vêm os negros do Muquém. Se fazem tanta questão do quilombo, por que não ficam lá?" Mais de 20 anos depois, frases assim ecoam na cabeça da professora Ângela Maria Nunes, nascida e criada no Muquém, comunidade formada por famílias de descendentes de quilombolas no interior de Alagoas.

Era isso que ela e os amigos ouviam quando iam à escola na sede do município de União dos Palmares, na Serra da Barriga, a mesma região onde por cerca de um século resistiu o Quilombo dos Palmares.

Com a queda do quilombo, em 1695, os negros que sobreviveram se espalharam. Segundo a tradição local, o Muquém surgiu quando cinco irmãs negras desceram a serra, se esconderam na área perto do rio (Muquém viria de amuquecar ou amoquecar, com o sentido de esconder-se, fugir) e ali passaram a viver.

O lugar foi oficialmente reconhecido em 2005 pela Fundação Palmares como uma comunidade de remanescentes do antigo quilombo.

"As pessoas conheciam a história do quilombo e eu também. Mas não importava. Éramos os negros do Muquém, os negros do cabelo duro. Evitavam a gente, e abaixávamos a cabeça", lembra Ângela, descendente direta de Camila Nunes, a primeira das cinco irmãs negras a chegar ao lugar.

Aos 37 anos, Ângela é professora da educação infantil na Escola Municipal Pedro Pereira da Silva, que funciona dentro da comunidade quilombola. A escola tem 382 alunos da comunidade do Muquém e 135 espalhados nos núcleos da Serra da Barriga. Oferece até o 9º ano do ensino fundamental. Não tem telefone, só internet.

A diretora, Maria Luciete Santos, que assumiu o posto em 2013, é entusiasta da história local, mas relata dificuldades. Diz que, embora os jovens conheçam a história, demonstram às vezes desinteresse pelas tradições negras.

"Eles têm baixa autoestima. A gente tem feito um trabalho de autoestima para eles saberem a história e o quanto são importantes. Não dão valor ao que eles realmente são. Eles são remanescentes do quilombo de fato, vêm de uma história das raízes de Zumbi de fato e de direito. Mas não dão valor", conta a diretora.

A Comunidade Quilombola do Muquém hoje abriga cerca de 170 famílias, todas ou quase todas aparentadas, descendentes das cinco irmãs. Alguns membros da comunidade casaram-se com brancos, e há crianças loiras na escola.

Muitos jovens, segundo a diretora, ainda têm vergonha de suas tradições, como a fabricação de objetos de cerâmica, e dizem que não querem sujar as mãos de barro. Na batalha diária para conquistar alunos e pais, a escola investe em aulas e cursos que valorizam a história e tradições negras, como dança do coco e capoeira. Em toda a rede municipal foi incluída a disciplina Cultura Palmarina, com foco na história da cidade e do Quilombo dos Palmares.

Outra descendente direta da fundadora Camila Nunes e, portanto, prima da professora Ângela, é Albertina Nunes da Silva, merendeira da escola. Com o apoio da direção, ela leva para a merenda ecos da culinária negra, como mungunzá (um prato à base de grãos de milho, conhecido em boa parte do Brasil como canjica branca) e pirão de peixe.

Está participando de um concurso de culinária quilombola com uma receita de família herdada de Camila: a cabidela de peixe, um assado de forno em que a cabidela não é feita com sangue, como na galinha, mas com uma mistura de legumes.

Albertina presidia a associação comunitária do Muquém quando a enchente de 2010 veio e arrastou as antigas casas do lugar, inclusive a dela. Só uma coisa ela salvou das águas, o título de reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo, concedido pela Fundação Palmares.

Mais de 50 pessoas escaparam da enxurrada subindo na jaqueira que é hoje um dos pontos mais visitados pelos turistas que vão ao Muquém. As casas e a escola foram reconstruídas em outro local, mais longe do rio e fora da área de risco.

É numa dessas casas coloridas que vive hoje a professora Ângela, a adolescente que não gostava de seu povo. No ensino médio, uma professora de história conseguiu convencê-la de que a luta de Zumbi não faria sentido se ela tivesse vergonha de sua cor. "Eu odiava meu cabelo, minha pele. Aquela professora me ensinou a gostar de mim, e aprendi a gostar do meu povo", relembra.

Por uma nova história

Longe do Muquém, outros professores se esforçam para contar a seus alunos uma versão mais justa da participação do negro na construção do Brasil. Em 2003, uma lei tornou obrigatório o ensino, em escolas públicas e particulares, de história e cultura afro-brasileira, aí incluída a história da África.

Em 2008, uma nova modificação tornou obrigatório também o estudo da história indígena. Entre professores ouvidos, a opinião unânime foi de que, se o tema da cultura negra no Brasil cresceu de tamanho e importância nos livros, a história do continente africano ainda é pouco trabalhada.

Coordenador de vestibular do Colégio QI, com unidades em vários bairros do Rio de Janeiro, o historiador Renato Pellizzari, 34 anos, avalia que o grande desafio é tirar o estudo da África da visão eurocêntrica, segundo a qual o continente só surge nos livros quando os portugueses iniciam sua expansão colonial.

Pellizari entende que falta ainda um material mais direto sobre o tema, embora liste livros que têm ajudado no trabalho, como A África na Sala de Aula: Visita à História Contemporânea, de Leila Leite Hernandez. As escolas também investem em cursos e palestras sobre o tema para capacitar os docentes.

Uma história contada pelo professor Marcos Dezemone, com passagens por vários colégios particulares, dá ideia do abismo racial no ensino privado.

"Não faz muito tempo, num intercâmbio escolar Brasil-França, vieram para um colégio do Rio vários alunos franceses, a maioria negros. Os alunos brasileiros se surpreenderam com o fato de haver negros entre os franceses. E os franceses, por sua vez, pensaram que tinham sido enviados para uma escola só de brancos", relata ele, que leciona nos cursos de história da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e na UFF.

"Alunos às vezes perguntam por que estudar África, mas é preciso que saibam que o negro tem um papel fundamental na construção do país. Trouxe, por exemplo, técnicas de pecuária extensiva e mineração de ouro. Os africanos eram profundos conhecedores do trabalho com o ouro e já dominavam a técnica de pré-aquecer o forno, hoje uma coisa banal para nós", afirma.

Professor do turno noturno da Uerj, Dezemone destaca que a universidade, graças a uma lei aprovada em 2001, tem cotas raciais e para alunos de escolas públicas, o que hoje lhe confere um perfil mais popular. Há mais negros nos bancos escolares, inclusive no curso de História. Muitos serão os primeiros de suas famílias a possuir diploma universitário.

Longe da Uerj, de volta ao Muquém, a professora Ângela chega para mais um dia de trabalho. Ela e a irmã também serão as primeiras da família a ter diploma universitário.

Ângela concluiu o magistério e cursa pedagogia na Uneal (Universidade Estadual de Alagoas). Mãe de Henrique Fernando, de 9 anos, Nandiel, de 7, e Luiz Inácio, de 3, batizado em homenagem ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Ângela diz que, desde seu tempo de escola, muita coisa mudou – principalmente ela mesma. Ainda sente o preconceito, mas tenta ensinar aos alunos e filhos o orgulho de suas tradições.

Pensa na professora de história que transformou sua forma de encarar a vida e começa mais uma manhã de aula. Se alguém apontar seus filhos e alunos na rua, dizendo, "Lá vêm os negros do Muquém", quer que eles respondam sem abaixar a cabeça, mas sim estufando o peito: "Sim, somos os negros do Muquém".

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