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A polêmica do envio de amostras brasileiras de zika vírus ao exterior

8 fev 2016 - 14h24
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Uma queixa de cientistas americanos e europeus sobre dificuldades no acesso a amostras brasileiras do zika vírus foi amplamente divulgada pela imprensa internacional nos últimos dias. Segundo os relatos, o país estaria dificultando a entrega de material de pesquisa importante para o desenvolvimento de kits de diagnóstico, remédios e vacinas.

Por trás disso estão, afirmam especialistas consultados pela BBC Brasil, entraves legais e uma tentativa de fazer com que os pesquisadores estrangeiros venham estudar a doença no Brasil, em parceria com os cientistas daqui, e não em seus países de origem.

O objetivo seria garantir que eventuais avanços científicos beneficiem em primeiro lugar a população brasileira – a mais atingida até agora pela epidemia de zika. Para muitos, no entanto, trata-se de um protecionismo desnecessário diante de uma epidemia global.

De acordo com a reclamação, pesquisadores estrangeiros estariam se valendo de amostras de epidemias passadas – em locais como Polinésia Francesa e Uganda – para fazer seus trabalhos, o que não é considerado ideal.

Em entrevista à agência de notícias AP, Paulo Gadelha, presidente da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz, vinculada ao Ministério da Saúde), disse não poder enviar amostras para o exterior devido à nova lei que protege o patrimônio genético nacional, ainda não regulamentada.

A lei seria importante para evitar situações já ocorridas no passado, como o caso em que amostras de sangue de índios ianomâmis foram parar nos Estados Unidos sem autorização. A mesma norma protege também o patrimônio ambiental, evitando, por exemplo, a retirada de plantas nativas do país, o que poderia provocar prejuízo econômico.

Diante de uma epidemia global – a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou emergência mundial por causa dos casos de microcefalia –, há o entendimento de que os procedimentos legais deveriam ser apressados no caso do zika vírus.

Depois da polêmica, o governo federal estuda, segundo relatos da imprensa, uma forma de facilitar o envio das amostras de zika por meio de um decreto ou pela regulamentação do Marco Legal da Biodiversidade, que impõe as regras hoje classificadas como "complexas" e burocráticas pelos cientistas.

Projetos conjuntos

Oficialmente, o discurso é de colaboração tanto por parte da OMS como do governo federal. Mas a ênfase brasileira é toda na recepção de cientistas para projetos conjuntos, e não em apenas enviar amostras ao exterior.

Ao mesmo tempo, cientistas da Universidade do Texas coletaram materiais no país para uma pesquisa que procura desenvolver uma vacina para o zika, parte de uma parceria entre o Brasil e os EUA.

Em nota divulgada na última quinta-feira, o Ministério da Saúde disse que está à disposição dos órgãos internacionais desde o início das investigações sobre a relação entre o zika vírus e o aumento no número de casos de microcefalia.

A pasta enumera diversas iniciativas em que os pesquisadores estrangeiros vieram ao Brasil, como no caso de especialistas ligados ao Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês) – que trabalham na parceria entre os dois países e levaram amostras consigo. Afirma ainda que, segundo o ministro Marcelo Castro, as portas estão abertas para receber e treinar especialistas da América Latina.

A BBC Brasil perguntou especificamente sobre as queixas dos cientistas estrangeiros, mas o ministério não respondeu a esse questionamento.

Trâmites mais rápidos

Amilcar Tanuri, do Laboratório de Virologia Molecular do Instituto de Biologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que está estudando o zika, diz não ser contra o envio de amostras. "A ciência é uma só e temos todos que colaborar", afirma, para logo em seguida ponderar:

"Mas acho também que pelo menos 90% das pesquisas que estão sendo feitas lá poderiam ser feitas aqui. Temos capacidade técnica para isso. Os americanos e europeus poderiam criar um consórcio conosco e vir trabalhar com a gente. Meu laboratório está aberto."

O infectologista Fernando Bozza, do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, que também está trabalhando com o zika, levanta outras questões:

"No caso de uma epidemia, é fundamental e central que toda a comunidade científica possa trabalhar", diz. "Para isso, é importante que os trâmites legais sejam mais rápidos, como está previsto nessas emergências. Mas a pesquisa com seres humanos é regida por várias legislações diferentes, e temos que proteger os indivíduos. Não posso pegar uma placenta de uma mãe ou material de um feto morto e mandar pra fora, por exemplo, sem a autorização dessas pessoas, para começar."

Além disso, segundo Bozza, o zika vírus era muito pouco estudado até agora e, por isso, não existiam muitas ferramentas disponíveis para pesquisa, como amostras clínicas.

Segundo reportagem da AP, autoridades americanas e da ONU afirmam que o Brasil compartilhou menos de 20 amostras do zika, enquanto cientistas afirmam que centenas e até mesmo milhares seriam necessárias para que se chegue a diagnósticos mais precisos, remédios mais eficientes e vacinas.

"Não é algo que se possa gerar imediatamente, leva um tempo", avalia Bozza. "E a verdade é que falta financiamento também, temos que ter dinheiro para fazer essas coisas."

Jérson Lima Silva, do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ, concorda.

"Qualquer pesquisa, para ser rápida, precisa ser feita com colaboração internacional. Não há dúvidas, ninguém é capaz de resolver tudo sozinho", afirma. "Mas as coisas têm que ser feitas dentro da lei, o envio de qualquer amostra de um país para o outro envolve burocracia, não é só aqui no Brasil."

Como funciona lá fora

Nos Estados Unidos, no caso do envio de uma amostra clínica (ou seja, de um ser humano), é preciso a aprovação de um comitê de ética. Fora isso, o entendimento é feito entre os cientistas envolvidos, que assinam uma espécie de termo de compromisso, sem maiores burocracias.

O especialista em bioética Volnei Garrafa, membro do Comitê Internacional de Bioética da Unesco, critica a posição atual do governo: "Acho um absurdo o Brasil não compartilhar amostras por conta desse 'medo do imperialismo'".

"É claro que tem que haver cooperação, sobretudo num momento de um perigo maior. Existe uma série de razões para a proteção do patrimônio genético, econômicas, éticas e de biossegurança. Mas existe também uma declaração de bioética da Unesco que prevê a colaboração e o compartilhamento dos benefícios."

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